ODS 1
Protestos fazem máscara antigás evaporar das lojas
Manifestantes correm em busca de equipamento para se proteger da polícia
O metrô para na Estação Carioca, no Centro do Rio, às 16h45m da última quarta-feira (24/5). As portas se abrem e entram dezenas de manifestantes vindos do protesto contra o aumento da contribuição à Previdência dos servidores estaduais, recém-aprovado pela Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro. Eles se dividem em dois grupos: os protegidos e os incautos. Os últimos entram cobrindo improvisadamente os narizes com a ponta da camisa ou com lenços: seus olhos estão visivelmente vermelhos e eles tossem seguidamente. Já os primeiros estão devidamente equipados com o “kit manifestação”: óculos de proteção e máscara antigás.
[g1_quote author_name=”Jonatan Veiga” author_description=”Vendedor” author_description_format=”%link%” align=”left” size=”s” style=”simple” template=”01″]Este ano está igual a 2013. A procura está enorme desde que começaram as manifestações. Temos perdido muitas vendas e não há previsão de chegada da mercadoria
[/g1_quote]A ebulição política no Brasil nos últimos meses tem feito o equipamento evaporar das lojas. Normalmente utilizados por trabalhadores da indústria e agricultura que lidam com pesticidas, inseticidas, tintas e outras substâncias tóxicas, as máscaras, respiradores e óculos viraram gênero de primeira necessidade para enfrentar a virulência da polícia nos protestos. Desde que começaram as manifestações contra a reforma da Previdência, passando pela greve geral e, mais recentemente, os protestos pela saída do presidente Michel Temer, aumentou a procura pelos equipamentos de segurança.
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Veja o que já enviamosNa rede Palácio da Ferramenta, no Centro do Rio, as máscaras estão em falta há cerca de um mês na filial Buenos Aires. Só há óculos de proteção, ao preço de R$ 5,90. “Este ano está igual a 2013. A procura está enorme desde que começaram as manifestações”, diz o vendedor Jonatan Veiga. “Temos perdido muitas vendas e não há previsão de chegada da mercadoria”, completa. Já na filial da Rua da Carioca, ainda há óculos e máscaras, mas as vendas dispararam. “Só ontem vendi 40 kits de máscaras e óculos”, conta a vendedora Denise, que só quis ser identificada pelo primeiro nome. “Desde que começaram as confusões aqui no Centro estamos vendendo muito bem”. A máscara com um respirador custa R$ 20,90 e a com dois – mais indicada para as manifestações – sai por R$ 38,90. Os respiradores demandam cartuchos que são trocados conforme o uso e filtram os gases tóxicos.
Mas os preços das máscaras podem chegar a mais de mil reais dependendo do nível de proteção desejada. No Mercado Livre, há mais de 50 vendedores dos equipamentos, com as mais diversas especificações – da semi-facial à completa. A semi-facial requer o uso de óculos. Já a inteira cobre toda a face e dispensa acessórios complementares. Enviei uma pergunta a um deles, a Casafaz, localizada em Amargosa, na Bahia. Disse que era jornalista e que precisava de um equipamento que me protegesse suficientemente do spray de pimenta e gás lacrimogêneo nas manifestações. Aproveitei para perguntar como andavam as vendas. “Têm aumentado muito. Ano passado, na época dos protestos, vendemos muitas. Depois, diminuiu um pouco e agora as vendas aumentaram novamente”, informou a empresa. O vendedor aproveitou para me sugerir um equipamento mais seguro, no valor de R$ 400.
A Equiprotec Equipamentos de Proteção Individual, localizada em Olaria, na Zona Norte do Rio, ainda não experimentou um boom nas vendas, mas já recebeu consultas de manifestantes em 2017. A vendedora Ellen Caroline Esteves já tem na ponta da língua o que recomendar para quem vai protestar. Familiarizada com as consultas procedentes das manifestações de 2013, ela endossa a versão do mercado de que a máscara semi-facial com respiradores é a mais indicada. E faz a ressalva que o equipamento não dispensa o uso dos óculos. A máscara cirúrgica – aquela usada por enfermeiros nos hospitais – não resolve, alerta a vendedora.
Há tutoriais na internet ensinando os usuários a fazer máscaras caseiras, usando garrafas pet, latas de refrigerante, algodão e carvão ativado, capaz de absorver partículas tóxicas de gás danosas presentes no ar. Mas o guarda municipal Fábio André do Nascimento, que ministra o curso Armas Não Letais, na Escola de Formação de Segurança Grande Rio, voltada principalmente para o treinamento de seguranças privados, alerta para os riscos. “Não é possível ratificar um produto que não passou por avaliação”, afirma. Em post no seu antigo blog, ele chegou a reproduzir a técnica caseira, mas afirma que ele está desatualizado e informa o endereço do novo. “Esse equipamento pode colocar em risco a vida de pessoas”, completa. Segundo ele, se a distância de cinco metros para o lançamento do spray de pimenta não for respeitada, a substância pode provocar asfixia e, se a pessoa atingida tiver asma ou bronquite, pode ocorrer até choque anafilático. Estranhamente, a distância “segura” não é estabelecida por nenhuma legislação, mas pelo próprio fabricante, no rótulo da embalagem, afirma Nascimento.
Embora o gás lacrimogêneo atinja uma distância maior – ele pode alcançar até 150 metros –, o especialista afirma que seus efeitos são mais efêmeros. O gás só surtirá efeito enquanto a pessoa estiver submetida a ele. Já as consequências do spray de pimenta, alerta, podem perdurar por até 30 minutos após a exposição. “Ele gruda na pele”, afirma Nascimento. Embora a venda do spray de pimenta e do gás lacrimogêneo seja considerada ilegal no país , há um vendedor no Mercado Livre oferecendo o produto. Outros links com a mesma oferta já estão fora do ar.
Utilizado para dispersar multidões, o gás lacrimogêneo, embora considerado como agente irritante não-letal pela Convenção Sobre Proibição de Armas Químicas, em 1997, é proibido em guerras. A Convenção, firmada por 178 países, proibiu seu uso como arma de guerra porque ele pode ser letal, dependendo da concentração. Como seus efeitos são temporários, ficou estabelecido que as forças de segurança podem usá-lo apenas para dispersar multidões. Ele teria sido testado pela primeira vez durante a Primeira Guerra Mundial, com o objetivo de forçar soldados inimigos a deixar suas trincheiras para serem atacados com artilharia ou outras armas.
Esta reportagem teve início com a tentativa frustrada desta jornalista de documentar o protesto que tomou conta do Centro do Rio na última quarta-feira. Tentei me aproximar, em vão, da manifestação. Desprotegida, tive de recuar, acuada pelos efeitos dos gases e spray que pairavam na atmosfera. Com os olhos lacrimejantes e uma ardência asfixiante na garganta, tampei o nariz com o casaco para conseguir alcançar a estação de metrô mais próxima. Assim como os incautos do primeiro parágrafo. A diferença é que eles se sentiram protegidos no metrô. Já eu fui inundada pelo sentimento de impotência.
É jornalista com experiência nas redações de O Estado de S.Paulo, IstoÉ e O Globo, onde ganhou o Prêmio Esso de Jornalismo com a série de reportagens “A história secreta da Guerrilha do Araguaia”. Pelo #Colabora, foi vencedora do Prêmio Vladimir Herzog, em 2019, na categoria multimídia, com a série "Sem Direitos: o rosto da exclusão social no Brasil", em um pool jornalístico com a Amazônia Real e a Ponte Jornalismo. Professora Adjunta do Instituto de Arte e Comunicação Social (Iacs), na Universidade Federal Fluminense (UFF), é autora dos livros “Jornalista em mutação: do cão de guarda ao mobilizador de audiência” e "Uma história da primeira página: do grito no papel ao silêncio no jornalismo em rede". É colaboradora no #Colabora e acredita (muito!) no futuro da profissão.