Projeto Fosfato: a mineração chega ao extremo sul do país

Mineradora já com licença prévia, na cabeceira de bacias hidrográficas que abastecem 33 municípios, assusta moradores e ameaça o meio ambiente

Por Rafael Gloria e Thaís Seganfredo | ODS 11ODS 15 • Publicada em 8 de setembro de 2020 - 08:49 • Atualizada em 14 de setembro de 2020 - 10:30

Planta da mineradora Fosfato: exploração assusta 33 municípios, além de comunidades rurais e quilombolas. Reprodução

Planta da mineradora Fosfato: exploração assusta 33 municípios, além de comunidades rurais e quilombolas. Reprodução

Mineradora já com licença prévia, na cabeceira de bacias hidrográficas que abastecem 33 municípios, assusta moradores e ameaça o meio ambiente

Por Rafael Gloria e Thaís Seganfredo | ODS 11ODS 15 • Publicada em 8 de setembro de 2020 - 08:49 • Atualizada em 14 de setembro de 2020 - 10:30

As paisagens do Pampa se transformam em quadros nas mãos de Mario Witt. Produtor rural, ele costuma passear pelas estradas que levam a propriedades vizinhas e, com sua câmera fotográfica analógica, registra as belezas da região e o modo de vida do gaúcho pampeano. Mario tem propriedade na zona rural do município de Lavras do Sul, área que será diretamente atingida caso seja concretizado o projeto de instalação de uma mineradora de fosfato na região.

Em andamento desde 2015, o projeto da empresa Águia Fertilizantes afetará diretamente 60 famílias na região de Três Estradas, a 400 quilômetros de Porto Alegre, que integra áreas rurais de Lavras do Sul e de Dom Pedrito. Comunidades rurais e de pecuaristas familiares, além do distrito de Torquato Severo, pertencente a Dom Pedrito, estão na zona de impacto direto, o que tem gerado questionamentos de grupos socioambientais da sociedade civil.

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Com investimento de mais de R$ 400 milhões, a mineradora prevê a construção de uma barragem de calcário e outra de água, além de planta para beneficiamento, operação que deve durar 63 anos no total. Em outubro de 2019, a Fundação Estadual de Proteção Ambiental (Fepam) concedeu licença prévia ao projeto, que aguarda ainda as licenças de instalação e de operação.

A região influenciada fica na cabeceira dos rios Camaquã e Santa Maria, bacias hidrográficas que compreendem 33 municípios, além de comunidades rurais e quilombolas. “São áreas que deveriam ser santuários, onde está nascendo a riqueza da água e isso não está sendo levado em consideração. A gente fica perplexo vendo a degradação e como um projeto desses pode estar à revelia dessas coisas”, lamenta Mario.

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Mario Witt, produtor rural e fotógrafo: "São áreas que deveriam ser santuários, onde está nascendo a riqueza da água". Foto de Thaís Seganfredo
Mario Witt, produtor rural e fotógrafo: “São áreas que deveriam ser santuários, onde está nascendo a riqueza da água”. Foto de Thaís Seganfredo

Moradores da região se dizem preocupados com a possível implantação da mineradora. Para a engenheira agrônoma Bruna Correa, moradora de Dom Pedrito, o maior agravante do projeto é a contaminação de água. “No próprio estudo de impacto ambiental, eles atestam que muita coisa foge do controle”, opina. A instalação acarretará mudanças sociais e ambientais principalmente em Dom Pedrito e Lavras, conforme Relatório de Impacto ao Meio Ambiente (RIMA) realizado e publicado pela própria Águia, subsidiária do grupo de mineração australiano Aguia Resources e controlada por capital estrangeiro e ligada ao grupo Forbes & Manhattan.

No relatório, constam os riscos em relação à perda de solo e à contaminação tanto de nascentes quanto do lençol freático. Segundo o documento, a perda de solo devido à terraplanagem e à construção de prédios e estruturas poderá causar o assoreamento de curso d’água. O texto informa ainda que é esperada “interferência direta em nascentes”, sem maiores detalhes de como se daria essa alteração, além do desaparecimento permanente de pelo menos 20 rios ou riachos. “A implantação e operação das estruturas (barragens, pilhas e diques) vão provocar alterações na morfologia fluvial original, pelo fato de as atividades se concentrarem em fundo de vale fluvial, onde estão situadas Áreas de Preservação Permanente (APPs)”, aponta o estudo.

As águas subterrâneas também serão atingidas, conforme o RIMA, devido à necessidade de rebaixamento do lençol freático, uma vez que a cava da mineradora terá profundidade de 280 metros. As características químicas da água podem ser alteradas por depósito de líquidos oleosos ou materiais sólidos provenientes da implantação da mineradora. Uma das reclamações dos opositores à construção é o fato de a empresa não apresentar propostas detalhadas para mitigar ou conter esses impactos. “O estudo só aponta como solução ‘projetos’. Projeto não resolve, tem que ter algo concreto. Não se tem nem ideia da água que os trabalhadores de lá vão beber”, critica Bruna.

Ambientalistas alertam ainda para as consequências de um eventual rompimento das barragens de água e de calcário. Segundo a ONG Amigos da Terra Brasil, o fluxo do rio Santa Maria arrastaria os rejeitos até Rosário do Sul, município com 40 mil habitantes localizado a 220 quilômetros do local previsto para a barragem. A instituição compara o caso com o rompimento da barragem em Brumadinho, que acabou arrastando a lama por 270 quilômetros.

As duas barragens de rejeitos deverão ocupar área de 194 hectares, com 1.057m de extensão e capacidade para cerca de 23 milhões metros cúbicos, o dobro do volume de rejeito que vazou em Brumadinho. O calcário calcítico, resíduo da mineração de fosfato, deverá ficar depositado até que a mineradora venda o excedente, operação sem prazo para ocorrer. Embora a empresa afirme que as barragens serão construídas apenas na segunda fase de operação (ou seja, depois de 17 anos), o projeto que obteve aprovação da Fepam permite a ação completa no início da operação, o que tem gerado desconfiança de ambientalistas e grupos de moradores.

Para o professor de Botânica da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Gerhard Overbeck, “os projetos de mineração possuem uma série de riscos graves para os ecossistemas nativos, a biodiversidade, e também as populações rurais ou urbanas. É importante também considerar que não temos, atualmente, as técnicas para recuperação dos ecossistemas, ou seja, após o final da atividade de mineração não é mais possível recuperar o ecossistema perdido”.

Impactos socioeconômicos

Com pouco mais de 7 mil habitantes, Lavras do Sul sustenta orgulhosamente no brasão a alcunha de “terra do ouro”. O apelido tem motivo – a cidade nasceu de um acampamento de mineradores às margens do rio Camaquã. Hoje, quase 140 anos depois, a Águia Fertilizantes quer fazer parte da história de exploração econômica dos recursos do território, desta vez com a mineração de fosfato.

A empresa iniciou os estudos minerários na área em 2011, mas foi apenas seis anos depois que a divulgação e o processo de informação da sociedade local teve início. Em 2016, arrecadou R$ 20 milhões para a conclusão do estudo de viabilidade financeira do projeto. Um ano depois, ergueu sua sede e passou a fazer centenas de ações periódicas de marketing, com a contratação da startup de inovação Nano BizTools. Patrocínio de eventos, distribuição de brindes e um jogo sobre mineração para as crianças compõem o conjunto de ações de relacionamento com a cidade de Lavras.

Segundo os moradores relataram à reportagem, a instalação da mineradora é celebrada de forma praticamente unânime pelos habitantes da área urbana do município. Entre os principais fatores para o apoio da população, está a previsão de 900 vagas temporárias de emprego direto e indireto que a fase de implantação do empreendimento deve gerar na cidade. Não há informação sobre o número de empregos na fase de operação.

Em março de 2019, o município realizou audiência pública com a presença de 1.096 moradores, etapa obrigatória no processo de licenciamento. Mario Witt foi um dos poucos presentes no encontro que se posicionaram contra o empreendimento. Ainda assim, conta que foi impedido de falar, inibido por vaias do público. “A cidade de Lavras fica a 45 quilômetros desse local e pertence a outra bacia, então a cidade não vai ser tão afetada. A população da área rural é contra, mas não tem muito como se manifestar. A empresa atua há muito tempo na comunidade promovendo várias coisas, então o pessoal apoia”.

Ele alega que o estudo de impacto feito pela empresa pode não estar correto, uma vez que a mineradora não conseguiu autorização para entrar em sua propriedade e em pelo menos duas terras de famílias vizinhas. Os proprietários estão sendo processados na Justiça estadual, sob a alegação de que a Águia estaria autorizada, com alvará de pesquisa, a entrar nos territórios para concluir o levantamento.

Luna Dalla Rosa: “sem campo não existe a pecuária, sem água boa a pecuária também fica inviável”. Foto de Rafael Glória

Integrante do Comitê de Combate à Megamineração no RS e doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Rural pela Ufrgs, Luna Dalla Rosa comenta os possíveis impactos para as comunidades rurais da região. “Essas pessoas possuem modo de vida que está sendo ameaçado, porque sem campo não existe a pecuária, sem água boa a pecuária também fica inviável”, observa. Um grupo de moradores de Dom Pedrito, que também será impactado, enviou ao Ministério Público requerimento para uma audiência pública no município. “Não queremos uma apresentação de slide, que é o que foi feito na prefeitura, no sindicato rural. Temos questionamentos e exigimos explicações das consequências que vamos sofrer”, reivindica a engenheira Bruna Correa, que também relatou medo de falar sobre o assunto na cidade.

Já o estudante de Educação para o Campo da Unipampa Ivonaldo Carvalho, também morador do município, conta que esse movimento de resistência ocorre principalmente na universidade, já que a população está desinformada. “Aqui a mídia diz que vai ter geração de emprego, que a economia da cidade pode melhorar, mas não temos um esclarecimento sobre os danos possíveis”, lamenta. Entre os questionamentos dos estudantes, estão a sobrecarga do sistema de saúde, além de questões de segurança pública, uma vez que o empreendimento deve levar centenas de pessoas à região na fase de implantação.

O Ministério Público Federal (MPF) instaurou inquérito civil extrajudicial com o objetivo de acompanhar o licenciamento ambiental do projeto. A instituição aguarda resposta de ofícios enviados a diversas instituições, como a ICMBIO e a Fepam, a fim de averiguar a regularidade do procedimento ambiental. Quanto ao pedido de audiência pública em Dom Pedrito, o MPF afirma que a requisição encontra-se na fase de perícia técnica. A perícia investiga ainda o Estudo de Impactos Ambientais e o Relatório de Impactos ao Meio Ambiente, publicados pela empresa, especificamente para avaliar “a potencialidade poluidora do empreendimento em questão e da suficiência de sua análise” e os riscos à população de Torquato Severo, que poderá ser diretamente afetada.

A reportagem entrou em contato com a Águia Fertilizantes. Em nota, a empresa afirmou que o minério da primeira fase será vendido diretamente aos produtores da região, sem a necessidade de construção de barragens para depósito de rejeitos. Em relação ao EIA/RIMA licenciado pela Fepam e questionado pelos moradores por permitir as barragens na primeira fase, a empresa não se pronunciou.

A reportagem também questionou a mineradora sobre os silenciamentos ocorridos na audiência pública em Lavras do Sul. “Nessa audiência, a empresa Águia Fertilizantes cumpriu todos os ritos necessários antes, durante e após o evento. Disponibilizou a população o Estudo de Impacto Ambiental (EIA) e o Relatório de Impacto do Meio Ambiente (RIMA), no dia apresentou um resumo do projeto, respondeu aos questionamentos dos inscritos e após respondeu todos os diversos questionamentos formulados pelo público”, respondeu a empresa. Sobre o pedido de audiência pública em Dom Pedrito, a Águia afirmou que “a comunidade hoje vislumbra que novas oportunidades possam trazer um futuro melhor através do Projeto Fosfato Três Estradas. Portanto, só podemos concluir que não há qualquer ganho social adicional em fazer audiência pública em Dom Pedrito”.

Por fim, a empresa afirmou à reportagem que serão gerados 300 empregos na fase de operação.

A roda do agronegócio

Entidades socioambientais afirmam que o Rio Grande do Sul é visto como uma nova fronteira de expansão mineradora no país, com três projetos atualmente em andamento. A exploração mineral é um dos grandes interesses na região, uma vez que a própria Águia informa que estuda explorar minerais metálicos no bioma. Existem mais de 5 mil estudos minerários no estado, a maioria no sul do estado, onde está localizado o bioma.

Um dos três empreendimentos já em requisição de implantação é a Mina Guaíba, da empresa Copelmi, que pretende extrair carvão na região metropolitana de Porto Alegre, atualmente embargado pela Justiça. Outro projeto é comandado pela empresa Nexa Resources, multinacional do Grupo Votorantim, que planeja a construção de uma mineradora de zinco, chumbo e cobre em Caçapava do Sul, município relativamente próximo de Lavras. Lá, contudo, a mineração encontra resistência da população local, sobretudo por se tratar de exploração de metais.

Para os ambientalistas, a presença de mineradoras na região é mais um elo na cadeia do avanço do agronegócio no Pampa. O projeto Fosfato está inserido no centro desse crescimento da atividade, baseada na monocultura de soja, na medida em que o fosfato extraído será utilizado para fabricação de fertilizantes. “Toda a argumentação da empresa é baseada na necessidade de fosfato para utilizar na agricultura como fertilizante”, comenta Luna, que também integra o Comitê de Combate à Megamineração, que reúne 120 entidades do estado contrárias aos projetos em andamento.

Já a ONG Amigos da Terra Brasil aponta que o fosfato extraído no Pampa será tratado na cidade de Rio Grande, litoral do estado, por onde ocorrem as principais exportações gaúchas. “O foco está na exportação de commodities e não na produção de alimentos ou geração de riqueza para as famílias da região. Não haverá benefício aos produtores locais, e sobre isso vale lembrar de outras promessas já feitas e não cumpridas: os monocultivos de eucalipto que surgiram na região na última década não geraram emprego algum, embora as empresas garantem a criação de vagas”, argumenta a organização.

Rafael Gloria e Thaís Seganfredo

Editores do site Nonada – Jornalismo Travessia e diretores da agência Riobaldo Conteúdo Cultural. Rafael Gloria é formado em Jornalismo pela UFRGS, com especialização em jornalismo digital pela Puc-RS e mestrado em Comunicação pela UFRGS. Já escreveu para veículos como Jornal Metro, Correio do Povo e Jornal do Comércio. Thaís Seganfredo e graduada em Jornalismo pela UFRGS e já colaborou para veículos como o Jornal do Comércio/RS e a revista Mais Sebrae RS, além de ter experiência com assessoria de comunicação nas áreas jurídica e sindical.

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