Metamorfose cruel: o avanço da soja no Pampa

Com a expansão do agronegócio, cresce a dependência econômica dos municípios, que ignoram o impacto ambiental em nome do dinheiro das plantações imensas

Por Rafael Gloria e Thaís Seganfredo | ODS 12ODS 13 • Publicada em 8 de setembro de 2020 - 08:41 • Atualizada em 15 de setembro de 2020 - 17:03

A soja (ao fundo) avança, dominando a paisagem do Pampa. Foto de Thaís Seganfredo

A soja (ao fundo) avança, dominando a paisagem do Pampa. Foto de Thaís Seganfredo

Com a expansão do agronegócio, cresce a dependência econômica dos municípios, que ignoram o impacto ambiental em nome do dinheiro das plantações imensas

Por Rafael Gloria e Thaís Seganfredo | ODS 12ODS 13 • Publicada em 8 de setembro de 2020 - 08:41 • Atualizada em 15 de setembro de 2020 - 17:03

Na estrada que leva à região da fronteira oeste do Rio Grande do Sul, é possível perceber o domínio do cultivo de soja, que não parou de crescer nas últimas décadas, modificando a paisagem do Pampa. Atualmente, contudo, o avanço parece crescentemente acelerado. Enormes silos vão ganhando o horizonte conforme se aproximam municípios como Bagé e Dom Pedrito. Uma vez dentro das cidades, lojas especializadas no aparato tecnológico necessário para a manutenção de máquinas também se sucedem, numa evidência entre muitas de como os municípios dependem dessa cultura.

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A economia da região tradicionalmente baseou-se na criação extensiva de gado, mas ao longo dos anos a pecuária familiar predominante foi perdendo espaço para a produção de grãos, além da obtenção de celulose, a partir da silvicultura, outro veneno para a biodiversidade. O cultivo da soja é o que alavanca maior impacto ambiental, devido, principalmente, às altas doses de agrotóxicos utilizadas. No período de 2000 a 2015, segundo dados do IBGE, a área plantada com soja aumentou 73,7% no Rio Grande do Sul, passando de 3.030.556 hectares para 5.263.899 ha. Já a área plantada com arroz aumentou 18%, enquanto a de milho diminuiu 44% nesse período.

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Morador de Dom Pedrito, Itamar está entre os agropecuaristas familiares que sofrem com o avanço do agronegócio. “A maioria dos produtores perto da nossa propriedade é de soja e arroz. A soja está na beira do nosso arame, uma área que teria que ser respeitada, mas não é”, reclama. Professor da Universidade Federal do Pampa (Unipampa), Guilherme Gonzaga confirma que a soja vem avançando ainda mais na fronteira. “Aqui em Dom Pedrito, antigamente tinha gado, porque temos uma pastagem natural considerada das melhores do mundo, que enriquece muito de ômega 3 a carne bovina. É uma das pastagens mais diversas e o gado chega no ponto de abate apenas com a alimentação natural. O avanço da soja, o uso de fungicida e de glifosato vêm interferindo na diversidade do bioma”, completa.

O artigo “O avanço da soja no bioma Pampa”, dos pesquisadores do Inpe Tatiana Kuplich, Viviane Capoane e Luis Costa, indica que apenas na área do pampa o cultivo de soja aumentou 188,5% no período de 2000 a 2015. Já nos municípios de Bagé e Dom Pedrito, a área plantada com soja em 2015 foi respectivamente 52 e 38 vezes maior do que a do ano 2000. A pesquisa foi realizada a partir de dados do IBGE e de metodologia baseada em imagens de sensoriamento remoto. Nesse sentido, se confirmou a direção da expansão das lavouras de soja e a necessidade de manejo adequado e conservação dos remanescentes do bioma Pampa.

O avanço da monocultura é observado também pelo projeto MapBiomas, que nasceu para criar uma base de dados acessível sobre os diferentes tipos de biomas do Brasil. Formado por especialistas em sensoriamento remoto e mapeamento de vegetação, o MapBiomas mantém um arquivo de mapas e informações sobre os diferentes biomas brasileiros. Eduardo Vélez, um dos pesquisadores da parte do Pampa, afirma que é a primeira vez na história do Brasil que se consegue ter mapas de uma série de 33 anos. “Consigo contar o que está acontecendo em cada bioma, e no caso do Pampa, desde 1985 até os dias atuais. Desse modo, conseguimos saber os principais padrões e problemas”.

Desta forma, os pesquisadores averiguaram o constante e progressivo aumento da agricultura no Pampa. “Se continuar assim, vamos perder ainda muito mais campo. Uma das conclusões é que precisamos estimular a pecuária no Pampa ao invés da agricultura, por ser uma atividade que depende intrinsecamente do campo nativo”, aponta.

Outra análise é a relação entre a silvicultura e a agricultura como ameaças ao Pampa. “Se compararmos em termos de áreas, o avanço da silvicultura é bem menos expressivo do que o da agricultura. Vemos que essa expansão da silvicultura tem sido um pouco desconcentrada no espaço, porque temos um zoneamento da silvicultura que a Fepam exige”, afirma. Entretanto, Vélez pondera que a silvicultura ainda continua tendo impactos, principalmente na biodiversidade.

Agrotóxicos sem fronteiras

Como tudo isso afeta as pessoas que trabalham com agricultura ou simplesmente vivem nessas cidades? Ivonaldo Carvalho, estudante do curso de Educação no Campo da Unipampa em Dom Pedrito, explica que atualmente quase não se vê mais áreas de campo nativo. “Muito próximo de onde eu moro tem uma lavoura, então passa o avião direto com agrotóxico, uma coisa sem controle. A fronteira entre a cidade e a soja está cada vez menor”, avalia o estudante, acostumado com os enormes tratores que passam ao lado da universidade e com o barulho dos pulverizadores de agrotóxicos.

Para ele, cada dia menos se avista as espécies naturais do bioma e se fortalecem espécies invasoras como o capim-annoni, que entrou há anos no Brasil como alternativa para alimentar o gado, mas virou problema das pastagens, por ter difícil controle. Segundo a Embrapa, além do baixo valor nutricional, a planta desgasta a dentição dos animais por ser fibrosa em demasia e, com sua grande capacidade de produção de sementes, se alastra com velocidade.

O aumento dos agrotóxicos também é uma realidade no país inteiro. De acordo com a pesquisa Geografia do Uso de Agrotóxicos no Brasil e Conexões com a União Europeia, realizada pelo Departamento de Geografia da Universidade de São Paulo (USP), quase 335 mil toneladas de inseticidas, herbicidas e fungicidas entraram no país de janeiro a dezembro de 2019. Foram registrados, ano passado, 474 novos pesticidas no Brasil, a maior quantidade dos últimos 14 anos. Desde 2017, a liberação anual já estava acima de 400 produtos. No caso da soja e do milho, praticamente toda a produção é feita à base de sementes transgênicas resistentes a herbicidas — o que impulsiona o uso dos agrotóxicos no país.

Elizete é assentada na fronteira do Rio Grande do Sul com o Uruguai, região que também abrange o bioma, e conta que antigamente a soja não tinha nada de veneno. “Passávamos o arado no meio milho, plantávamos soja, e comíamos. Hoje tudo que tu planta parece que tem que ir veneno”, constata, contando que cultiva soja a pedido do filho, e que em sua terra há uma barragem coletiva que fornece água para sete produtores de arroz. Apesar disso, deixou de plantar dez hectares, para não prejudicar a criação de abelhas do vizinho. “Meu guri disse que perdi dinheiro não plantando soja em todo o terreno, mas acho que não. Sinto que a gente está perdendo a juventude do campo. A terra é a nossa riqueza, mas muitas vezes para segurar o filho dentro da propriedade, tem que optar por coisa que tu não concorda. Quando tu luta por um pedaço de terra, não luta pensando em ti. Luta pelos teus filhos”, ensina. Otílio, também assentado na mesma região, diz que o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), do qual faz parte, ajudou na profissionalização do campo. “Hoje na região tem várias cooperativas, somos pecuaristas familiares, produtores de frutas, feirantes. Estamos na fase da agroindústria, com uma queijaria encaminhada”, completa.

No Pampa, há casos cada vez mais frequentes de dificuldades devido ao aumento de agrotóxicos, como o de um produtor familiar que preferiu ficar anônimo. Ele relata que sua propriedade fica a 7 quilômetros de uma lavoura de soja e que os agrotóxicos utilizados acabam interferindo no cultivo. “As frutas estão morrendo, parece que eles fazem de propósito para a gente desistir e migrar para a cidade”, lamenta. Gonzaga, o professor da Unipampa, explica que mesmo usado em local distante, o agrotóxico facilmente se espalha. “Se eu plantar soja aqui e passar glifosato, o campo seguinte que não usa glifosato é atingido, seja pelo afeto direto, seja pelo vento, pelo fato de ele se espalhar pelo solo, água, etc, afetando a diversidade e enfraquecendo a pastagem que é a riqueza do bioma”, detalha.

Rafael Gloria e Thaís Seganfredo

Editores do site Nonada – Jornalismo Travessia e diretores da agência Riobaldo Conteúdo Cultural. Rafael Gloria é formado em Jornalismo pela UFRGS, com especialização em jornalismo digital pela Puc-RS e mestrado em Comunicação pela UFRGS. Já escreveu para veículos como Jornal Metro, Correio do Povo e Jornal do Comércio. Thaís Seganfredo e graduada em Jornalismo pela UFRGS e já colaborou para veículos como o Jornal do Comércio/RS e a revista Mais Sebrae RS, além de ter experiência com assessoria de comunicação nas áreas jurídica e sindical.

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