A casa em primeiro lugar

Projeto RUAS testa no Rio o Housing First, programa aplicado nos EUA, Canadá e Europa, que já tirou milhares de pessoas das ruas

Por Telma Alvarenga | ODS 1ODS 11 • Publicada em 31 de janeiro de 2018 - 09:14 • Atualizada em 1 de março de 2021 - 13:16

Noite numa calçada do Rio: estimativa é de mais de 100 mil pessoas em situação de rua no país. Foto: Projeto Ruas/Facebook

Para ajudar uma pessoa que vive na rua, é viciada em drogas, perdeu todos os vínculos familiares, o primeiro passo é interná-la em um centro de reabilitação, conseguir que tire seus documentos, encaminhá-la a um emprego, e, aí sim, apoiá-la na busca por um lugar para morar. Certo? Nem sempre. Uma metodologia que tirou milhares de pessoas das ruas nos Estados Unidos, usada também no Canadá, Japão e países da Europa, está sendo aplicada pela primeira vez no Brasil e inverte completamente essa lógica. É o Housing First (Habitação Primeiro). O participante do programa, antes de qualquer coisa, ganha um teto para chamar de seu. A partir daí, sempre acompanhado por um voluntário, começa a contar com serviços que lhe permitam ter uma vida saudável: sessões com psicanalistas, consultas médicas, noções de alfabetização financeira… “Ele vai cumprindo as etapas do que a gente chama de Plano de Desenvolvimento Individual, já morando sozinho, no tempo dele, sem cobranças”, diz Allini Fernandes, funcionária de uma multinacional e uma das fundadoras do RUAS (Ronda Urbana de Amigos Solidários), no Rio de Janeiro. O projeto carioca é o primeiro da América Latina a aplicar a metodologia criada pelo canadense Sam Tsemberis, radicado nos EUA.  “Vamos fazendo o acompanhamento até que a pessoa adquira autonomia”.

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A pessoa não precisa estar sem usar drogas ou ser alfabetizada, por exemplo, para participar do programa. Se ela pode sobreviver na rua porque não vai conseguir dentro de uma casa?

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Não é um processo fácil e disso Allini sabe perfeitamente bem, escaldada pelas frustrações que fazem parte do trabalho voluntário com pessoas nessa situação extrema. Mas ela tem milhares de razões para acreditar no sucesso do Housing First, que faz parte das políticas públicas do governo federal americano e contribuiu para o número impressionante de 87 mil pessoas retiradas das ruas do país, entre 2010 e 2016. Nos EUA, o programa é aplicado também por diversas ONGs. Entre elas, a reStart, que tirou  1.967 veteranos de guerra das calçadas de Kansas City, nos EUA. Eram dois mil, no total. Apenas 33 retornaram para a vida ao relento. Murillo Sabino, outro co-fundador do RUAS, esteve em Kansas, em 2016, e conheceu o projeto de perto. Ele foi como um dos 248 selecionados para fazer parte do Young Leaders of Americas Initiative, programa de desenvolvimento de jovens líderes, do governo americano.

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Allini conversa com pessoas em situação de rua: “A abordagem tem que ser leve e humana”. Foto: Reprodução/Facebook

Após participar de workshops em Dallas, os participantes, das mais diversas nacionalidades, se espalharam por 21 cidades dos EUA. Murillo foi para Kansas City, onde passou quatro semanas acompanhando o trabalho da reStart. Voltou entusiasmado com o sucesso da metodologia “que praticamento zerou a população de rua na cidade” e cheio de vontade implantá-la por aqui. “Fiquei impressionado com os números”, diz. “O programa coloca a casa como um direito básico“. Não há pré-requisitos para participar. “A pessoa não precisa estar sem usar drogas ou ser alfabetizada, por exemplo. Se ela pode sobreviver na rua porque não vai conseguir dentro de uma casa?“.
Antes de conhecer o Housing First, o RUAS já havia feito uma experiência parecida, alugando uma casa no morro Dona Marta para um rapaz que vivia nas ruas de Botafogo. G. acabou voltando para as calçadas e, por causa do vício em drogas, se internou em uma clínica de reabilitação. “Ele ficou envergonhado e se afastou de nós, na época”, lamenta Allini. “Depois, retornou a sua cidade natal e está trabalhando”.

A primeira experiência após a volta de Murillo dos Estados Unidos, já com a metodologia do programa americano, não foi muito diferente. “Mobiliamos a casa, apoiamos S. na busca de um novo trabalho, demos um celular para ele e seguimos com o programa. Na terceira vez em que estava indo ao dentista, o deixei na porta no Metrô e entreguei R$ 70, para que pagasse a conta de luz. Ele sumiu. Eu tinha acabado de pagar o aluguel…”, lamenta Allini. S., de 33 anos, é soropositivo. Quando o contato foi rompido, já morava há três meses na casa alugada pela turma do RUAS.  “Estávamos nas nuvens”, diz Allini. Mas a queda não a fez desanimar.  “Cada um tem o seu tempo para vivenciar mudanças profundas na vida”.  Segundo ela, o importante é que a “abordagem seja leve e humana”.

Murillo Sabino: impressionado com o resultado do Housing First em Kansas City
Murillo Sabino conheceu o programa de perto: impressionado com o resultado do Housing First em Kansas City. Foto: Reprodução/Facebook

Um outro piloto está sendo feito com M., que já completou cinco meses no programa. O rapaz veio do Nordeste e viveu cerca de dois sem um teto. Ele andava por Botafogo, um dos bairros onde os voluntários do RUAS (são mais de 500, no total) realizam os encontros semanais e  rodas de conversa com desabrigados. Além de Botafogo, os outros bairros atendidos são Copacabana e Leblon. “M. tem vários desafios emocionais, como todos nós ”, conta. “É acompanhado por um psicanalista voluntário e chegou a frequentar reuniões do AA. Hoje, trabalha entregando remédios de uma farmácia e vendendo relógios e bijuterias numa banquinha. Estamos por perto, torcendo pelo seu desenvolvimento”.

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As estatísticas dizem que, aproximadamente, 35%  vão para as ruas por causa das drogas, mas 85% dos que estão nelas são usuários de alguma droga

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Outra que está sendo atendida pelo programa é V., que ganhou um teto graças à iniciativa de uma das voluntárias do RUAS. “Ela liderou uma campanha de crowdfunding, pela Benfeitoria, e nos convidou para aplicar o programa de Habitação Primeiro”, conta Allini. “Hoje, V. mora num apartamento alugado, tem subsídio para as despesas básicas e os serviços de apoio disponíveis para seu desenvolvimento e para  alcançar sua autonomia, em médio e longo prazos”.

São as drogas que acabam levando uma pessoa a morar na rua ou é a dura vida nas calçadas que leva ao vício? “As estatísticas dizem que, aproximadamente 35% vão para as ruas por causa do uso de drogas, mas 85% dos que estão nelas são usuários de alguma droga”, diz Allini. “Então, o percentual cresce muito. E tratar isso é muito difícil”.

No Brasil, não há dados confiáveis da quantidade de pessoas em situação de rua. A última pesquisa nacional foi feita há dez anos, em 2008. Eram 31.922, segundo o Ministério do Desenvolvimento Social. Mas, de acordo com estimativa do IPEA, com base em dados de 2015, esse número pulou para 101.854 mil. Só no Rio de Janeiro, em 2016, eram 14. 279 pessoas vivendo nessa condição, segundo a secretaria municipal de Assistência Social e Direitos Humanos – um aumento de 156% em relação a 2013.

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Estímulo é a palavra-chave do nosso trabalho. É muito importante o vínculo, a relação de confiança que criamos com eles, o volume de informações que conseguimos compartilhar

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Mas ninguém precisa de estatísticas para concluir que o número de pessoas dormindo no chão duro, em cima de folhas de papelão, debaixo das marquises, aumentou muito nos últimos anos. Basta andar pelas grandes cidades. Entre outros fatores que levam ao crescimento da população de rua, Allini cita o desemprego, mas diz acreditar que o mais forte seja a “desestabilização familiar”. São situações complexas e muito difíceis de lidar.  “Estímulo é a palavra-chave do nosso trabalho, o vínculo, a relação de confiança que criamos com eles, o volume de informações que conseguimos compartilhar”.

O RUAS não tem nenhum apoio governamental. “Nem queremos, somos apartidários e laicos”, diz Allini. Para conseguir levar o projeto à frente, eles contam com uma rede de conexões, com sistema de financiamento coletivo, através da Benfeitoria, e com o programa Troco Solidário, em parceria com o Alô, Madruga e o restaurante Salete, na Tijuca. “Trabalhamos em rede e temos uma força incrível assim. Quando chegamos em um bairro, incentivamos que os próprios moradores e comerciantes cuidem de sua comunidade. Em Botafogo, tem um mercado que fornece pães, em Copacabana e no Leblon, o Hortifruti  oferece os ingredientes da sopa…”

As conexões também ajudam na hora de  conseguir emprego para desabrigados, outra grande dificuldade. “Eles não têm endereço fixo, não têm lugar certo para tomar banho,  isso gera preconceito”.  Mas com a ajuda dos voluntários, alguns conseguem vencer essa barreira. Um exemplo é o de um rapaz de 21 anos, que vendia thinner (solvente usado como entorpecente) para crianças que perambulam pelas calçadas e passou a trabalhar, inicialmente como ajudante de cozinha em um restaurante de Botafogo. “Nosso voluntário, o Leo, foi com ele na entrevista do emprego. A namorada do rapaz, de 14 anos, ficou grávida e foi levada, também pelo Leo, para um abrigo da prefeitura. O bebê nasceu em julho do ano passado e o casal não vive mais nas ruas. “São muitos desafios, mas histórias assim e a força dos voluntários unidos vão nos dando estímulo para continuar”.

Telma Alvarenga

Jornalista formada pela PUC-Rio. Tem passagens pela revista Veja, Veja Rio, Jornal do Brasil, O Globo, Correio (BA) e Projeto #Colabora, desempenhando funções de editora, colunista e repórter. Professora no curso de Comunicação Social da Faculdade Social da Bahia em 2010, está finalizando seu mestrado no Programa de Pós-graduação em Literatura, Cultura e Contemporaneidade da PUC-Rio

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