ODS 1
A guerra do spray paulista
João Doria pinta por cima dos grafites, cria polêmica e vira marchinha de carnaval
Uma parede em branco é um desperdício de ideias, dizia Paulo Leminsky (1944-1989). Por que citar um poeta em uma matéria sobre grafites? Porque as duas manifestações artísticas (sim, grafite é arte) andavam de mãos dadas nas primeiras intervenções urbanas em São Paulo, que hoje voltam a ser alvo de polêmica na cidade que começa a ser governada pelo empresário João Doria (PSDB).
[g1_quote author_name=”João Doria” author_description=”Prefeito de São Paulo” author_description_format=”%link%” align=”left” size=”s” style=”simple” template=”01″]Pintei com enorme prazer três vezes mais a área que estava prevista para demonstrar repúdio aos pichadores
[/g1_quote]Os grafites paulistanos surgiram das pichações poéticas no final da década de 60, início dos anos 70, na esteira do movimento global de contracultura. As ruas da Pauliceia Desvairada começaram então a ser pensadas como telas e cadernos. Eram palavras e traços de coletivos artísticos de contestação, muitas vezes ao silêncio imposto pela ditadura militar, como conta Antonio Eleilson Leite em seu livro “Graffiti em São Paulo: tendências contemporâneas” (2013). A primeira separação entre letras das pichações e dos grafites ocorreram entre os anos 70 e 80.
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Veja o que já enviamosO ítalo-etíope Alex Vallauri (1949-1987) foi o grande nome da primeira geração de grafiteiros de São Paulo: ele era um andarilho em busca de espaços para expressar suas imagens que evocavam a cultura de massa e a mitologia urbana. Morto no dia 26 de março de 1987, já no dia seguinte amigos e admiradores ocuparam o famoso buraco da Paulista (um túnel no final da avenida) e deram vida ao labirinto com seus grafites. No dia 28 de março, um jornal de São Paulo decretou: “Está instituído o Dia Nacional do Grafite”. Mas muitas guerras contra a arte de rua ainda seriam travadas na capital paulistana, assim como acontece em várias cidades do mundo até hoje.
Nos últimos 40 anos esta manifestação artística trava um jogo de gato e rato com autoridades. Com o tempo o grafite (que nasceu nos anos 70 em Nova Iorque) ganhou reconhecimento do público a ponto de merecer exposições na Bienal, no Museu da Imagem e do Som e no Masp, que em 2018 fará uma exposição do grafiteiro nova-iorquino Juan-Michel Basquiat (1960-1988). São Paulo foi palco do documentário Cidade Cinza (2013), de Marcelo Mesquita e Guilherme Valiengo, que conta a trajetória dos grafiteiros em busca de aceitação da sociedade e do governo.
[g1_quote author_name=”Pichação em São Paulo” author_description_format=”%link%” align=”left” size=”s” style=”simple” template=”01″]Se sua vida não tem cor, não desbote a nossa
[/g1_quote]Mais eis que o prefeito Doria entra em cena e quatorze dias após sua posse ganhou manchetes no Brasil todo ao surgir na Avenida 23 de Maio usando óculos de proteção, máscara e avental e munido de um motocompressor. Ali, no maior mural a céu aberto da América Latina, com quase cinco quilômetros e meio de extensão, ele ajudou a apagar boa parte dos 15 mil metros quadrados de desenhos das muretas. Primeiro foram lançados jatos de água. Depois, as “telas” foram cobertas por uma tinta cinza que acabaram borrando o tênis Osklen de Doria, como observou um dos jornalistas que cobriu a ação.
O prefeito assumiu uma retórica combativa: pediu para os moradores de São Paulo filmarem, fotografarem e denunciarem pichadores. “Pintei com enorme prazer três vezes mais a área que estava prevista para demonstrar repúdio aos pichadores”, disse. A Secretaria estadual da Segurança Pública destacou o Departamento Estadual de Investigações Criminais (Deic), grupo da Polícia Civil especializado nas investigações contra o crime organizado, para identificar pichadores de rua.
Vários especialistas criticaram o prefeito. Para eles, os grafites, diferentemente das pichações, não poderiam ter sido apagados de forma impositiva. Como se fosse uma compensação, o novo prefeito anunciou que abrirá um “grafitódromo”, espaço que quer reservar para painéis e murais na cidade. A área, diz ele, teria lojas de itens licenciados para viabilizar o negócio e seria inspirada em um bairro de Miami Beach, o Wynwood Arts District.
No domingo 22, manifestantes fizeram um protesto, filmando os grafites que sobraram. Um grito de guerra foi lançado nas redes sociais: “#EuAmoGrafite”. A ONG MinhaSampa elabora um mapa colaborativo para identificar os murais da cidade e tentar protegê-los da cruzada cinza do prefeito tucano. Uma cópia do mapa será entregue a ele.
Em meio à “Guerra do Spray”, João Doria anunciou que vai criar um programa de grafite de rua para promover grafiteiros e muralistas. A cada três meses a Prefeitura vai “liberar” espaços na capital para os grafiteiros que serão escolhidos pela Secretaria Municipal de Cultura. Ele batizou o projeto de Museu de Arte de Rua.
O contra-ataque não demorou a acontecer. Ande pela cidade e você verá pichações como “Doria, Pixo é Arte”, ou “Fora Doria”. Um dos grafiteiros famosos da Zona Leste pintou um Doria vestido de gari, varrendo grafites para debaixo do tapete e dizendo: “Isso não é arte! Romero Britto é ‘top’!”. Em um canteiro do Largo da Batata, outra mensagem: “Não dê vexame, São Paulo não é Miami”. Ou “Se sua vida não tem cor, não desbote a nossa”. Nos próprios muros apagados da 23 de Maio apareceram pichações com o nome de Dória, como uma assinatura do prefeito sobre o cinza. Memes nas redes sociais ironizando o prefeito se multiplicaram. Um deles faz a propagando de “Livro de Descolorir do prefeito Doria”. Diz: “São centenas de grafites da cidade de São Paulo prontos para serem descoloridos e cobertos com os mais variados tons de cinza”.
Não é só no Brasil que há este tipo cabo de guerra, mas as formas de administrar as divergências é que variam. Em Bristol, cidade britânica que é uma espécie de Meca dos grafiteiros, o prefeito Marvin Rees conseguiu acordo com os grafiteiros para criar uma rede de muros onde podem produzir sem ser perseguidos. A arte de grafite tornou-se uma das marcas de Bristol e contribui para o turismo. Em uma retórica oposta à do prefeito paulistano, a administração do britânico conseguiu o acordo justamente porque não declarou guerra, mas anunciou que quer trabalhar junto com os artistas.
A polêmica paulistana às vésperas do carnaval, rendeu, é claro, uma marchinha (veja abaixo): “Pinto por cima”, de Vítor Velloso, Gustavo Maguá e Marcelino Guerra. “Você pode pichar primeiro. Eu deixo mole e pinto atrás. Eu quero ver se eu pinto inteiro. Um muro de Moema até o Brás”.
Jornalista freelance especializada em cobertura internacional e política. Foi correspondente na Rússia do Jornal do Brasil e do serviço brasileiro da BBC. Em 2006 mudou-se para a Índia e foi correspondente do jornal O Globo. É autora do livro "Os indianos" (Editora Contexto) e colaboradora, no Brasil, do website The Wire, com sede na Índia (https://thewire.in/).