A guerra do spray paulista

SP – Sao Paulo – 14/01/2017 – Operacao Cidade Linda – Prefeito Joao Doria lanca a operacao Cidade Linda na Avenida 23 de maio ele pintou uma mureta as margens da avenida com os devidos equipamentos de protencao individual EPI,Foto: Suamy Beydoun/AGIF

João Doria pinta por cima dos grafites, cria polêmica e vira marchinha de carnaval

Por Florência Costa | ODS 11 • Publicada em 28 de janeiro de 2017 - 08:46 • Atualizada em 29 de janeiro de 2017 - 15:34

SP – Sao Paulo – 14/01/2017 – Operacao Cidade Linda – Prefeito Joao Doria lanca a operacao Cidade Linda na Avenida 23 de maio ele pintou uma mureta as margens da avenida com os devidos equipamentos de protencao individual EPI,Foto: Suamy Beydoun/AGIF
O prefeito João Dória apaga, pessoalmente, parte dos grafites da Avenida 23 de maio , em São Paulo. Foto de Suamy Beydoun/AGIF
O prefeito João Doria apaga, pessoalmente, parte dos grafites da Avenida 23 de maio , em São Paulo. Foto de Suamy Beydoun/AGIF

Uma parede em branco é um desperdício de ideias, dizia Paulo Leminsky (1944-1989). Por que citar um poeta em uma matéria sobre grafites? Porque as duas manifestações artísticas (sim, grafite é arte) andavam de mãos dadas nas primeiras intervenções urbanas em São Paulo, que hoje voltam a ser alvo de polêmica na cidade que começa a ser governada pelo empresário João Doria (PSDB).

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Pintei com enorme prazer três vezes mais a área que estava prevista para demonstrar repúdio aos pichadores

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Os grafites paulistanos surgiram das pichações poéticas no final da década de 60, início dos anos 70, na esteira do movimento global de contracultura. As ruas da Pauliceia Desvairada começaram então a ser pensadas como telas e cadernos. Eram palavras e traços de coletivos artísticos de contestação, muitas vezes ao silêncio imposto pela ditadura militar, como conta Antonio Eleilson Leite em seu livro “Graffiti em São Paulo: tendências contemporâneas” (2013). A primeira separação entre letras das pichações e dos grafites ocorreram entre os anos 70 e 80.

O ítalo-etíope Alex Vallauri (1949-1987) foi o grande nome da primeira geração de grafiteiros de São Paulo: ele era um andarilho em busca de espaços para expressar suas imagens que evocavam a cultura de massa e a mitologia urbana. Morto no dia 26 de março de 1987, já no dia seguinte amigos e admiradores ocuparam o famoso buraco da Paulista (um túnel no final da avenida) e deram vida ao labirinto com seus grafites. No dia 28 de março, um jornal de São Paulo decretou: “Está instituído o Dia Nacional do Grafite”.  Mas muitas guerras contra a arte de rua ainda seriam travadas na capital paulistana, assim como acontece em várias cidades do mundo até hoje.

Protesto bem-humorado transforma em arte a decisão do prefeito. Foto de Florência Costa

Nos últimos 40 anos esta manifestação artística trava um jogo de gato e rato com autoridades. Com o tempo o grafite (que nasceu nos anos 70 em Nova Iorque) ganhou reconhecimento do público a ponto de merecer exposições na Bienal, no Museu da Imagem e do Som e no Masp, que em 2018 fará uma exposição do grafiteiro nova-iorquino Juan-Michel Basquiat (1960-1988).  São Paulo foi palco do documentário Cidade Cinza (2013), de Marcelo Mesquita e Guilherme Valiengo, que conta a trajetória dos grafiteiros em busca de aceitação da sociedade e do governo.

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Se sua vida não tem cor, não desbote a nossa

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Mais eis que o prefeito Doria entra em cena e quatorze dias após sua posse ganhou manchetes no Brasil todo ao surgir na Avenida 23 de Maio usando óculos de proteção, máscara e avental e munido de um motocompressor. Ali, no maior mural a céu aberto da América Latina, com quase cinco quilômetros e meio de extensão, ele ajudou a apagar boa parte dos 15 mil metros quadrados de desenhos das muretas. Primeiro foram lançados jatos de água. Depois, as “telas” foram cobertas por uma tinta cinza que acabaram borrando o tênis Osklen de Doria, como observou um dos jornalistas que cobriu a ação.

O prefeito assumiu uma retórica combativa:  pediu para os moradores de São Paulo filmarem, fotografarem e denunciarem pichadores. “Pintei com enorme prazer três vezes mais a área que estava prevista para demonstrar repúdio aos pichadores”, disse. A Secretaria estadual da Segurança Pública destacou o Departamento Estadual de Investigações Criminais (Deic), grupo da Polícia Civil especializado nas investigações contra o crime organizado, para identificar pichadores de rua.

Uma das muitas manifestações de protesto contra os atos de João Doria. Foto de Florência Costa

Vários especialistas criticaram o prefeito. Para eles, os grafites, diferentemente das pichações, não poderiam ter sido apagados de forma impositiva. Como se fosse uma compensação, o novo prefeito anunciou que abrirá um “grafitódromo”, espaço que quer reservar para painéis e murais na cidade. A área, diz ele, teria lojas de itens licenciados para viabilizar o negócio e seria inspirada em um bairro de Miami Beach, o Wynwood Arts District.

No domingo 22, manifestantes fizeram um protesto, filmando os grafites que sobraram. Um grito de guerra foi lançado nas redes sociais: “#EuAmoGrafite”. A ONG MinhaSampa elabora um mapa colaborativo para identificar os murais da cidade e tentar protegê-los da cruzada cinza do prefeito tucano. Uma cópia do mapa será entregue a ele.

Em meio à “Guerra do Spray”, João Doria anunciou que vai criar um programa de grafite de rua para promover grafiteiros e muralistas. A cada três meses a Prefeitura vai “liberar” espaços na capital para os grafiteiros que serão escolhidos pela Secretaria Municipal de Cultura. Ele batizou o projeto de Museu de Arte de Rua.

O contra-ataque não demorou a acontecer. Ande pela cidade e você verá pichações como “Doria, Pixo é Arte”, ou “Fora Doria”. Um dos grafiteiros famosos da Zona Leste pintou um Doria vestido de gari, varrendo grafites para debaixo do tapete e dizendo: “Isso não é arte! Romero Britto é ‘top’!”. Em um canteiro do Largo da Batata, outra mensagem: “Não dê vexame, São Paulo não é Miami”. Ou “Se sua vida não tem cor, não desbote a nossa”.  Nos próprios muros apagados da 23 de Maio apareceram pichações com o nome de Dória, como uma assinatura do prefeito sobre o cinza. Memes nas redes sociais ironizando o prefeito se multiplicaram. Um deles faz a propagando de “Livro de Descolorir do prefeito Doria”. Diz: “São centenas de grafites da cidade de São Paulo prontos para serem descoloridos e cobertos com os mais variados tons de cinza”.

Não é só no Brasil que há este tipo cabo de guerra, mas as formas de administrar as divergências é que variam. Em Bristol, cidade britânica que é uma espécie de Meca dos grafiteiros, o prefeito Marvin Rees conseguiu acordo com os grafiteiros para criar uma rede de muros onde podem produzir sem ser perseguidos. A arte de grafite tornou-se uma das marcas de Bristol e contribui para o turismo. Em uma retórica oposta à do prefeito paulistano, a administração do britânico conseguiu o acordo justamente porque não declarou guerra, mas anunciou que quer trabalhar junto com os artistas.

A polêmica paulistana às vésperas do carnaval, rendeu, é claro, uma marchinha (veja abaixo): “Pinto por cima”, de Vítor Velloso, Gustavo Maguá e Marcelino Guerra. “Você pode pichar primeiro. Eu deixo mole e pinto atrás. Eu quero ver se eu pinto inteiro. Um muro de Moema até o Brás”.

Florência Costa

Jornalista freelance especializada em cobertura internacional e política. Foi correspondente na Rússia do Jornal do Brasil e do serviço brasileiro da BBC. Em 2006 mudou-se para a Índia e foi correspondente do jornal O Globo. É autora do livro "Os indianos" (Editora Contexto) e colaboradora, no Brasil, do website The Wire, com sede na Índia (https://thewire.in/).

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