El Niño multiplica enchentes e drama de famílias ribeirinhas no Rio Grande do Sul

Em São Borja, moradores das margens do Rio Uruguai sofrem com inundações históricas nos anos da presença do fenômeno. Mais de mil pessoas já foram afetadas pela cheia atual

Por Micael Olegário | ODS 11ODS 13 • Publicada em 3 de novembro de 2023 - 09:08 • Atualizada em 5 de maio de 2024 - 13:36

Casas invadidas pelas águas do Rio Uruguai em São Borja: El Niño multiplica enchentes e drama de famílias ribeirinhas (Foto: Micael Olegário)

José Luis do Nascimento Arias, 55 anos, é comerciante e passou mais da metade de outubro fora de sua casa, em São Borja, na fronteira oeste do Rio Grande do Sul. Ribeirinho, ele nasceu e cresceu na costa do Rio Uruguai e, em diferentes momentos da sua vida, teve de abandonar o seu quiosque no Cais do Porto por conta do avanço das águas, que deixou bares, restaurantes e casas submersas. “Geralmente, as enchentes são nos meses de inverno, mas esse ano está diferente, quando não está chovendo aqui está chovendo em outros locais que trazem água para cá”, comenta. No final de outubro, o Rio Uruguai chegou a atingir 14,35m, deixando 1.364 pessoas de 341 famílias desabrigadas ou desalojadas somente em São Borja; em toda a fronteira oeste, o número de atingidos passou de 8 mil.

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As enchentes no município gaúcho vêm sendo potencializadas pelo El Niño. Enquanto, no Amazonas, o fenômeno agrava a seca extrema, no sul do país o problema é o oposto: o excesso de chuvas, que provoca problemas tanto no Rio Grande do Sul, quanto em Santa Catarina e Paraná. “Nos últimos 45 dias, os excedentes de chuva tem se concentrado no norte do RS e em SC, cujas bacias hidrográficas desaguam através do Rio Uruguai cerca de 50% do volume precipitado na região”, explica a meteorologista Débora Simões, professora da Universidade Federal de Pelotas (UFPel).

Já saímos várias vezes de casa com as enchentes; só em 2014, além daquela grande enchente, tivemos que sair mais outras duas vezes

Roseni Boeira
Pescadora

Ao ser questionado sobre as piores enchentes que já presenciou, José Luís recorda dos anos 1983, 1997 e 2014. “Vivenciei várias enchentes: a maior que vi foi a de 1983. Teve outra em 1997, mais ou menos como essa atual. Depois tiveram várias enchentes de 10-12 metros. Em 2014, também foi uma enchente diferente”, relembra o comerciante. Nestes três anos citados pelo ribeirinho (1983, 1997 e 2014), o fenômeno El Niño foi um dos responsáveis pelas chuvas intensas e pelo consequente avanço anormal do Rio Uruguai.

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Nas enchentes de 2014, o pedreiro aposentado Luiz Carlos da Luz, há 27 anos morando na beira do rio, teve de ficar um mês fora de casa. Agora, ele e a filha, Maira Luce da Luz, estão há mais de 15 dias morando no Ginásio Municipal Cleto Dória Azambuja, que fica próximo ao Cais do Porto. “Estamos aqui, recebemos almoço e ajuda, mas não é como estar em casa. É brabo, complicado”, lamenta Luiz Carlos, que até tinha planos de voltar para casa, mas com o retorno da chuva na última semana, teve de continuar no ginásio.

A pescadora Roseni (de casaco rosa) em barraca improvisada para vender peixes: balsa improvisada para salvar os móveis da casa e esperar a água baixar (Foto: Micael Olegário)
A pescadora Roseni (de casaco rosa) em barraca improvisada para vender peixes: balsa improvisada para salvar os móveis da casa e esperar a água baixar (Foto: Micael Olegário)

Já o casal de pescadores Roseni Boeira e Hermínio Ricardo Mendonça encontrou abrigo na casa de vizinhos, como a cozinheira Andreia Nunes Silveira, depois da casa onde moram ser invadida pela água. Os dois filhos do casal, Ricardo Garcia Mendonça e Liandra Mendonça, e o neto Emanuel Mendonça, foram levados para ficar com parentes. Roseni e o marido ficaram perto do porto, porque dependem da venda dos peixes para se sustentar. “Como temos dois freezers estocados, antes da enchente, e as pessoas que nos procuram sabem que moramos aqui, não podemos sair para longe”, explica Roseni.

Com o passar dos anos, sempre que a chegada do El Niño é anunciada, os ribeirinhos começam a temer e lembrar das cheias históricas. “Já saímos várias vezes de casa com as enchentes; só em 2014, além daquela grande enchente, tivemos que sair mais outras duas vezes”, conta a pescadora. Neste ano, o nível do rio já havia alcançado a porta da casa do casal, porém, com as chuvas de outubro, a situação se agravou. A saída encontrada para salvar os móveis da casa foi improvisar uma balsa e colocar em cima tudo que a família tem. Enquanto Roseni dava entrevista, Hermínio pegava uma canoa para ir verificar o estado dos objetos da família, após recomeçar a chover.

A atmosfera planetária está cerca de 1,3°C mais quente que o normal, condição que estimula a evaporação das águas disponíveis em superfície, que se elevam na atmosfera aquecida e encontram um ambiente mais favorável à formação de nuvens de chuva

Débora Simões
Meteorologista e professora da Universidade Federal de Pelotas

Segundo Débora Simões, os volumes de chuva observados nos últimos meses na região sul ultrapassou mais de 3,5 vezes o esperado, o que gera um efeito em cadeia no nível dos rios e afeta as populações ribeirinhas. “Para exemplificar, até 30 de outubro, em Palmeira das Missões (RS) choveu o acumulado de 585,8mm, enquanto o esperado para o mês era de 157,6mm”. Mesmo que em São Borja o volume de chuva tenha ficado dentro do esperado, o excedente de outras regiões eleva as enchentes no município e em toda a bacia do Rio Uruguai.

O pedreiro Luiz Carlos, desalojado pela enchente, no Ginásio Municipal Cleto Dória Azambuja, em São Borja: 'Está brabo, complicado" (Foto: Micael Olegário)
O pedreiro Luiz Carlos, desalojado pela enchente, no Ginásio Municipal Cleto Dória Azambuja, em São Borja: ‘Está brabo, complicado” (Foto: Micael Olegário)

Desde que a enchente atual começou, a prefeitura de São Borja mobilizou equipes para auxiliar as famílias a fazerem suas mudanças e vem fornecendo mantimentos para as pessoas afetadas. Além disso, uma campanha de arrecadação de doações foi lançada. Nos últimos dias, com a redução do nível do rio, equipes foram organizadas para limpar as casas, no entanto, a prefeitura tem aconselhado muitos moradores a não voltar ainda, isso porque as previsões indicam mais chuvas.

Casas e ruas alagadas pela cheia do Rio Uruguai em São Borja: aumento de 60% na precipitação com o fenômeno El Niño e os efeitos da crise climática (Foto: Micael Olegário)
Casas e ruas alagadas pela cheia do Rio Uruguai em São Borja: aumento de 60% na precipitação com o fenômeno El Niño e os efeitos da crise climática (Foto: Micael Olegário)

El Niño deve se intensificar nos próximos meses

De acordo com a meteorologista Débora Simões, os efeitos do El Niño devem atingir seu pico nos próximos meses. “Espera-se chuva mais elevada que a normalidade em todo o Rio Grande do Sul e Santa Catarina, com probabilidade acima de 60% para o trimestre novembro-dezembro-janeiro”. Além do El Niño, que é um fenômeno natural, o aquecimento anormal das águas do Atlântico Sul também pode ser associado com os eventos extremos vivenciados no sul do Brasil, algo que a especialista atribui como um possível efeito das mudanças climáticas

“A atmosfera planetária está cerca de 1,3°C mais quente que o normal, condição que estimula a evaporação das águas disponíveis em superfície, que se elevam na atmosfera aquecida e encontram um ambiente mais favorável à formação de nuvens de chuva”, acrescenta a professora da Faculdade de Meteorologia da Ufpel.

O comerciante José Luís em área inundada de São Borja: "essas enchentes afetam muito a população ribeirinha; todo mundo que mora aqui tem que sair de casa" (Foto: Micael Olegário)
O comerciante José Luís em área inundada de São Borja: “essas enchentes afetam muito a população ribeirinha; todo mundo que mora aqui tem que sair de casa” (Foto: Micael Olegário)

Essas condições, somadas ao El Niño, tendem a criar um cenário de grande preocupação, especialmente para grupos mais vulneráveis. “Essas enchentes acima de 10m afetam muito a população ribeirinha, não só a mim; todo mundo que mora aqui tem que sair de casa”, destaca José Luis.

Sobre as alternativas para enfrentar esse cenário, Débora Simões defende o planejamento urbano adequado, com mapeamento de áreas de risco, atividades de treinamento dos órgãos de defesa para lidar com situações de emergência e para remover pessoas de áreas alagáveis, além de ações de preservação ambiental. “É fundamental a preservação da vegetação nas margens dos rios, pois ela evita o assoreamento do rio, preservando seu leito, ou seja, sua profundidade e área alagável, além de amortizar a velocidade de deslocamento do rio nestas áreas alagáveis”, acrescenta a professora.

Recentemente, o governo do Rio Grande do Sul assinou um contrato de R$1,5 milhão com o Conselho Internacional para Iniciativas Ambientais Locais, rede global especializada em desenvolvimento sustentável. A intenção do governo gaúcho é estimular a transição energética, com a redução das emissões de carbono e aprimorar as estratégias de enfrentamento às mudanças climáticas.

Micael Olegário

Jornalista formado pela Universidade Federal do Pampa (Unipampa). Gaúcho de Caibaté, no interior do Rio Grande do Sul. Mestrando em Comunicação na Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). Escreve sobre temas ligados a questões socioambientais, educação e acessibilidade.

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