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Consumir é um lixo. E mata

Documentário denuncia como a humanidade, escrava da patologia de comprar e acumular, contribui para a própria extinção

ODS 11ODS 13ODS 14ODS 15 • Publicada em 21 de março de 2025 - 15:15

Obra “Tsunami de Plástico”, assinada pelo ativista Mundano, exposta em Brasília. Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil

Dos incontáveis venenos que conspiram contra a vida humana sobre a Terra, o campeão de letalidade é sedutor, colorido, multifacetado, transversal, relaxante, gostoso irresistível, poderoso, estratégico, sexy – e seria possível listar vários outros predicados. Está entre as mais cobiçadas atividades humanas, sustenta milhões de pessoas e serve de alicerce ao funcionamento de sociedades inteiras.

Mas não se engane, você aí: ele, o consumo, está nos exterminando como espécie.

Leu essa? O capitalismo como acelerador da tragédia climática

Acordamos, dia sim outro também, para adquirir, conquistar, comprar, multiplicar, possuir, variar, acumular, ostentar, ter. Na outra ponta, uma indústria multisetorial se alimenta do exagero, se fortalece na irracionalidade dos seus clientes (alvos) e – aqui está o problema – envenena o planeta ao produzir lixo em quantidades apocalípticas.

Num dos conceitos mais óbvios da cruzada ambiental, não existe jogar fora, descartar, se livrar. Os objetos apenas mudam de lugar – mas trocam também de papel e, abandonados, tornam-se nocivos, até letais, para os viventes em volta. Países inteiros viraram depósitos de rejeitos, numa conta muito cara para toda a humanidade.

E só piora, pela ação muito competente dos donos do negócio, que se empenham em estratégias a cada dia mais precisas (matadoras, em sentido crescentemente literal) para turbinar seus produtos. Os ardis encantam pela sagacidade, que envolve do design à propaganda, do acesso à rapidez no atendimento, da praticidade à beleza das peças. Para resistir, só muita conscientização – mas ela anda em falta no mercado.

Está na Netflix documentário devastador sobre a mazela. “A conspiração consumista” (“Buy now!”, “Compre agora!” no título em inglês), do inglês Nic Stacey, passeia por diversos países, continentes e facetas do tema, entrevistando ex-executivos de algumas das maiores corporações do setor. É, em verdade, sobre as grandes vilanias do capitalismo. Moda, eletrônicos, indústria alimentícia, varejo – tudo lixo.

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A produção desfia conceitos embutidos na estratégia que bomba o consumismo. Compre agora! Desperdice mais! Esconda números críticos! Minta o tempo todo! Seduza! Controle os clientes! A consciência ambiental morre como bordão vazio, soterrado pela busca impiedosa do lucro.

Os números apresentados no documentário são bizarros:

  • A indústria da moda produz 100 bilhões de novos itens por ano. Só a Shein, mamute chinesa do comércio online, contribui com 1,3 milhão;
  • 2,5 milhões de sapatos são fabricados por hora;
  • 733 celulares surgem no mesmo período;
  • 13 milhões de telefones vão para o lixo a cada dia.

E o mais impressionante:

  • 12 toneladas de plástico são produzidas por segundo (no tempo em que você leu essa informação, ficaram prontas quase 50 toneladas).

A cara dos chefões do setor nem arde, diante do mal que estão impondo ao planeta. A produção bate doído na indústria da tecnologia, particularmente na Apple, principal arquiteta do conceito de tornar descartáveis equipamentos que poderiam durar muito mais. A empresa batalha de obsessivamente contra a durabilidade dos próprios produtos, a ponto de colar a carcaça deles, impedindo que sejam abertos para eventuais reparos.

A criadora do Iphone e de todo um fetiche comercial entrou na justiça contra o iFixit, iniciativa multinacional que defende o direito de as pessoas consertarem seus equipamentos. “Dá para consertar o futuro”, defendem (em tradução livre) os criadores da plataforma. E dão exemplos da barbárie – fones de ouvidos sem fio, por exemplo, não têm como serem abertos sem quebrar, impedindo a simples troca de baterias desgastadas pelo uso. Tem que comprar novos – e transferir os antigos, que poderiam continuar em operação, para a pilha de lixo mais próxima (ou distante).

Montanha de roupas descartadas no Nepal: indústria da moda é vilã do consumismo. Foto Ananya Bilimale/Unsplash

Aqui surge o conceito maquiavélico da obsolescência programada, narrado a partir de sua invenção, pelo cartel Phoebus, que reunia toda a indústria de lâmpadas. Em 1925, decidiu-se que elas não deveriam durar mais de mil horas (a primeira a ser comercializada funcionava por 1.500 horas; na época da estratégia, havia no mercado algumas que ficavam acesas por 2.500 horas e já havia sido inventada a de 100.000 horas, mas obviamente nunca comercializada).

A indústria de computadores, celulares e outros dispositivos transformou a prática em arte. Além de condicionar os componentes a falhar, impede a atualização de programas e sistemas operacionais; paralelamente, investe pesadamente na sedução por novas versões. Resultado: montanhas infinitas de lixo, que poluem mares, rios e terras a perder de vista.

“A conspiração consumista” entrevista ex-diretores de empresas que estão na ponta do hiperconsumismo, como o ex-presidente da Adidas Eric Liedtke e o ex-engenheiro da Apple Nirav Patel. A história mais triste é de Maren Costa, ex-braço direito de Jeff Bezos, fundador da Amazon, demitida por tentar fazer mudanças internas, a partir do ganho de letramento ambiental. Ela relata como ajudou a inventar mecanismos para induzir a compra online por impulso. “Você está sendo 100% manipulado”, avisa a hoje ativista. “Existe uma ciência para fazer comprar sem pensar. É uma ciência refinada, complexa. (…) Fui especialista nela”.

Aliás, ninguém apanha mais do que o poderoso chefão da Amazon (para surpresa de zero pessoas, um empolgado apoiador de Donald Trump). Bezos inventou a ferramenta “compre com um clique” e incentiva despudoradamente o desperdício e a irracionalidade no ato de consumir. A pressão internacional o fez participar da fundação do Climate Pledge, iniciativa para contribuir com enfrentamento à crise climática e a batalha pela descarbonização da economia. Tudo papo de vendedor. “De lá para cá, a Amazon aumentou as emissões em 40%”, denuncia Maren Costa.

Cena de “A conspiração consumista”: denúncia devastadora contra gigantes do capitalismo. Foto divulgação

O documentário mostra como fábricas e lojas destroem voluntariamente produtos não vendidos – e intocados – apenas para lançar novos. “Não queremos gente pobre usando nossa marca”, assume uma gerente. Também aparecem redes de restaurantes jogando comida fora, mas de maneira que não podem ser consumidas nem por pessoas em situação de rua.

A espiral consumista desemboca num passeio desalentador por países como Indonésia, Filipinas e Gana, destinos de boa parte dos equipamentos, roupas e calçados descartados mundo afora. “Somos pouco mais de 30 milhões de habitantes e recebemos 15 milhões de roupas por semana”, contabiliza, desalentada, a designer ganesa Chloe Assam.

A produção prova que os humanos somos manipulados pela indústria do consumo, que nos adoece crescentemente. O planeta paga a conta, num caminho aparentemente sem volta.

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