Cidades de pedestres

O Boulevard Olímpico, idealizado para os pedestres, hoje ocupado por barracas. Foto Joaquim Ferreira dos Santos

Do Rio a Copenhague, livro mostra as agruras e os prazeres de quem gosta de caminhar

Por Joaquim Ferreira dos Santos | ODS 11 • Publicada em 4 de setembro de 2017 - 09:11 • Atualizada em 4 de setembro de 2017 - 13:06

O Boulevard Olímpico, idealizado para os pedestres, hoje ocupado por barracas. Foto Joaquim Ferreira dos Santos
Rua de pedestres na Irlanda, exemplo que vem se espalhando por várias partes do mundo. Foto Gilles Lansard/Only World
Rua de pedestres na Irlanda, exemplo que vem se espalhando por várias partes do mundo. Foto Gilles Lansard/Only World

Caminhabilidade é uma palavra que não caminha bem pelo Rio. Quando pronunciada numa conversa, corre-se o risco de tropeçar em uma de suas sete sílabas, verdadeiros paralelepípedos atirados contra a boa fluência da oratória. Quando praticada pelas calçadas, a caminhabilidade corre o risco de tropeçar em alguma adversidade urbana, coisas como buracos, fradinhos, camelôs, postes, raízes de árvores e afins.

Capa do livro “Cidades de Pedestres, organizado por Victor Andrade e Clarisse Linke. Reprodução

A caminhabilidade, e acima de tudo a incapacidade e o sonho de realizá-la, é a estrela do livro “Cidades de pedestres”, uma coleção de artigos organizada por Victor Andrade e Clarisse Linke, da editora Babilônia. A palavra – um desses novos horrores do vocabulário, ao mesmo tempo de conteúdo fundamental para a felicidade moderna – está no subtítulo da publicação (“A caminhabilidade no Brasil e no mundo”). Soa ainda mais assustadora por ir na contramão do exercício simples que evoca.

É a maneira como os urbanistas resumem em sua linguagem curiosa as questões que possibilitam, por exemplo, o passeio desta coluna quinzenal pelas calçadas ou pela falta delas na vida carioca.  A “caminhabilidade” é o mesmo conjunto das práticas que, no texto dos cronistas, chama-se “dar uma volta”, “bater perna”, “ir ali na esquina ver como estão as modas”. É o novo grito dos técnicos que ecoa em defesa dos cronistas.  Flanar não é literatura – é saúde pública, segurança, mobilidade, democracia e base da organização social.

“A dimensão humana tem sido subvalorizada no planejamento urbano”, dizem no livro os urbanistas dinamarqueses Birgitte Bundesen Svarre e Jan Gehi. “As pessoas têm sido cada vez mais maltratadas. São espaços públicos limitados, cheios de obstáculos, com barulho excessivo, poluição, risco de acidentes e condições degradantes, independente de sua localização global, viabilidade econômica e estágio de desenvolvimento.” Segundo eles, esse quadro reduz a chance de a caminhada ser opção de circulação, com seus efeitos benéficos sobre a saúde do cidadão, a mobilidade e a economia de combustível. As funções sociais e culturais do espaço urbano também ficam ameaçadas.

O carioca Washington Fajardo diz que o cenário cultural pós-guerra associou a liberdade do indivíduo ao carro, o novo “shazan” que levará ao sonho da liberação poética, sexual, política e econômica. “A cidade do automóvel ganhou projeção absoluta. Nesse novo valor social, quem caminha é visto como um pária social”. Diante do novo deus-máquina, o atual flâneur ficaria diminuído, símbolo apenas daquele que não tem meios mais valiosos de deslocamento, um atravancador do progresso com sua cidadania lenta, sem diesel nas veias e sem condução, “um prisioneiro do chão urbano”.

A escala humana das cidades, dizem todos os articulistas do livro, desapareceu da prancheta dos prefeitos e secretários de obra. Num dos capítulos, gráficos mostram a baixa pontuação de condições amistosas aos caminhantes da região da Praça Tiradentes, no Rio. Largura das calçadas, material de piso, sombra, abrigo, qualidade do ar, iluminação, poluição sonora, fluxo de pedestres etc – tudo recebeu avaliação lamentável.

Na Praça Tiradentes ou na maioria das cidades, o espaço urbano deixou de ser o território do caminhável, mas o da velocidade. “Cidade de pedestres” revela que a vida do cidadão vale pouco nesses cálculos. A arquiteta Meli Malatesta discute, por exemplo, a fixação em 60km como a média aceitável para o trânsito urbano. “Este valor, considerado baixo e pouco perigoso em rodovias, mostrou-se incompatível e selvagem nos momentos de compartilhamento espacial com os fluxos a pé”. Meli fixa em 30km o aceitável. A esta velocidade, as chances de uma fatalidade num atropelamento são de 15%. Quando sobe para os atuais 60km, o índice de mortalidade sobe para 85%.

O Boulevard Olímpico, idealizado para os pedestres, hoje ocupado por barracas. Foto Joaquim Ferreira dos Santos

O pedestre virou um cidadão de segunda classe, um candidato a estrelar um funeral ou, em hipótese mais discreta, a uma cirurgia ortopédica (as calçadas da Praça Tiradentes, diz a pesquisa, são cercadas de buracos de todas as dimensões). O livro da “caminhabilidade” lamenta essas ocorrências, mas cita uma nova geração de pensadores urbanos. Prefeitos e arquitetos já percebem que estender aos pedestres um tapete vermelho, ou pelo menos calçadas mais dignas, é uma das maneiras mais baratas e democráticas de resolver o desprazer de viver nas grandes cidades modernas. Em Nova York, a prefeitura fechou Times Square e colocou cadeiras no meio da rua, transformando tudo numa imensa calçada. “Cidades de pedestres” cita exemplos semelhantes em Copenhague, Buenos Aires, Bogotá, São Paulo e Madri, focadas em melhorar a qualidade de vida dos que preferem, às quatro rodas, andar sobre as próprias pernas. Melhora a saúde, economiza gasolina, não polui e aumenta em muito a possibilidade de se encontrar alguém para realizar caminhadas ainda mais profundas.

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A dimensão humana tem sido subvalorizada no planejamento urbano. As pessoas têm sido cada vez mais maltratadas. São espaços públicos limitados, cheios de obstáculos, com barulho excessivo, poluição, risco de acidentes e condições degradantes, independente de sua localização global, viabilidade econômica e estágio de desenvolvimento

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No Rio, a administração do prefeito Eduardo Paes, da qual participou Washington Fajardo, percebeu a necessidade de se valorizar o padrão humano e dar fluidez à coreografia dos adeptos da caminhabilidade. Fechou-se ao trânsito de carros o final da Avenida Rio Branco. O Porto Maravilha, com seu boulevard tomado da demolição de um viaduto e do fechamento de uma avenida de trânsito intenso, é o maior exemplo de que sem cidadão feliz, com passarelas livres para ele exibir essa condição, não há cidade possível.

O Rio ganhava um espaço para respirar, se olhar nos olhos e caminhar em linha reta, sem obstáculos. Não é mais assim. Aos poucos, o boulevard foi abandonado pela nova ordem municipal e está sendo fechado ao livre trânsito dos pedestres. A prioridade voltou a ser outra. A paisagem civilizada de armazéns reformados, de galpões com grafites, do Museu do Amanhã e principalmente da calçada – tudo isso desapareceu para dar lugar à mais um imenso camelódromo. Vende-se de tudo no meio do caminho. Caminhabilidade que é bom, no Rio ninguém compra essa ideia.

Joaquim Ferreira dos Santos

Jornalista e autor de vários livros, entre eles "Feliz 1958 - O ano que não devia acabar" e as biografias de Leila Diniz, Antonio Maria e Zózimo Barrozo do Amaral. Organizou a coletânea "As cem melhores crônicas brasileiras" e também publicou livros como cronista. Define-se principalmente como um repórter de Cidade. No #Colabora, Joaquim escreve sobre o que vai pelas calçadas e espaços públicos do Rio.

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