Há muitas maneiras de se fazer uma cidade. Há as que levantam uma torre de ferro para serem apreciadas lá de cima, outras que capricham no desenho de seus prédios de aço recortando o céu azul.
Eu sou pé no chão. Acho que uma cidade se faz especial pelo conjunto de suas calçadas, aquilo que o tecnicismo dos urbanistas chama friamente de “espaço público”. Eu, andarilho, eu, peripatético, eu prefiro a definição do compositor Antônio Maria e aqui dou o primeiro passo digital sobre este grande pátio da felicidade ambulante, a alegria simples de caminhar numa “calçada cheia de gente a passar e a me ver passar”. Uma cidade é feita a partir desta possibilidade.
[g1_quote author_description_format=”%link%” align=”left” size=”s” style=”solid” template=”01″]O carioca perdeu o emprego, passou o ponto da loja, vendeu o apartamento. A esperança foi pras bicas. Quando ele chegou à calçada para tentar entender o que estava acontecendo, dar uma caminhada civilizatória e identificar novos rumos, viu-se vítima da desgovernança ao rés do chão. Cadê a calçada que estava aqui?
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Veja o que já enviamosO Rio de Janeiro é uma grande calçada à beira-mar plantada. Urge que apareça um historiador para contar o que foi transformador dos nossos destinos e aconteceu de grandioso, cultural ou pitoresco no caminho entre uma esquina e outra. Os palácios aqui são irrelevantes. Os que existiram, postos em pé pelos nobres europeus, pelos barões do café, esses já foram ao chão, humilhados pelo desprestígio. Os palácios ocupados pela República estão cercados pela polícia.
Existe acima de tudo a calçada e é a partir dela que veremos aqui no #Colabora, de 15 em 15 dias, como caminha a humanidade carioca. Foi por uma calçada que a garota de Ipanema passou. A cena era tão deslumbrante, o balanço tão doce, que a partir dela Tom e Vinicius, a tudo assistindo, musicaram uma revolução sofisticada. O Brasil nunca mais foi o mesmo. Pergunte ao mundo: o Rio de Janeiro é uma calçada onde a vida caminha em sandálias de plástico.
A pompa e a circunstância têm domicílio em outras cidades, algumas mais ricas, outras com melhor arquitetura. Aqui existe a graça divina dos diversos cartões postais e, entre eles, o calçadão de Ipanema, o calçadão de Madureira e tantos outros calçadões, o aumentativo bandeiroso de um sonho de cidade. Todos os seus moradores perambulando vadios ao sol carinhoso do outono. O pedestre finamente no poder, os estranhos marchando sem qualquer sinal de estranhamento.
Isso tudo pode parecer aos apressados um exercício alienante de poesia-numa-hora-dessas, uma nostalgia fora de hora daquele dia de setembro de 1952 em que Rubem Braga andava pela calçada da Rua Araújo Porto Alegre, no Centro. Ele viu uma borboleta amarela cruzando o cinza urbano e foi atrás dela. Cruzou a esquina com a Rua México, passou à esquerda pela calçada da Avenida Rio Branco, viu quando a borboleta se perdeu nos arabescos do prédio da Biblioteca Nacional – e dessa banalidade Rubem fez uma das páginas clássicas da literatura brasileira.
Uma rosa pode ser apenas uma rosa, como pedia o poema de Gertrude Stein, mas a calçada em que se pisa agora é mais que uma calçada – é o último patrimônio que resta ao cidadão comum. O carioca perdeu o emprego, passou o ponto da loja, vendeu o apartamento. A esperança foi pras bicas. Quando ele chegou à calçada para tentar entender o que estava acontecendo, dar uma caminhada civilizatória e identificar novos rumos, viu-se vítima da desgovernança ao rés do chão. Cadê a calçada que estava aqui?
O riso torto do carioca tem chamado o desvario na ocupação do espaço público de “caos-çada”.
Cadê aquela calçada sem bicicletas sorrateiras, sem cabines de PM, em que Roberto e Erasmo Carlos se encontravam, na Haddock Lobo com Matoso, na Tijuca, a esquina onde tiveram suas primeiras conversas e a partir delas fariam as primeiras canções da Jovem Guarda?
Roubaram também as calçadas sem fradinhos, sem bancas de jornais gigantescas, por onde Rubem Fonseca circulou nos anos 1970, entre a Saúde e a Cinelândia, para escrever “A arte de caminhar pelas ruas do Rio”.
Ibrahim Sued, no final dos anos 1960, saía de uma festa no edifício Chopin, no Posto 2, e ia caminhando, sem que tivesse a sensação de participar de uma corrida de obstáculos, até seu apartamento no Posto 6. Chegava vivo.
A calçada é a maneira mais simples e eficiente de se avaliar como anda a administração de uma cidade, em que ponto está a convivência social entre seus cidadãos. É mais que uma passarela de desocupados, mais ainda que um lugar para o supermercado estacionar os seus triciclos de entrega. É segurança pública, saúde idem, mobilidade urbana e qualidade de vida.
O compositor Billy Blanco dizia, num sambinha malandro, que o camelô era o dono da calçada. Foi no tempo do Onça, demagogia com a calçada alheia. Organizada em sua função básica, de oferecer espaço para que as pessoas se reconheçam em suas diferenças e convivam pacificamente com elas, a calçada é o primeiro passo de uma cidade que faz jus ao nome. É preciso que se devolva sua governança ao seu rei-dono, proprietário primeiro e único, o pedestre, este pária da civilização dos automóveis. O pedestre não polui, não engarrafa. Ao caminhar, o movimento básico recomendado para se manter um corpo saudável, ele libera a sua parte na verba da saúde para o estado gastar com outros mais necessitados.
O pedestre é o cidadão orgânico que exigem os tempos modernos e o espaço urbano deve ser organizado sob a sua perspectiva. Tirem esses postes inúteis do caminho, que ele quer passar com o seu andor. Ao pedestre que erra, ao itinerante que zanza, todo o pouco poder que da Constituição municipal lhe emana. Que possa recuperar a calçada. É a sua propriedade inalienável, onde tudo deveria convidar à liberdade de passear, paquerar, conversar, respirar, brincar ou protestar contra a corrupção que permite quiosques no meio do caminho.
Se a sorte estiver ao lado, que possa ver a garota de Ipanema flanar a caminho do mar.