Em sua segunda temporada, Cidade Invisível, produção da Netflix com uma narrativa recheada de elementos do folclore brasileiro, tem como cenário Belém do Pará, território indígena, transferindo para a Floresta Amazônica a trama que, no seu primeiro ano, era ambientada no Rio de Janeiro. Muitos locais históricos como o Mercado do Ver o Peso, o Mercado de Ferro da Carne Francisco Bolonha, ambos famosos cartões postais paraenses, e o Porto da Palha, à beira do Rio Guamá, foram escolhidos como locações, mas um local em particular chama a atenção por sua história de abandono e esquecimento social. Um lugar dentro de Belém, mas sem acesso à cidade, internet, água tratada, rede de esgoto e nem mesmo transporte. Quase uma cidade invisível: a Comunidade Ribeirinha Porto da Ceasa Maria Petrolina, onde vivem cerca de 80 famílias, resiste no Território do Murucutu através da religião, da comunicação e da cultura.
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Nesta temporada, já em exibição no canal de streaming, indígenas e ribeirinhos dividem o protagonismo na narrativa, com os personagens da primeira temporada: o policial Eric (Marco Pigossi), sua filha, Luna (Manu Dieguez) e Inês ou Cuca (Alessandra Negrini). Em Belém, eles encontram novos tipos do folclore nacional como a mula sem cabeça, interpretada por Simone Spoladore, e a Matinta Pereira, vivida por Letícia Spiller. Outra personagem chave na trama é Débora, a Víbora, interpretada pela atriz e artista plástica Zahy Tentehar, indígena do o povo tentehar-guajajara. “Espero que movimentos como este cheguem e inspirem todos os espaços, mesmo os menores, e pessoas das mais diversas origens, mas principalmente aos nossos primordiais, para existirem ou (re) existirem com amor, liberdade e dignidade. Agradeço a série Cidade Invisível por esta oportunidade, assim como agradeço o reconhecimento daqueles que nos assistem e se espelham”, afirma Zahy, em entrevista ao #Colabora.
Os caminhos da série levam também ao Menino Lobo – a comunidade do Porto da Ceasa foi o cenário onde está instalada a casa do personagem. Para chegar lá, a equipe da série conheceu as dificuldades enfrentadas pelos moradores do lugar. O primeiro indício de abandono aparece quando o asfalto termina, perto da Central de Abastecimento do Pará (Ceasa), empresa vinculada ao Governo do Estado, que abastece supermercados, mercados e feiras de toda a metrópole de Belém do Pará. Para lá do portão da Ceasa, no Bairro Curió Utinga, o asfalto dá lugar a uma estrada de chão batido, invisível para as autoridades estaduais e municipais, cheia de buracos e piçarras.
No caminho para a comunidade de 80 casas de madeira, o segundo indício do descaso e do esquecimento são as ruínas do Engenho do Murucutu, monumento tombado pelo Iphan (Instituto do Patrimônio Histórico Artístico e Nacional) desde 1981. Construído em 1711, era propriedade do arquiteto italiano Antônio Landi e se encontra completamente abandonado. “As ruínas são da época em que o povo Tupinambá andava livre pela região conhecida como Mairi que hoje é denominada Belém. Sentimos ainda que somos uma Comunidade Invisível ao olhar do Poder Público, sobrevivendo à insegurança alimentar, sem acesso à água potável, energia elétrica ou conexão com Internet. Tem pessoas que só ouviram falar da série, porque não têm aparelho ou mesmo uma conta da Netflix para assistir”, afirma o sociólogo Angelo Madson Tupinambá, diretor do Instituto Idade Mídia.
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Veja o que já enviamosDepois de passar pelas ruínas, é preciso seguir mais um quilômetro a frente até uma ponte de madeira antiga, estreita e apodrecida. É o principal corredor de entrada e saída da comunidade Porto do Ceasa, para moradores de todas as idades, crianças, adultos e idosos. São mais ou menos 80 casas de madeira com uma média de três a cinco moradores por residência. Para Zahy Tentehar, povo da Ceasa é um fragmento desse apagamento que os povos indígenas sofreram e ainda sofrem nesses anos todos de racismo estrutural e ambiental. “Cidade Invisível propõe mesmo esta reflexão sobre a invisibilidade daquilo que ficou velado, negligenciado e usurpado pelo colonialismo estruturado no Brasil”, afirma a atriz, nascida na aldeia Colônia, no território indígena Cana Brava, no Maranhão.
Os moradores, isolados e sem transporte para o acesso à cidade, encontram formas de socialização através de festas, aniversários e atividades religiosas como a missa celebrada mensalmente pelo padre Pedro Diocrésio em uma capela tão antiga quanto a ponte. A pequena casa de palafita está cheia de buracos e tábuas podres. Durante a celebração, a hóstia é iluminada pela luz que passa por entre as frestas e buracos da parede. Padre Pedro fala sobre a invisibilidade da comunidade e sobre os políticos que ignoram as necessidades do local. “Você vê que não tem estrada asfaltada pra cá, né? É porque, pra eles, não tem lucro. Essa gente faz negócios. Eles não querem investir pra cá porque aqui não dá lucro e nem resultado pra eles”, afirma o religioso.
Filha de Maria Petrolina, uma das fundadoras da comunidade, Cecília Ferreira, 62 anos, nunca ouviu falar em Netflix. “Meus pais foram os primeiros moradores daqui da comunidade e não sabiam ler e nem escrever quando receberam seu terreno daqui. Eu também não sei ler e só escrevo meu nome, mas eu sou uma referência aqui dentro. Outro dia veio um pessoal da Ufpa (Universidade Federal do Pará) aqui pra saber sobre nossa energia elétrica e eu mostrei aí fora o cabo elétrico e o cano de água que a gente usa pra todo mundo. A água agora tá amarelada e barrenta. A gente usa pra tomar banho, mas dá coceira no corpo. Pra beber e lavar os alimentos só se for água mineral que a gente compra quando pode”, afirma Cecília, que nem viu as gravações de Cidade Invisível na comunidade.
Os moradores queixam-se também da falta de comunicação, de conexão com a internet e de transporte. “A falta de oportunidade de emprego por causa do transporte e da falta de acesso à internet é uma coisa absurda aqui. Quem vai dar oportunidade de emprego pra um jovem que mora aqui e que não tem acesso a um ônibus? Pra ir trabalhar na cidade você precisa de acesso ao transporte. Nenhum jovem consegue trabalho aqui por isso e pela falta de um cabeamento de internet. como manda email ou currículo sem internet?”, questiona a pedagoga Carmen Lopes, 55 anos.
O transporte dentro da comunidade é inexistente. O final das linhas de ônibus está a 3,3 km da entrada da Central de Abastecimento, no Bairro do Curió Utinga. E, para chegar na comunidade Porto da Ceasa, são mais mil e trezentos metros. “Essa comunidade está dentro de Belém e seus moradores são invisíveis. Entra prefeito e sai prefeito e essa comunidade não recebe nada e nenhuma atenção. Olha essa ponte? Imagina se um idoso passa mal aqui de madrugada ou se uma criança é mordida por uma cobra e precisa ser deslocada daqui rapidamente. Como um socorro entra aqui com uma ponte dessas?”, protesta a servidora pública Catarina Lima Ribeiro, catequista da Paroquia Sagrada Família.
Na estrada que dá acesso à comunidade, uma torre da Concessionária de Energia Equatorial, responsável por levar energia para todo o Pará – menos para a comunidade Porto da Ceasa que depende de um único cabo, conectado à rede da Ceasa, para ter eletricidade. Abaixo da torre, há uma placa de identificação da empresa espanhola Cobra Brasil, que trabalha com instalações de redes elétricas, de água, gás, comunicação e atua em 50 países. A placa indica que a torre é a primeira de uma série de 336 torres que vão em direção à cidade de Tucuruí. Na comunidade, o fornecimento de energia pelo tal cabo é precário, o suficiente apenas para a luz chegar nas. A equipe da produção levou geradores para filmar Cidade Invisível.
Outra forma de resistência dentro da comunidade é a comunicação através das ondas da Rádio Ribeirinha Murucutu, uma rádio comunitária que faz parte do Instituto Idade Mídia que estimula a cultura dentro do Porto da Ceasa com eventos e ações que promovem a cultura originária e tradicional. “As gravações de Cidade Invisível despertaram o olhar de Belém para comunidade ribeirinha Porto Ceasa, esquecida à margem do Rio Guamá, como à margem do interesse e opinião pública”, destaca Angelo Tupinambá, diretor do instituto, lembrando que a Rádio Murukutu está presente para trabalhar mecanismos de comunicação popular e comunitária.
Embora a repercussão da série tenha sido positiva para quem vive no seu cenário, o sociólogo tem pouca esperança em melhorias para Porto do Ceasa, mas confia na força dos ancestrais indígenas. “Estamos no Território Histórico e Ancestral Murukutu, lugar de memória e encantarias, morada de serpentes e Uirá Juruparí nas matas e igarapés. No fim, continuaremos invisíveis aguardando resultados para uma próxima temporada”, afirma Angelo Madson Tupinambá.
Território indígena
A segunda temporada de Cidade Invisível estreou também com a responsabilidade de rechaçar as críticas recebidas pela primeira – de apropriação cultural dos Encantados do folclore brasileiro, ao levar a trama para o Rio de Janeiro, e da baixa representatividade indígena, apesar de lidar com temas tão ligados aos povos originários. “Estar como uma das protagonistas, ao lado de outros colegas indígenas e não indígenas, experimentando esse movimento de equidade e valorização do artista por sua arte, mas ainda com espaço para ser representatividade e visibilidade para nossos iguais, é uma honra imensurável”, afirma Zahy Tentehar.
Com os cenários na Amazônia, a série aborda agora também a proteção da floresta, ameaçada por garimpeiros que matam indígenas com o aval das autoridades locais. Em entrevista durante as filmagens, o ator Marco Pigossi, que já protagonizou produções da Netflix faladas em inglês, espanhol e português, destacou o protagonismo das mulheres na segunda temporada. “As forças femininas são muito presentes na cultura dos povos originários”, comentou na ocasião. Na série, personagens indígenas se expressarem em idiomas nativos da região como o tucano e a língua dos tentehar-guajajara. “Acredito que trazer à luz tais reflexões, potencializando nossas consciências para nossas verdadeiras e essenciais riquezas, como nosso bioma, nossa cultura, nossos encantados e tudo ao que se refere às nossas referências originárias, merece ser celebrado”, frisa Zahy.
A primeira temporada de Cidade Invisível, criada pelo carioca Carlos Saldanha, alcançou o ranking dos mais vistos de 40 países, uma exportação bem-sucedida de série brasileira. A nova trama – com cinco capítulos – também vem sendo bem recebida, com destaque para o protagonismo dos indígenas como principal força de defesa de um patrimônio ameaçado, os nossos recursos naturais.
Com os bons números e aceitação popular no streaming, Cidade Invisível talvez siga para sua terceira temporada apresentando cada vez mais novos personagens encantados do folclore brasileiro. Em Belém, alheia ao sucesso da série, a Comunidade Porto da Ceasa Maria Petrolina vive dentro da visão de Cidade Invisível. Os ribeirinhos na cultura amazônica são um povo celebrado de forma lúdica, mas que sobrevive das migalhas de uma metrópole que precisa enxergar a importância do acesso à cidade para eles. Comunidades como o Porto da Ceasa anseiam o fim dessa invisibilidade social e cultural sem acesso aos direitos básicos. É preciso primeiro acessar água, energia, transporte e internet. Dessa forma será possível, quem sabe, acessar uma conta da Netflix.