ODS 1
Receba as colunas de Oscar Valporto no seu e-mail
Veja o que já enviamos‘Ainda estou aqui’ e as casas que não estão mais na orla
Imóvel onde morava a família Paiva - quase um personagem do filme indicado ao Globo de Ouro - na orla do Leblon foi demolida para dar lugar a prédio de luxo como a maioria das casas de frente para o mar na Zona Sul do Rio
Rubens Paiva era paulista de Santos, Eunice era paulistana, os cinco filhos do casal nasceram em São Paulo. Mas ‘Ainda Estou Aqui’, indicado ao Globo de Ouro, é um filme profundamente carioca; o Rio de Janeiro é o cenário da trama e do drama do desaparecimento do deputado cassado, no longa dirigido por Walter Salles. Mais ainda que a cidade, a casa dos Paiva no Leblon é uma coadjuvante importante no filme, ajudando a mostrar o cotidiano de uma família de classe média alta e seus amigos durante a ditadura militar.
Para quem nasceu neste século 21 ou nos últimos anos do século 20, uma casa na orla do Leblon parece coisa de filme de ficção. A casa não está mais aqui – mas, em 1971, ano do sequestro e assassinato de Paiva pelos agentes do regime militar, ainda existiam algumas casas de frente para as praias do Leblon e da vizinha Ipanema. A especulação imobiliária, que já havia derrubado quase todas as casas à beira-mar em Copacabana, ainda começava a avançar para as praias um pouco mais ao sul. Hoje, não há mais casa alguma em frente à praia do Leblon – a última foi abaixo em 2020.
‘Ainda Estou Aqui’ não esclarece porque Paiva – deputado pelo PTB por São Paulo, cassado em 1964, e exilado por alguns anos – decidiu retomar a vida no Rio de Janeiro. Talvez porque o então o estado da Guanabara era uma espécie de trincheira de oposição civil à ditadura. Em 1965, a Guanabara elegeu governador Negrão de Lima, do oposicionista PSD, contra o candidato (Flexa Ribeiro) da UDN, do governador Carlos Lacerda, que apoiou o golpe mas não conseguiu fazer o sucessor. As vitórias de Negrão no Rio e Israel Pinheiro em Minas, ambos ligados a Juscelino Kubitschek, são consideradas determinantes para a decisão dos militares de acabarem com partidos existentes e estabeleceram o bipartidarismo com a governista Arena e o oposicionista MDB.
Receba as colunas de Oscar Valporto no seu e-mail
Veja o que já enviamosFoi o Rio de Janeiro o palco dos maiores protestos públicos contra o regime – inclusive a famosa Passeata dos 100 mil, em 1968. Em 1970, na Guanabara, o MDB surrou a Arena: elegeu os três senadores (deveriam ser duas vagas em disputa, mas a ditadura cassou Mario Martins, eleito em 1965) e 13 dos 20 deputados federais. Da Guanabara, saíam também as denúncias contra as arbitrariedades e a violência da ditadura porque aqui ainda estava a grande maioria do corpo diplomático – os sequestros dos três embaixadores trocados por guerrilheiros ocorreram no Rio – e dos correspondentes de veículos estrangeiros; nova capital havia sido inaugurada em 1960, mas Brasília, 10 anos depois, ainda era uma cidade em construção.
O filme mostra a residência dos Paiva como um local de confraternização e alegria, típicas de um casal ainda jovem e com filhos entre 6 e 18 anos, mas sob a sombra macabra da ditadura. Personagens reais dessa resistência civil e desarmada ao regime militar são retratados ali: o empresário e editor Fernando Gasparian (depois deputado constituinte em 1988), o casal Baby Bocayuva – como Rubens Paiva, engenheiro e deputado federal cassado em 1964 – e Dalal Achcar, bailarina, o jornalista Raul Ryff, secretário de Imprensa do governo João Goulart. A ampla residência dos Paiva, na esquina da Delfim Moreira (a avenida da orla do Leblon) com a rua Almirante Pereira Guimarães era palco de muitos encontros festivos – Walter Salles, diretor de ‘Ainda estou aqui”, frequentou o lugar como amigo de uma das filhas de Eunice e Rubens.
Ainda havia casas – volto ao começo – na orla do Leblon e Ipanema no começo dos anos 1970. Mas elas foram uma a uma sendo engolidas pela especulação imobiliária acelerada da década; enquanto eram demolidas as casas da orla da Zona Sul, subiram prédios de mais de 20 andares na Barra da Tijuca, no caminho para a Zona Oeste. A casa dos Paiva – como a Eunice de Fernanda Torres (indicada ao Globo de Ouro de melhor atriz) relata aos filhos ao comunicar a mudança de volta para São Paulo – iria virar um restaurante. La Cave Aux Fromages chegou a fazer sucesso entre a elite carioca com seus queijos e vinhos importados, mas não chegou ao fim da década. Nos anos 1980, subiu ali o edifício Saint Paul de Vence, de oito andares, com apartamentos avaliados em até R$ 20 milhões.
Naquela década, também subiu, no terreno antes ocupado por uma casa de dois andares, o Edifício Juan Les Pins, na esquina da Cupertino Durão: considerado um dos mais luxuosos da cidade, teve um apartamento à venda em 2023 por R$ 65 milhões (em ‘Ainda Estou Aqui’, a casa dos Paiva é inserida por computação gráfica no lugar onde está o prédio dos apartamentos milionários. Na Delfim Moreira, tinha até um cinema, o Miramar, que fechou em 1974 para dar lugar a outro edifício. Na orla do Leblon, não sobrou uma casa sequer. A última – um sobrado de dois andares construído na década de 1930, entre as ruas José Linhares e João Lira – foi demolida em 2020 e deu lugar a um modernoso edifício de seis andares, concluído agora em 2024; um apartamento ali estava avaliado em R$ 38 milhões.
Em Ipanema, há apenas duas casas na orla. Construída na primeira década do século 20 pelo médico Álvaro Alvim, o casarão de três andares no número 176 da Vieira Souto abriga hoje a Casa de Cultura Laura Alvim, nome da herdeira que doou a casa ao governo estadual, com o compromisso de que ela abrigasse atividades artísticas e culturais (e não poderia ser vendida). A outra casa preservada abriga hoje um restaurante – Il Piccolo – do mesmo proprietário do restaurante vizinho, em um imóvel há décadas descaracterizado (já foi restaurante, boate, loja de roupas).
No Leblon e em Ipanema, os prédios da década de 1980 ainda subiram com regras urbanísticas que impediam a ocupação total do terreno e garantiam mais circulação de ar, diferentemente do paredão de edifícios que se tornou a Avenida Atlântica, em Copacabana, que viu suas últimas casas desaparecerem neste século 21: na altura do Posto 5, a sede do antigo Consulado da Áustria foi demolido para dar espaço ao Hotel Emiliano, 2017; na mesma década, veio abaixo a Casa de Pedra, construída no começo do século 20 e só demolida após a morte da proprietária com 101 anos (um novo prédio só subiu agora após longa disputa judicial).
Esse desaparecimento das casas à beira-mar na Zona Sul do Rio fez com que a equipe de ‘Ainda Estou Aqui’ quebrasse a cabeça à procura de um imóvel semelhante para as filmagens. Mas os produtores acharam a casa perfeita para contar essa página infeliz da nossa história na Urca, bairro que, na maior parte, sobreviveu ao apetite das imobiliárias, graças aos limites impostos pelo Projeto de Estruturação Urbana, feito por decreto ainda na década de 1970, e, ironicamente, tem muitos militares entre seus moradores pela proximidade da Fortaleza de São João (com cinco unidades do Exército), a Escola de Guerra Naval e o Instituto Militar de Engenharia.
Apoie o #Colabora
Queremos seguir apostando em grandes reportagens, mostrando o Brasil invisível, que se esconde atrás de suas mazelas. Contamos com você para seguir investindo em um jornalismo independente e de qualidade.