ODS 1
Velas da inclusão
Projeto em Brasília que ensina a velejar melhora a rotina e a autoestima de pessoas com deficiência e limitações físicas
Bárbara Lemos tem 46 anos. Complicações no parto, quando ela nasceu, a deixaram com sequelas neurológicas. Ela tem paralisia cerebral e anda em um carrinho elétrico, porque sozinha não conseguiria colocar em movimento uma cadeira de rodas. Além disso, Bárbara é uma pessoa com deficiência cognitiva e não é compreendida quando fala. Quem a olha conclui rapidamente que sua autonomia é zero e jamais imaginará que Bárbara é velejadora. E mais: que navega sozinha.
Bárbara é uma das 120 pessoas atendidas pelo projeto Vela Adaptada, em Brasília. Criado há 15 anos, o Vela Adaptada ensina a velejar pessoas com deficiências visuais, intelectuais e físicas que dificultam a locomoção. Por causa do projeto, todos os sábados de manhã o Lago Paranoá, marco hídrico da capital do país, é palco de histórias de superação não apenas física, mas também, e principalmente, emocional.
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O projeto é uma iniciativa de Mauro Osório, servidor público do Tribunal Superior do Trabalho, uma das principais instâncias da Justiça no país. Com 62 anos, Mauro tem de vela quase o mesmo tempo que tem de idade. Ele começou a velejar aos cinco anos, na Lagoa Rodrigo de Freitas, no Rio, onde nasceu. Quando a família se mudou para Brasília, o garoto deparou com os ventos da capital do país que crispam as águas do Paranoá e desde então não largou mais os barcos a vela. Ele dá aulas do esporte desde os dezoito anos e em 2008 surgiu a oportunidade de preparar atletas para as Paraolimpíadas de Londres, quatro anos depois. Já no ano seguinte, 2009, percebeu a necessidade de não restringir o projeto à preparação para competições, e então surgiu a outra vertente do Vela Adaptada, a do acolhimento, que tem cumprido um papel de inserção na sociedade de quem possui limitações físicas, mentais e cognitivas.
No projeto, acolhimento não abarca apenas a pessoa com limitação que chega para aprender a velejar. O acolhimento também diz respeito à família, peça fundamental na construção da independência de quem tem dificuldades para se locomover, ou não enxerga ou possui alguma dificuldade de compreensão. “Uma das mais importantes (vertentes) é essa do acolhimento da família. Sai mãe, pai, todo mundo junto (no barco) e todo mundo alegre por estarem junto às crianças. E isso também foi uma maneira de quebrar a dificuldade de trazer uma criança com deficiência para o Lago Paranoá”, explica Mauro Osório.
É exatamente o que motivou o casal Maria de Fátima Sampaio e Olivan da Silva a percorrerem 25 quilômetros entre Santa Maria, periferia de Brasília, e a orla sul do Paranoá levando o filho Pedro, de 12 anos, que, na cadeira de rodas, tem dificuldades para falar e mexer braços e pernas. Após quase uma hora de passeio, em que velejaram pela primeira vez, saíram com a esperança de que se Pedro realmente começar no esporte haverá melhoria significativa na coordenação motora e aumento do nível de independência do menino. “Pelo conhecimento que temos, acompanhando Pedro, acredito que possa fazer diferença para ele melhorar os movimentos; ele tem muita dificuldade na parte física, como mexer em uma cadeira. Acredito que vá ajudar no movimento dos braços”, resume o pai do garoto, esperançoso.
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Veja o que já enviamosOs sábados do Vela Adaptada são o passeio preferido de Ana Clara Xavier de Lima, de nove anos. Ela é cega de nascença e conta, com alegria, que quando está em um barco, velejando, se sente ‘empoderada’, para usarmos uma expressão bem contemporânea. “É como se fosse uma coisa que eu fizesse sem precisar de ajuda, eu posso fazer com minhas próprias mãos e ‘ver’ essa manobra acontecendo” – e a menina descreve a sensação de comandar a pequena embarcação. “Quando eu tô velejando, eu escuto o barulho da água, me sinto mais relaxada. Eu ‘vejo’ o barco virar, eu gosto de colocar a mão na água” – ela continua descrevendo o que sente, e, em seguida, explica como é o “ver” em seu caso. “Quando o barco vira, eu consigo ouvir o barulho da vela e ‘ver’ que ele tá virando pro outro lado, sentir ele virando. O vento muda de direção (quando o barco vira) e eu consigo imaginar pelo barulho da água. Tem vezes que ela é mais calma, mais agitada. Tem vezes que tem vento, tem vezes que o vento é mais parado”, completa, sorrindo.
No dia em que visitamos o projeto, Ana Clara foi com a mãe e mais quatro crianças, duas com transtorno do espectro autista e outras duas com baixa visão, todas também moradoras de Santa Maria. Ana Clara está no projeto há três anos e a autonomia que adquiriu para navegar a leva a disputar regatas. Vendo a menina com tanta desenvoltura manejando a vela, a única pergunta que salta à cabeça é: como se ensina a velejar alguém que não enxerga, ou no caso de Ana Clara, que jamais enxergou. “A gente trabalha muito com as referências, principalmente de sensações deles”, explica Mauro Osório. “A gente sai pra velejar rumando para a outra margem. Em geral o vento vem na perpendicular. As crianças ficam no mesmo lado do barco. Quando a gente vai prum lado, a gente pede que levantem as mãos e indiquem de onde vem o vento. Quando estamos indo, o vento vem no rosto. Quando voltamos, o vento vem na nuca. A gente começa a montar um quadro na cabeça deles dessa posição geográfica da ida e da vinda”, disserta Mauro.
Ele classifica como “uma bússola natural” este método. “Aí entra o comando. O barco tem um sentido em que vai com a vela prum lado, e quando volta, ele volta com a vela pro outro. Só que para fazer o giro e voltar, o barco passa pela linha do vento, as velas panejam (se esvaziam). Quando ele passa pro outro lado, as velas param de fazer barulho, porque enchem (de vento) de novo. É a hora em que eu falo para eles: vocês jogam o leme para fazer o giro, vocês vão ouvir as velas. Quando as velas pararem de fazer barulho, é a hora de colocar o leme reto de novo. E é exatamente o sentido em que eles estão retornando”, completa.
Para fazer com que uma pessoa com deficiência visual possa comandar sozinho um barco, Mauro é ajudado por uma especialista em baixa visão, igualmente voluntária do Vela Adaptada. É a professora Silvia Antônio Oliveira Pinheiro, que trabalha no Centro de Ensino Especial de Deficientes Visuais, uma escola pública no bairro da Asa Sul e que atende desde os primeiros meses da criança que nasce cega e passa por todas as faixas etárias de pessoas com problemas de visão, inclusive quem, ao longo da vida, deixou de enxergar.
Sílvia explica que as crianças que já nasceram cegas, a chamada cegueira congênita, têm os demais sentidos mais aguçados, uma compensação automática feita pelo cérebro. “Já aqueles que perderam a visão adultos aprendem a trabalhar os outros sentidos e o Vela Adaptada ajuda muito”, garante a professora, frisando a capacidade que a prática tem de unir a família em torno da pessoa com deficiência. “É um momento com a família. A gente fala ‘Você vai comandar o barco com a sua família dentro’, isso dá a sensação de responsabilidade. A mãe observa o desenvolvimento do filho, as capacidades, ele usando os sentidos. Dessa forma, a gente vai trabalhando os sentidos remanescentes e a família vai entendendo. É uma forma lúdica de provar a capacidade deles, o que é exercitado pela escola durante as aulas, trabalhando a saúde mental e o bem-estar do contato com a natureza e a família”, resume, lembrando que a rotina de uma criança com deficiência é muito puxada, devido a uma grande quantidade de terapias. “Ela tem que trabalhar muito para conseguir uma igualdade”.
Para superar as limitações
Independentemente da deficiência que a pessoa tem, o que se nota é que velejar foi a forma encontrada por todos ali de provarem a si mesmos que são maiores que as próprias dificuldades que enfrentam, muitas vezes desde o nascimento. Bárbara Lemos parece ser o caso mais emblemático entre todos. Quando elogiamos o vídeo em que ela aparece velejando sozinha, Bárbara, em seu modo peculiar de se expressar, credita o sucesso ao instrutor Jorge Luiz Pinto Carvalho, de 65 anos, que, a exemplo de Mauro Osório, veleja desde bem criança.
A convivência de mais de cinco anos, tempo em que Bárbara está no projeto, fez com que Jorge se tornasse seu intérprete. É ele quem responde às perguntas que fazemos à Bárbara, esperando que ela termine de se expressar com a dificuldade que tem para isso. “Você acreditava que um dia conseguiria velejar sozinha?”, perguntamos a ela, que responde com um gesto de cabeça em seu modo de falar. “Um pouquinho” – Jorge traduz, sorrindo. E emenda: “e eu sempre disse que um dia ela iria velejar sozinha (o que aconteceu pela primeira vez dois anos atrás)”.
Perguntamos o que dava a ele essa certeza. “Porque aqui, quando as pessoas chegam a gente diz que nada é impossível”, responde, assertivo, e usa como frase de incentivo o refrão da música Liberdade Pra Dentro da Cabeça, da banda brasiliense Natiruts, canção que sempre canta para os alunos. “Quando a gente se prende a uma dificuldade, a gente não consegue desenvolver aquilo (a capacidade) que temos de maior força, que é romper as barreiras”, ilustra, completando que procura fazer com que os alunos entendam isso não apenas como incentivo nas aulas de vela, mas também para a rotina de todos eles. Por falar em rotina, o que a vela melhorou no dia a dia de Bárbara, uma pessoa com severa dificuldade de locomoção? perguntamos. “Melhorou a paciência, a desenvoltura. Ela tinha muitos espasmos (devido aos problemas neurológicos). Dentro do barco ela não tem, devido ao nível de concentração que a atividade exige”, Jorge responde, com base em sua observação sobre o desempenho da aluna.
Para alguns, a superação das limitações físicas começa antes mesmo de chegar ao Lago Paranoá. “As dificuldades para eu chegar são aquelas que todos os cadeirantes conhecem do dia a dia”, resume Cícero Sales, de 57 anos e paraplégico há trinta. Ele mora no Riacho Fundo, outra cidade da periferia, distante cerca de 20 quilômetros do Lago. Embora mais perto do que Santa Maria, Cícero precisa sair de casa às seis da manhã para chegar às nove, quando começam as aulas. Ele pega dois ônibus e o metrô, mas está sujeito ao descaso do Estado e da iniciativa privada com quem tem dificuldade de locomoção. Cícero conta que muitas vezes os elevadores instalados para cadeiras de rodas nos ônibus não funcionam, e então ele fica à mercê da boa vontade do motorista da vez. “Alguns me ajudam a subir; outros são ignorantes, descartam a gente, mandam a gente esperar outro ônibus, mandam a gente ligar no Dftrans (que fiscaliza o transporte público no DF), que não funciona. Fora os motoristas que quando veem um deficiente físico esperando no ponto, não param”, detalha Cícero, acrescentando que há sábados em que passam quatro ônibus, até vir um que tenha o elevador funcionando.
Vencido o périplo do transporte público, é hora de Cícero experimentar a liberdade de estar em um barco velejando. Com pena, fala de colegas que, segundo ele, não têm coragem de superar as dificuldades, preferindo ficar em casa. “A gente é preso a uma cadeira de rodas, e se todos os colegas soubessem a emoção que a gente sente ao velejar, sentir a brisa, o sol… É coisa inexplicável, é coisa de Deus mesmo. É até difícil explicar, mas quando a gente tá lá no barco, a gente se sente livre, se sente capaz”, resume Cícero.
Há dois anos no projeto, ele não titubeia em garantir que velejar melhorou sua a mobilidade e seu equilíbrio, sem falar na autoestima e na confiança para enfrentar a vida e os preconceitos. “Às vezes, a discriminação vem da nossa própria família, de muitas pessoas que não acreditam na capacidade que a gente tem. E todo mundo é capaz. Então, cada dia a gente mata um leão”, conta orgulhoso, acrescentando que é respeitado e reconhecido e que, enquanto a esposa trabalha, ele lava, cozinha e passa roupa, e que, além de velejar, ainda pratica natação, musculação e arco e flecha. “A vida te dá opção, cada um tem livre arbítrio para fazer o que quer e o que gosta. Então, eu escolhi fazer o que é bom para o meu corpo”.
Voluntários tocam projeto
A sensação de liberdade é traço comum entre os alunos do Vela Adaptada. “Velejar é ser livre, então a gente que tem dificuldade de locomoção, quando a gente tá ali na água, a gente voa, né? Não há qualquer limitação para a gente na água”, resume a servidora pública Carmem de Oliveira Charchar, que teve poliomielite na infância, o que a fez se engajar em campanhas pró-vacina. Carmem destaca que os barcos utilizados no projeto são os australianos da classe hansa, dotados de uma tecnologia conhecida como ‘joão bobo’, que faz com que a embarcação aderne sem risco de virar, garantindo tranquilidade a quem possui limitação física.
No Vela Adaptada ninguém paga ou recebe nada pelas aulas, é um trabalho inteiramente voluntário, começando pelo próprio Mauro, criador do projeto. A ele se juntaram outros velejadores, que a exemplo de Jorge Luiz, o intérprete de Bárbara, dedicam as manhãs de sábado a fazer com que pessoas com dificuldades físicas superem suas limitações. “Eu fico contando os dias pra gente vir aqui. Porque é uma satisfação tão grande, a gente sai mais leve, muito alegre e eu sinto muita falta quando não posso vir”, conta Felipe Montenegro Oliveira, que ensina a velejar pessoas com deficiência física, visual, de audição e fala, além de síndrome de down e autismo. “A alegria do outro te traz uma satisfação muito grande. Não é só o outro que ganha, o trabalho voluntário te traz uma alegria maior do que a dele”, define Maria Dione Tubino, que está no projeto desde o início e cita como exemplo dessa alegria o dia em que viu Bárbara velejar sozinha pela primeira vez. “A gente se sente responsável por eles vencerem dificuldades”.
O Vela Adaptada é construído com os braços dos voluntários e com doações (como foi o caso dos barcos pela embaixada da Austrália), a permissão de um restaurante e de um clube à beira do Lago Paranoá para uso de seus decks e o apoio de entidades como o Instituto BRB, ligado ao Banco de Brasília. Em 2024 Mauro Osório espera conseguir do Governo do Distrito Federal autorização para a construção de um píer em área pública que abrigue o projeto, inclusive com ponto de ônibus nas proximidades, o que atenderá pessoas que vêm da periferia, gente que, justamente por causa do Vela Adaptada, pode desfrutar do Lago Paranoá, um patrimônio do Distrito Federal cujo acesso é dificultado não apenas pela falta de transporte público que ligue o lugar às chamadas cidades satélites, mas também pelo planejamento urbano desvirtuado de Brasília, que permitiu que a orla do Lago fosse fechada, na maior parte dos seus 102 km de extensão, por residências de classe média alta.
Que os bons ventos continuem soprando para o projeto.
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Jornalista com 30 anos de experiência. Já foi repórter, apresentador e chefe de redação no Sistema Globo de Rádio e no Grupo Bandeirantes de Comunicação. É pós-graduado em Gestão da Comunicação das Organizações pelo UniCeub. É carioca e mora em Brasília há 20 anos. Também é escritor e mantém site e blog em www.andregiusti.com.br