Um passeio pela história da cultura negra no Rio

No ‘Rolé dos Favellados’, morador do Morro da Providência oferece roteiros gratuitos pela região portuária da cidade

Por Igor Soares | ODS 10 • Publicada em 22 de novembro de 2023 - 07:47 • Atualizada em 10 de dezembro de 2023 - 13:44

Cosme Filippsen: “Acho importante o povo negro se reconectar com a sua história”. Foto Divulgação

A zona portuária do Rio tem muita história para contar sobre a cidade e sobre o país. Por ali, é possível ver passando gente que trabalha na região, cariocas em busca de diversão e turistas, muitos turistas, que frequentam os bares do Largo São Francisco da Prainha e as rodas de samba da Pedra do Sal, locais tradicionais da cultura negra. Toda essa movimentação serviu de inspiração para Cosme Filippsen, um jovem morador do Morro da Providência, “primeira favela do Brasil”, como ele gosta de frisar, virar guia turístico e contar a história do povo preto.

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Cosme tem 34 anos e um casal de filhos, também nascidos e criados na favela. Eles acompanham o pai por todo lado. A mãe de Cosme era neta de alemão e nasceu em Nilópolis, mas se mudou para a Providência, quando conheceu o pai dele, que também era morador. Sua avó paterna saiu de Minas Gerais e foi morar na primeira favela do país. Rezadeira, era uma figura popular e conhecia bem a realidade da comunidade.

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Com suas origens entrelaçadas na história da favela, Cosme conta que não escolheu ser guia turístico, mas foi escolhido pelo turismo quando ainda era criança. “O turismo me escolheu em 1997, na festa dos 100 anos do Morro da Providência. Havia uma grande festa no centenário e um casal de estrangeiros que estava lá me perguntou se eu poderia levá-los pelos becos do morro, e eu levei. Fiz o meu primeiro guiamento ali, com 8 anos de idade”, conta, lembrando de que estava em uma praça quando foi abordado pelo casal. “Quando voltei para a praça, eles me pagaram um picolé e foi o meu primeiro pagamento. Hoje em dia, recebo dinheiro da cerveja como pagamento. Dei uma evoluída no serviço”, brinca.

Quando adolescente, ele frequentou a Igreja Metodista Centenária da Gamboa, onde também guiava grupos de missionários que vinham de diversos países (principalmente dos Estados Unidos) que queriam subir e conhecer a favela. “Eu subia com eles na minha adolescência e, em troca disso, eles me levavam para o Pão de Açúcar, Corcovado, Búzios e, assim, eu ia fazendo o meu trabalho”, complementa.

Em 2015, Cosme se formou profissionalmente como guia de turismo. No ano seguinte, surgiu o “Rolé dos Favellados”, uma iniciativa que partiu de um encontro com outros comunicadores de favelas. No início, o guiamento não acontecia só no Complexo da Maré, como havia sido idealizado, mas em outras favelas também, para fazer o regaste histórico de cada lugar. “Já no final de 2016 eu fiz um tour na Pequena África”, diz, relembrando que só deu esse nome ao passeio após algumas oficinas das quais fez parte para se aprimorar: “Fui focando mais no Circuito da Herança Africana.”

Os pontos visitados no roteiro são: o Cais do Valongo, o Centro Cultural José Bonifácio, o Cemitério dos Pretos Novos, o Jardim Suspenso do Valongo, a Praça dos Estivadores e a Pedra do Sal. Foto Divulgação
Os pontos visitados no roteiro são: o Cais do Valongo, o Centro Cultural José Bonifácio, o Cemitério dos Pretos Novos, o Jardim Suspenso do Valongo, a Praça dos Estivadores e a Pedra do Sal. Foto Divulgação

O Circuito Histórico e Arqueológico da Celebração da Herança Africana foi criado por meio do Decreto Municipal Nº 34.803, de 29 de novembro de 2011, englobando os bairros da Saúde, Gamboa e Santo Cristo. Os pontos visitados são: o Cais do Valongo, o Centro Cultural José Bonifácio, o Cemitério dos Pretos Novos, o Jardim Suspenso do Valongo, a Praça dos Estivadores e a Pedra do Sal.

Indagado sobre como é passar parte da história do país para outras pessoas, ele não esconde o orgulho: “Eu me sinto realizado, me sinto feliz porque levo conhecimento às pessoas do que passou na história, mas também levo conhecimento de uma luta resistente atual, recente, de que eu fiz e faço parte. Integrei a comissão de moradores da Providência, que lutou contra a remoção, fiz parte do Fórum Comunitário do Porto, que discutia a zona portuária. Esse projeto ‘Porto Maravilha’ teve tantos entraves, tantos problemas, porém, uma questão interessante que aconteceu foi o reencontro do Cais do Valongo. Não era uma procura, ninguém estava procurando, entretanto, no meio das obras, as escavações acabaram encontrando [o Cais]”, pontua. “Com muita luta do movimento negro, de historiadores e arqueólogos esse ponto foi aberto. Hoje, é um espaço de visitação que acabou ajudando a aumentar a frequência no território da Saúde, da Gamboa e do Santo Cristo”, explica o guia turístico.

“Acho que toda pessoa negra deveria fazer dois passeios obrigatórios na vida: ir para Salvador e visitar a Pequena África. São dois roteiros necessários para entender a história do país. O Cais do Valongo foi a maior porta de entrada de escravizados no Brasil, das Américas e do mundo”, frisa o morador. “A gente está falando de dor, de tortura, de estupro, mas também está falando de onde os nossos ancestrais entraram, por onde entraram também príncipes, princesas, então, ali tem um elo, uma energia muito forte. Acho importante o povo negro se reconectar com o seu passado. E todo brasileiro que tenha interesse de entender essa história também precisa visitar”.

Igor Soares

Igor Soares é jornalista freelance no Rio, com foco em cobertura de favelas, e atua como ativista social. É vencedor do 13º Prêmio Jovem Jornalista. Atualmente, é repórter freelance do #Colabora. Já teve passagem pelo Estadão e TV Bandeirantes, além de ter colaborado para a Folha de S. Paulo.

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