“Só o amor faz com que você ultrapasse todas as barreiras sociais, de falta e violação de direitos”, afirma Thais Emilia Santos. Professora universitária, palestrante e dançarina, Thais é uma referência na luta pelos direitos de crianças intersexo. Uma das fundadoras e atual presidenta da Associação Brasileira Intersexo (ABRAI), ela assina um dos textos do livro “Mães fora do armário”. A obra, publicada no mês do Orgulho LGBT+, conta com 14 histórias de mães de pessoas da comunidade.
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Um tema por muito tempo marginalizado, as pessoas intersexo começaram a ganhar visibilidade no Brasil após o aparecimento da personagem “Buba”, da primeira versão da novela Renascer (1993). Com a nova edição neste ano, a personagem foi alterada para uma pessoa trans, o que também gerou debates e discussões. Em outro contexto e longe das telas, Thais precisou encarar o preconceito e as dificuldades de ser mãe de uma criança que não se encaixava nas definições tradicionais de masculino e feminino. Em 2016, quando estava com sete meses de gravidez, os médicos começaram a suspeitar de que o bebê que Thais esperava não tivesse um sexo definido.
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Veja o que já enviamosPor conta do desconhecimento e discriminação, a professora passou por momentos de angústia e diferentes violências, segundo ela, devido “a questão do diagnóstico de pseuso-hermofrodita ser algo que os médicos não sabiam lidar”. Thais conta que a condição de sua criança não era aceita pelos profissionais de saúde. Com isso, no parto “começaram a fazer um monte de exames para tentar definir o sexo entre menino ou menina”, relata a mãe de Jacob Cristopher, que nasceu com microcefalia e um problema cardiáco, que o levou a falecer com 1 ano e 7 meses.
Por conta da intersexualidade, os médicos não forneceram a Declaração de Nascido Vivo (DNV), documento necessário para obter a Certidão de Nascimento e para que Thais tivesse acesso à licença maternidade. Apenas depois de ter feito o registro de Jacob com o sexo masculino, a educadora – que também é mãe de outras três crianças: Guilherme, Alexandre e Jenny Rayssa – descobriu a possibilidade de obter a certidão com o sexo “ignorado”, algo assegurado na justiça a partir de 2012.
O que é ser uma pessoa intersexo?
As características físicas relacionadas ao sexo de uma pessoa estão associadas a fatores como cromossomos, órgãos genitais e hormônios, além de características secundárias que aparecem na puberdade. De acordo com a doutora em psicologia social pela Universidade de Brasília (UnB) Jaqueline Gomes de Jesus, autora do guia “Orientações sobre identidade de gênero: conceitos e termos”, uma pessoa intersexo apresenta alterações cromossômicas que levam ao desenvolvimento de genitálias ambíguas, o que significa a coexistência de órgãos masculinos (testículos, pênis e uretra) e femininos (vagina e ovários) ou ausência de ambos.
Durante muito tempo, o termo médico usado para descrever essas pessoas era o de hermafrodita – atualmente em desuso por questões técnicas e, principalmente pela carga negativa e discriminatória que carrega. Na prática, o termo intersexo é usado como guarda-chuva para variações atípicas no sexo.
“As pessoas são muito presas num padrão de corpo, num padrão binário, é preciso romper e entender o que é amor de verdade. Como a gente falava, Jacob tinha o sexo dos anjos, porque a maioria dos bebês intersexos nascem com a ausência de órgãos”, descreve Thais. Antes de participar do livro “Mães fora do armário”, a educadora, musicista e dançarina já havia descrito sua trajetória e experiência na obra “Jacob(y), ‘entre os sexos’ e cardiopatias, o que o fez Anjo?”, publicada em 2021.
ABRAI e a luta pelo fim da mutilação de crianças intersexo
Desde o nascimento de Jacob, Thais passou a estudar e se especializar no tema da intersexualidade. Como professora, ela já possuía interesse pela educação inclusiva, o que ampliou e aprofundou para a educação sexual e de gênero. Junto às pesquisas, ela começou a mobilização para criar a Associação Brasileira Intersexo, regulamentada em 2018.
A luta continuou e, no ano passado, a prefeitura municipal de São Paulo aprovou o projeto de lei 426/2022 que institui o dia 26 de setembro como o “Dia de Conscientização Contra a Mutilação Infantil”. A data foi escolhida como uma homenagem ao dia em que Jacob nasceu. A proposta foi elaborada pela Bancada Feminista (PSOL) em parceria com a Associação Brasileira Intersexo (ABRAI).
Thais também foi responsável por criar o Instituto Jacob Cristopher – voltado a consultorias e orientação educacional – e a Rede Jacob (y), que oferece atendimento psicopedagógico e luta contra a prática de cirurgias de mutilação em crianças intersexo. Segundo a mãe e professora, a intenção com essas iniciativas e com o relato do livro “Mães fora do Armário”, é levar informações e acolhimento. “Fazer com que outras mães que passam pelo mesmo que eu possam se sentir amparadas também”, destaca.