“No meio do caminho tinha uma pedra”. O verso é um dos mais populares do poeta Carlos Drummond de Andrade e serve para ilustrar os desafios que pessoas com deficiência enfrentam no acesso a shows sem acessibilidade Nesse caso, não são pedras, mas barreiras de arquitetura e atitude que excluem essas pessoas do direito à cultura. As falhas começam, inclusive, na divulgação dos eventos que não mencionam a acessibilidade ou não explicam seus detalhes.
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“Uma coisa que faz parte do capacitismo é não esperar que a gente vá”, aponta Priscila Siqueira, psicóloga e uma das fundadoras da Vale PcD. Segundo ela, a maioria das áreas destinadas para pessoas com deficiência e seus acompanhantes é pequena e mal planejada. Além do pouco espaço, a ausência de informações e de uma estrutura adequada também são outras lacunas recorrentes em shows e festivais.
No caso de Priscila – que tem nanismo – a dificuldade acontece desde o acesso aos balcões de atendimento, por vezes, muito altos. A partir da experiência como consultora de acessibilidade em eventos, ela percebe que a acessibilidade é lembrada quase sempre em cima da hora. “Não é acessibilidade; é uma adaptação que, às vezes, é muito mal feita e muito insegura”, acrescenta.
O exemplo mais recente de problemas com relação à segurança de áreas para PcDs em shows ocorreu na apresentação de Lady Gaga em Copacabana. Antes do show, o espaço foi invadido por pessoas sem deficiência e a estrutura desabou devido ao excesso de público.
Em eventos grandes, todo mundo passa perrengue. Agora, você não se sentir seguro, não ter acesso ao básico, é muito frustrante e criminoso
Em publicação nas redes sociais, a jornalista Ana Clara Moniz questionou: “Gagacabana foi de graça, mas foi para todo mundo?”. Ana Clara nasceu com atrofia muscular espinhal, uma doença genética e neuromuscular, o que a torna usuária de cadeira de rodas. Apesar de não ter ido ao show, ela conta ter recebido vários relatos de outras pessoas com deficiência que sofreram com a falta de segurança e organização no local.
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Veja o que já enviamos“Costumo ir sempre em shows e já tive experiências maravilhosas, mas também tive experiências horríveis, desde não conseguir acessar a área PdD, até por condições climáticas”, descreve a roteirista. Em um dos eventos, não existia uma área coberta e começou a chover, então a cadeira motorizada que Ana Clara utiliza teve um curto-circuito.
Natural de Gravataí (RS), Jéssica Fontoura mora há 2 anos em São Paulo e trabalha com produção audiovisual. Por ter baixa visão, ela enfrenta o duplo desafio de conseguir aproveitar os eventos, muitas vezes com o auxílio do celular para dar zoom, e ter de explicar para as pessoas sua condição. “Demorei muito tempo para aceitar que eu tenho o direito de usar a área PcD, porque é o local mais seguro para mim”, complementa.
O show de Lady Gaga foi o segundo grande evento em que Jéssica decidiu ir, após a apresentação do grupo RBD no ano passado. Ela conta que um dia antes foi até Copacabana e conversou com cerca de oito pessoas da produção, mas nenhuma sabia dar orientações sobre a acessibilidade do evento. “Pessoas com mobilidade reduzida estavam acampadas lá. Para mim, foi o maior símbolo de irresponsabilidade e de falta de acessibilidade”.
Problemas recorrentes
Os relatos de problemas relacionados a shows sem acessibilidade não são exclusivos do evento em Copacabana. Em 2024, fãs relataram falhas do tipo em apresentação de Caetano Veloso e Maria Bethânia no Mineirão, em Belo Horizonte. Também no ano passado, o Ministério Público do Piauí denunciou o produtor-executivo Danilo Siqueira Pacheco por impedir a presença de intérpretes de Libras em show do cantor Gusttavo Lima em Teresina.
Em 2021, a terceira turma Superior Tribunal de Justiça (STJ) condenou associação responsável por show em Limeira (SP) a pagar R$10 mil em indenização a uma pessoa com deficiência por conta da falta de acessibilidade no evento. Todas as entrevistadas para esta reportagem mencionaram já ter passado por dificuldades em shows sem acessibilidade. Muitas vezes, elas decidiram não ir em determinados eventos pelos mesmos motivos.
Pesquisa feita pela ONG Mais Diferenças sobre o acesso à cultura por pessoas com deficiência em São Paulo mostrou alguns desses desafios estruturais. Ao todo, 80% dos participantes revelaram ter dificuldades em participar de atividades culturais. Em relação à frequência de participação em shows e concertos, 31,76% afirmaram nunca ir e 32,94% disseram ir apenas uma vez por ano. 93% respondeu que gostaria de participar mais de eventos culturais.
Quem vai viajar, principalmente, precisa ter uma perspectiva do que vai encontrar, de como vai fazer para chegar e ir embora, como vai ter acesso. Para garantir o mínimo de segurança
Moradora de Recife, Priscila afirma que raramente costuma ir em shows ou eventos em que não está trabalhando. “Até por experiência própria mesmo, eu me tornei uma pessoa que raramente vai no show ou festival para curtir”. Ela diz ser comum que pessoas busquem a Vale PcD em busca de ajuda antes de eventos ou depois de shows sem acessibilidade.
Artista com deficiência e consultora de acessibilidade, Amanda Lyra pontua que a acessibilidade em eventos melhorou nos últimos anos, com a criação das áreas PcD, porém, o contexto ainda não é de efetividade de direitos. “Em eventos grandes todo mundo passa perrengue. Agora, você não se sentir seguro, não ter acesso ao básico, é muito frustrante e criminoso”, destaca Amanda. Para ela, isso exemplifica a diferença entre o que é “acessável” – que é possível chegar – e o que é acessível – seguro.
Amanda recorda experiências negativas que teve em shows sem acessibilidade, inclusive, grandes eventos como o Lollapalooza, em São Paulo, e o Rock in Rio, no Rio de Janeiro. “Perdi o show que eu queria, porque não tinha um banheiro que fosse minimamente usável para mim”, relata, sobre o festival na capital paulista. Ela também já teve dificuldades em encontrar e acessar um local para carregar a bateria de sua cadeira de rodas.
“Quando você fala num evento a nível show da Lady Gaga ou da Madonna, enfim, coisas que são muito grandes e públicas, você tem uma falácia da democratização do acesso”, critica Amanda Lyra. Além disso, esses episódios revelam injustiças e o descumprimento de legislações sobre o acesso à cultura.
Produção e atitudes
Mesmo que a Lei Brasileira de Inclusão (LBI) estabeleça a necessidade da acessibilidade em shows e eventos culturais desde 2015, ainda é difícil que isso seja considerado na produção e pré-produção, além de serem destinados recursos financeiros para o tema. Segundo Amanda, isso acontece também pela ausência de pessoas com deficiência na organização.
Priscila Siqueira lista alguns pontos essenciais para tornar espaços de eventos inclusivos, como possuir uma entrada sinalizada e acessível, filas prioritárias e pré-cadastro, banheiros próximos da área PcD, intérpretes de Libras, piso tátil (principalmente em locais fechados), audiodescrição e balcões de venda mais baixos. Outras iniciativas importantes incluem uma sala sensorial para pessoas neurodivergentes e a própria divulgação desses recursos.
“Quem vai viajar, principalmente, precisa ter uma perspectiva do que vai encontrar, de como vai fazer para chegar e ir embora, como vai ter acesso. Para garantir o mínimo de segurança”, ressalta a consultora da Vale PcD. De acordo com ela, muitas vezes ainda é preciso explicar para o público sem deficiência que essas áreas e adaptações não são privilégios.
Sobre essa necessidade, Amanda enfatiza que a barreira atitudinal é geralmente a mais difícil de transpor. “As pessoas olham e falam: ‘o que pessoa com deficiência tem que fazer num lugar de multidão, em um evento?’ Está negando o meu direito de existir e aproveitar a cultura”, denuncia a artista.
Shows públicos e privados
As regras de acessibilidade previstas na LBI são as mesmas para eventos públicos-gratuitos e eventos privados. Em alguns casos, as iniciativas com cobrança de ingresso até apresentam experiências melhores, mas nem sempre. Sobre isso, Amanda Lyra pondera que as pessoas com deficiência, em geral, possuem uma renda menor que o restante da população e, por isso, áreas PcDs em eventos pagos costumam ter menor chance de ficarem lotadas.
Por outro lado, a cobrança e a fiscalização em shows e festivais públicos é naturalmente maior, até pela pressão de entidades e do movimento das pessoas com deficiência. “Muitas coisas que são públicas já vêm com a necessidade de acessibilidade instaurada”, complementa Amanda.
A superlotação de área para PcDs também costuma levar as organizações a barrarem os acompanhantes, assegurados pela legislação. Ana Clara Moniz conta que já passou por situações assim: “já aconteceu, por exemplo, de eu estar na área PCD e falarem que os acompanhantes precisavam sair para que outras pessoas com deficiência pudessem ter acesso à área”.
Para a jornalista e roteirista, na prática não existem muitas diferenças entre as duas modalidades de evento. “A experiência, na verdade, é indiferente do show ser gratuito ou ser pago, o que difere é se os eventos têm mais ou menos pessoas”. Quanto maior o público sem deficiência, maior a chance das áreas para PcDs serem invadidas ou dos banheiros acessíveis serem usados por pessoas que não precisam. “Temos na cabeça de que, se o evento é grande e gratuito, seria óbvio não ter acessibilidade, mas todo evento deve ter”.
Para Ana Clara, além da segurança, outro elemento que fica comprometido em shows sem acessibilidade é a experiência. Jéssica Fontoura aponta algo parecido sobre a generalização do espaço para pessoas com deficiência. “Deveria existir uma área PCD em todos os setores dos eventos. Mas não, eles fazem normalmente uma grande área PCD e jogam todo mundo lá”, reclama. No seu caso, por conta da baixa visão, quanto mais perto do palco, menor a dificuldade em assistir o show.
“Nunca me esquecerei desse acontecimento na vida de minhas retinas tão fatigadas. Nunca me esquecerei que no meio do caminho tinha uma pedra”, diz outro trecho do poema de Drummond. Os relatos de Jéssica, Ana Clara, Priscila e Amanda convergem na necessidade que cada uma tem de pensar em estratégias e ponderar o nível de dificuldades que estão dispostas a suportar para ir em um show ou evento. Seria menos desafiador e mais justo se não existissem tantas barreiras no caminho.