Artistas com deficiência fazem da acessibilidade parte da produção cultural

Artistas assumem papel de protagonismo em obras culturais; Amanda Lyra é uma cantora com deficiência responsável pelo movimento (Foto: Letícia Furtado)

Edu O., Ananda Guimarães e Amanda Lyra são exemplos de artistas que trabalham com a acessibilidade como parte de suas narrativas e obras

Por Micael Olegário | ODS 10 • Publicada em 20 de setembro de 2024 - 10:00

Artistas assumem papel de protagonismo em obras culturais; Amanda Lyra é uma cantora com deficiência responsável pelo movimento (Foto: Letícia Furtado)

Audiodescrição, janela de Libras (Língua Brasileira de Sinais) e outras ferramentas de acessibilidade não precisam ser apenas recursos “extra”. Artistas com deficiência mostram como inserir a acessibilidade como parte das cenas, estética e narrativas artísticas. Mais do que promover a inclusão, esses fazeres confrontam o capacitismo e o preconceito que marginaliza corpos que fogem à normatividade.

Leia mais: Cultura sem barreiras: onde estão os artistas com deficiência do Brasil?

Ativista, pesquisador e professor de dança na Universidade Federal da Bahia (UFBA), Eduardo Oliveira, conhecido como Edu O. descreve a relação que se desenvolve entre deficiência e arte. Ele define a exclusão de PcD de espaços culturais pelo termo bipedia compulsória. “Essa lógica estruturante, normativa, de se pensar a arte pela referência do corpo sem deficiência”, explica o artista da cultura def (termo usado para se referir à produção de pessoas com deficiência – PcD).

Gostando do conteúdo? Nossas notícias também podem chegar no seu e-mail.

Veja o que já enviamos

Em sua pesquisa de doutorado, concluída no ano passado, Edu O. conta o processo de explorar diferentes formas de se locomover depois de ter poliomielite (paralisia infantil). Ainda na infância, em Santo Amaro (BA), ele passou a se interessar pela dança e, ao longo dos anos, foi se aproximando mais das artes. 

“Ao compreender que andar não era exclusividade de quem fica em pé, eu aprendi que todas as coisas da vida, inclusive a Dança, também poderiam ser feitas de diversas maneiras”, escreve Edu na tese que traz a frase “Vocês, bípedes, me cansam!” no título. Na entrevista ao #Colabora, o artista relata detalhes sobre a trajetória no universo da dança, intensificada a partir de 1999, quando ingressou no Grupo X de improvisação em dança, da UFBA.

De ponta a ponta do Brasil, temos profissionais incríveis que têm uma deficiência e simplesmente por esse fato são excluídos, não são remunerados e respeitados

Amanda Lyra
Cantora e consultora de acessibilidade

O grupo de dança foi pioneiro em inserir a audiodescrição (explicação em detalhes das imagens para pessoas cegas) como parte dos espetáculos de dança. Depois, a partir de 2006, Edu circulou pelo Brasil com o projeto coreográfico “Judite quer chorar, mas não consegue”. 

A repercussão do projeto o levou a ser convidado para debates sobre políticas públicas na área da cultura, até se tornar coordenador do mapeamento Acessa Mais, iniciativa que busca mapear artistas e agentes culturais com deficiência, além de profissionais de acessibilidade com e sem deficiência no Brasil. 

O levantamento inclui a participação de diversos “artistas def” (termo usado pelos artistas com deficiência para se descrever) de diferentes regiões e expressões artísticas. “Eu acredito que o mapeamento também faça com que a gente pense na própria atualização do conceito da deficiência – que não fica restrito apenas ao modelo social de acessibilidade e inclusão”, pontua Edu. De acordo com ele, uma das alternativas para ampliar essa visão está na produção que considera a diversidade de corpos e formas de experimentar o mundo.

Duas fotos coloridas de Edu.O. Na imagem da esquerda, Edu aparece de lado, em sua cadeira de rodas, enquanto fala no microfone. Ao fundo, tela da apresentação do projeto do mapeamento Acessa Mais. Na imagem da direita, ele aparece de frente e segura o microfone, enquanto gesticula com a outra mão
Mapeamento Acessa Mais foi criado para identificar a produção de artistas def; Edu O. durante cerimônia de lançamento do formulário em Salvador (Foto: Aldren Lincoln)

“Sem Reclamar”: clipe-protesto

Na primeira cena do audiovisual da música “Sem Reclamar”, Amanda Lyra aparece de vestido vermelho e em uma cadeira de rodas enfeitada com flores amarelas. Ela faz o tradicional gesto de bater uma claquete para dar início à música. Cantora e consultora de acessibilidade, ela conta os desafios que envolveram a produção do audiovisual, viabilizada por meio de edital da Lei Aldir Blanc, em 2021.

Ao chegar no estúdio escolhido para a gravação, Amanda, que é usuária de cadeira de rodas, teve que se deparar com um local sem rampas de acesso até mesmo nos camarins. “Quando cheguei lá no dia da gravação que eu vi, comecei a chorar. Atrasou quase uma hora a gravação para eu me acalmar”, relata a cantora, natural de Curitiba e artista desde os 16 anos.

Apesar dos desafios, a gravação do “clipe-protesto” – como Amanda nomeia o projeto – foi realizada com 100% de protagonismo de pessoas com deficiência, audiodescrição e janela de Libras. “No audiovisual ainda existe uma barreira de, por exemplo, diretores que falam: ah não, mas vai estragar a minha obra se eu colocar legenda ou Libras”, comenta ela. O resultado do clipe de “Sem Reclamar” é mais do que prova do contrário.

No dia 21 de setembro (Dia Nacional da Luta da Pessoa com Deficiência), Amanda Lyra vai lançar uma nova música, “Deixa Ser”, também com 100% de produção por PcD. De acordo com ela, esses projetos buscam “mostrar que as pessoas com deficiência são acima de todos pessoas com potencial, talentos, habilidades e competências que precisam ser reconhecidas”. 

A intenção, destaca a cantora, é trabalhar para que esses artistas def sejam cada vez mais protagonistas pelas suas produções e não pelas deficiências ou histórias de superação. “De ponta a ponta do Brasil, temos profissionais incríveis que têm uma deficiência e simplesmente por esse fato são excluídos, não são remunerados e respeitados”, acrescenta Amanda.

Cosmocegueira cênica

No espetáculo “7 Gargalhadas – Gira de Palhaças”, Ananda Guimarães interpreta Neneca, uma palhaça de cabelos cacheados e que usa uma guia no pescoço, figurino vermelho e preto, além de uma coroa com rosas. A peça faz parte do projeto Encruzilhada Def, uma iniciativa criada pela artista, pesquisadora e ativista amazônida.

“Eu trabalho com audiodescrição poética, então como pensar a audiodescrição dentro da fruição artística”, destaca Ananda – que possui baixa visão por conta de uma doença degenerativa. Ela revela ter se descoberto como mulher com deficiência aos 16 anos. Além da audiodescrição, Ananda trabalha para inserir a Libras também em suas apresentações, parte do projeto de pesquisa sobre “cosmocegueira cênica”.

Quando a gente pensa em um corpo com deficiência, a gente está pensando em um corpo que é plural. Então, eu sou uma mulher, sou lésbica e tenho uma deficiência, mas eu também tenho muitos territórios

Ananda Guimarães
Pesquisadora e artista

“Como eu sou uma mulher com baixa visão, então a autodescrição veio primeiro  dentro da fruição, porque Libras enquanto recursos de acessibilidade sempre teve. Agora a gente está entendendo como convocar também essa intérprete para estar nesta energia da palhaça”, explica a artista def. 

De acordo com Ananda, esse tipo de movimento representa uma virada de chave na interpretação do que é uma produção acessível. “Para que a gente descubra essa nova lógica de acessibilidade, é preciso que a gente não olhe a partir da mesma perspectiva hegemônica. Então, é dizer, é neurodivergir, é ensurdecer, é aleijar essas estratégias”. No caso das apresentação da Coletiva de Palhaças, isso ocorre justamente com o cuidado de fazer com que a audiodescrição também seja parte da dramaturgia, sem deixar de cumprir seu papel de descrição dos espaços e cenas.

Ananda trabalha com a audiodescrição como parte de suas encenações na palhaçaria (Foto: Emily DanalI)

Desafiar, aleijar e contracolonização

Em relação aos desafios encarados no projeto, Ananda Guimarães cita a questão relacional, do receio que certas pessoas sentem até em dialogar e se relacionar com pessoas com deficiência. Outro ponto lembrado por ela está ligado a forma com que produtores veem a acessibilidade em editais culturais, como algo obrigatório e/ou “chato”.

Ao explicar o trabalho que desenvolve para transformar essas visões, a artista def se define como “uma aleijadora” cultural. “Quando a gente usa esses termos de cultura def, cultura surda, artista def, metodologia def e aleijamento cultural, de alguma forma a gente está subvertendo a lógica do que já foi imposto”, elucida. Ela observa esse trabalho como parte de um exercício de contracolonização, conforme ensina o pensador quilombola Nêgo Bispo. 

“Quando a gente pensa em um corpo com deficiência, a gente está pensando em um corpo que é plural. Então, eu sou uma mulher, sou lésbica e tenho uma deficiência, mas eu também tenho muitos territórios. Então, é importante que a gente não coloque as pessoas com deficiência num saquinho de PcD”, complementa a ativista amazônida.

Os exemplos da produção dramatúrgica de Ananda, assim como de Edu O. na dança e de Amanda Lyra na música, apontam caminhos e maneiras de romper barreiras e abismos de exclusão social. Para além disso, nas entrevistas, elas e ele demonstram uma disposição sincera de diálogo, de ensinar e compartilhar. Cabe a nós (este repórter incluso) escutar.

Micael Olegário

Jornalista formado pela Universidade Federal do Pampa (Unipampa). Gaúcho de Caibaté, no interior do Rio Grande do Sul. Mestrando em Comunicação na Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). Escreve sobre temas ligados a questões socioambientais, educação e acessibilidade.

Newsletter do #Colabora

A ansiedade climática e a busca por informação te fizeram chegar até aqui? Receba nossa newsletter e siga por dentro de tudo sobre sustentabilidade e direitos humanos. É de graça.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Compartilhe:

Sair da versão mobile