ODS 1
Projeto de badminton em favela do Rio revela talentos olímpicos
Com representante nos Jogos de Tóquio 2020, ONG Miratus nasceu para ajudar a tirar jovens do crime e já treinou mais de três mil candidatos a atleta
A ideia de Sebastião Dias de Oliveira, 56 anos, foi fazer frente ao crime organizado através de uma peteca e uma raquete. A estratégia de inserir o badminton em uma favela da Zona Oeste do Rio de Janeiro deu certo: Ygor Coelho é o principal nome do badminton brasileiro e começou no Miratus, ONG criada por Sebastião — que, no caso, também é pai do Ygor.
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O atleta de 24 anos é o 49º do ranking mundial e está em Tóquio para defender o Brasil nos Jogos Olímpicos. Da favela da Chacrinha para o Japão, Ygor encara uma chave difícil por estar no mesmo grupo com o dono da casa (Kanta Tsuneyama, 13º no ranking mundial). Só um passa para as oitavas de final. Ele está tão concentrado que não pôde dar entrevista no momento – o brasileiro estreia no torneio olímpico nesta segunda (no Brasil, às 2h da madrugada de domingo para segunda.
Sebastião, capixaba de Quaçuí, foi técnico de Ygor por 13 anos e afirma já ter treinado mais de três mil jovens durante toda a sua vida. Mas ele exerce mais do que esse papel na vida dos atletas. A comunicação é o forte desse canceriano de fala eloquente. “É professor, preparador físico, psicólogo, amigo, pai e tudo mais que eles precisarem”, conta Donnians Lucas, filho de 20 anos de Sebastião, também atleta de badminton e braço direito do pai no projeto.
“Nós temos que acolher essas crianças com a mesma eficiência que o crime organizado faz. Eu tive que chegar antes. Com oito para nove anos, quando o crime organizado chega, os meus garotos já estão campeões, trilhando um caminho e sendo referência para outros”, explica Sebastião.
Dito e feito. Ele está no Pan-Americano Júnior no México com quatro atletas que começaram no Miratus com seis anos de idade — “e todos com chances de medalha de ouro”, garante o técnico coruja que falou com o #Colabora por telefone.
Sebastião conta que hoje pratica a inclusão social através do esporte porque, no passado, viveu uma realidade de exclusão. Com seis anos, foi mandado pelo ex-patrão da sua mãe, empregada doméstica na casa de um ministro, para a Funabem (Fundação Nacional do Bem-Estar do Menor), onde viveu até os 18 anos.
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Veja o que já enviamos“Vi os dois lados da moeda. A partir disso tive escolha: que caminho seguir? Eu fui motivado a seguir um caminho. E é o que eu tento fazer com as crianças, motivá-las a seguir um caminho”.
Quem incentivou Sebastião foi um professor da Funabem, que, aos 16 anos, o fez ver nos estudos uma possibilidade para mudar a própria realidade. Nos dois anos finais na instituição, se dedicou aos cursos técnicos oferecidos internamente e aos cursos do Senai (Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial). ele se destacou e ganhou espaço para ser funcionário da Funabem. E aí foi promovido, dando início a uma carreira profissional dentro da instituição que prosseguiu do lado de fora.
E um dos seus empregos foi ser guardião da piscina do colégio Pedro II, de São Cristóvão. Lá fez um amigo “petequeiro”: um professor de Educação Física que jogava badminton. Naturalmente curioso, Sebastião se interessou pelo esporte inusitado. “Eu poderia ter me tornado uma pessoa revoltada”, conta, “mas entendi que tinha que fazer alguma coisa para retribuir aquele estágio bom em que eu tinha chegado”.
O Miratus começou a ser construído em 1998, com todas as economias da vida de Sebastião, dois anos depois da chegada dele à comunidade da Chacrinha, área dominada pela milícia na Praça Seca, Zona Oeste do Rio. Ele se mudou para a comunidade quando se casou, sua mulher já morava lá, e tiveram dois filhos: Ygor e Donnians, dois atletas de alto rendimento no badminton.
E, desde a década de 1990, ele considera fazer o que o Estado não faz. “O Estado só olha para essas crianças quando elas já são adolescentes com um fuzil na mão”, relata o capixaba, que mantém o projeto através de doações – ele conta apenas com uma empresa parceira que cede o material para os treinos.
Escolheu o badminton por influência do professor e porque era algo diferente para atrair a atenção das crianças. O próximo passo foi implementar o método de criação de ídolos, similar ao mecanismo do crime organizado, segundo Sebastião, para inspirar as crianças.
Artur Pomoceno, 24 anos, é um deles. Nascido na Chacrinha, conta que sempre se inspirou em Ygor Coelho como atleta, a ponto de superá-lo no ranking nacional e hoje ser o primeiro da lista. Artur também é visto pelos alunos mais novos como uma inspiração. Ele e outros atletas de alto rendimento ajudam a cuidar e a ensinar badminton para as crianças.
“O Ygor é uma referência muito grande, ele está sempre motivando o pessoal do alto rendimento e da base”, confirma Artur. “E eu falo para essa garotada para continuar treinando e ter objetivo. Acredito que eles vão fazer história como eu, Ygor, Izak (Batalha) e Donnians”, fala o jovem magro e alto enquanto olha para o último fio de sol batendo nas casas da favela do outro lado da rua.
No seu complexo sócio-esportivo, que ocupa uma área construída de 1.500 m² na entrada da Favela da Chacrinha, a Miratus atende a cerca de 200 crianças e jovens permanentemente. Além das quatro quadras, hoje cobertas, a ONG tem ainda salas para aulas de informática, idiomas e artes.
A tática do exemplo vem se mostrando bem sucedida através do tempo. Além do sucesso social, o Miratus acumula reconhecimento no esporte mundo afora. São 28 medalhas conquistadas nos Pan-Americanos, 45 do Sul-Americano, quatro em Mundiais e representantes em dois Jogos Olímpicos consecutivos: Ygor também esteve no Rio 2016, quando teve a companhia de Lohaynny Vicente, outra atleta de badiminton formada na Miratus.
Consequentemente — e “finalmente”, nas palavras de Sebastião — atraiu o olhar do poder público. Ele está desenhando projetos esportivos similares ao Miratus para serem implementados em outras comunidades. Já foi ao Complexo de favelas da Maré, Zona Norte, pedir autorização ao tráfico para iniciar um projeto esportivo e teve o aval.
“A ideia é tornar política pública. Vou fazer o projeto-piloto, fazer dar certo e dando certo a gente vai formar profissionais para ganhar o Brasil”, almeja.
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Lucas Landau, nascido e criado no Rio de Janeiro. Naturalmente curioso, documenta o Brasil a partir de uma perspectiva humanitária. Iniciou a carreira como fotógrafo de moda, mercado onde trabalhou por 11 anos e, desde 2017, atua como fotojornalista e fotógrafo documental. Tornou- se tornou fotógrafo freelancer correspondente da Reuters no Rio de Janeiro, durante os protestos de rua de 2013. Também é colaborador do Instituto Socioambiental, Instituto Kabu e Thomson Reuters Foundation.