Pessoas LGBT+ com deficiência lutam por inclusão e reconhecimento

Emmanuel, Priscila e Beto buscam quebrar barreiras e tabus sobre a sexualidade de PcDs

Por Micael Olegário | ODS 10 • Publicada em 27 de março de 2024 - 07:26 • Atualizada em 9 de abril de 2024 - 11:49

Parada PCD de Salvador: manifestações fazem parte da luta dos PcDs LGBTQIA+ por inclusão e reconhecimento (Foto: Vítor Rodrigues / Divulgação)

“Eu busco os meus direitos de poder amar, de poder trabalhar e fazer o que quiser”, afirma Emmanuel Castro, 36 anos. Formado em Cinema, em Rádio e TV e atualmente estudante de Psicologia, Emmanuel é uma pessoa com nanismo e um dos idealizadores do Vale PCD – ONG que atua com as pautas de pessoas com deficiência LGBTQIA+. A iniciativa surgiu em 2019 a partir de conversas entre ele e Priscila Siqueira, psicóloga e também uma pessoa com nanismo.

O projeto nasceu a partir do sentimento de falta de espaço e pertencimento, tanto Emmanuel como Priscila não se sentiam representados nem entre PcDs e nem entre pessoas LGBTQIA+. Diante da necessidade de enfrentar esses dois tabus, eles decidiram criar o projeto inicialmente para mapear locais com acessibilidade. “Eu ia para o rolê e cadê outras pessoas (com deficiência)? Foi quando eu conheci a Priscila e a gente começou a sair bastante. Nesse tempo eu tinha uma preocupação. Meu medo era não ter acessibilidade”, conta Emmanuel.

Leu essa? Pessoas com deficiências ocultas usam cordão do girassóis na busca por compreensão e reconhecimento

Foi então que surgiu o ValeMaps – mapeamento de espaços acessíveis em diferentes cidades brasileiras. Ao longo do tempo e por conta do isolamento social imposto pela pandemia de Covid-19, o Vale PCD passou a produzir conteúdos para combater o capacitismo – preconceito contra pessoas com deficiência. “A gente trabalha, estuda e namora. Enfim, a gente tem vida como outras pessoas, mas sofre essa violência silenciosa”, revela Emmanuel. Desde jovem, ele teve que encarar as dificuldades causadas pelo capacitismo estrutural que coloca PcDs em uma posição de pessoas sem sexualidade.

Foto colorida de Emmanuel Castro em show no Recife. Emmanuel é uma pessoa com nanismo branca, com barba e cabelo preto. Ele está de pé e apoiado em um andador com sua mão direita. Com a mão esquerda ele faz um sinal de positivo. Ele usa camiseta e calças pretas. Ao fundo, pôsteres coloridos do show.
O cineasta Emanuel, um dos criadores do Vale PCD: “eu era uma criança que não via outras referências das pessoas com deficiência” (Foto: Arquivo Pessoal)

O absurdo chegou ao auge em uma sessão de psicoterapia, quando Emannuel contou sobre sua sexualidade e ouviu que iria para o inferno. “Isso me marcou muito na adolescência, escutar que você não pode sentir atração por homem, porque senão realmente você vai pro inferno. A própria psicóloga falou isso”, recorda o hoje estudante de psicologia. 

Gostando do conteúdo? Nossas notícias também podem chegar no seu e-mail.

Veja o que já enviamos

Por conta das barreiras do preconceito, inclusive religioso, Emmanuel também encarava as relações amorosas como um tabu e sentia medo. “É, pecado, você não pode sentir prazer por homem”, era o que ele escutava sobre sentir atração por pessoas do mesmo sexo. “É libertador quando a gente consegue prestar um desejo que é seu, que é natural, está tudo bem e saber que não tem nada de errado comigo”, acrescenta.

Como cineasta, Emmanuel também aborda a falta de representatividade na mídia e em filmes. “Eu era uma criança que não via outras referências das pessoas com deficiência”. No caso das pessoas com nanismo, a representação feita pelo cinema hegemônico frequentemente alimenta estereótipos, colocando-as como personagens secundárias e/ou destinadas ao alívio cômico.

Foto colorida de Priscila Siqueira. Ela é uma mulher com nanismo branca de cabelos rosa. Ela usa óculos e um batom vermelho. Ela sorri. Ela usa uma camiseta azul e a bandeira LGBT+ sobre os ombros. Ao fundo, parede laranja
A psicóloga e ativista Priscila Siqueira: “quem se relaciona com a gente é visto como um ‘herói ou heroína’, porque está abrindo mão de uma vida que se espera com uma pessoa dita normal” (Foto: Kelvin Andrade)

Políticas de saúde sexual também excluem PcDs

Mesmo sendo uma pessoa bissexual, Priscila se sentia sozinha e isolada em baladas e espaços LGBTIA+. Segundo ela, o fato da própria acessibilidade e dos direitos das pessoas com deficiência serem temas ainda invisibilizados dificulta ainda mais para que essas pessoas possam falar sobre outras pautas, como a questão da sexualidade e das relações afetivas.

Além disso, as relações entre PcDs e pessoas típicas são vistas pela lente do capacitismo estrutural como gestos de caridade. “Acaba que cai naquela pegada do anjo: quem se relaciona com a gente é visto como um ‘herói ou heroína’, porque está abrindo mão de uma vida que se espera com uma pessoa dita normal”, exemplifica Priscila. A psicóloga menciona ainda que esse cenário de invisibilidade também coloca PcDs em uma posição de vulnerabilidade em termos de saúde sexual.

Um exemplo é de que praticamente inexistem campanhas de orientação sobre métodos de prevenção sobre infecções sexualmente transmissíveis (ISTs) para pessoas com deficiência. “Muitas pessoas com deficiência acabam por ser mais vítimas de ISTs, justamente por não conseguir dizer não quando alguma pessoa não quer usar métodos de prevenção, porque sabe quanto vai ser difícil encontrar outra pessoa para se relacionar com a gente e por falta de informação”, descreve Priscila. 

Foto colorida de Beto Maia jogando vôlei. Beto é um homem branco com cabelos castanhos e cacheados, barba preta. Ele está sentado e suas mãos levantadas, com a direita em posição de acertar uma bola de vôlei que está na sua frente. Ele possui uma das pernas amputadas e usa um short verde e uma camiseta branca. Ao fundo, ginásio de vôlei pintado de azul.
O desenvolvedor de softwares Beto Maia durante jogo de vôlei de paratletas: “A homofobia às vezes nem bate tanto na cara, porque é invalidada a sexualidade” (Foto: Reprodução / Instagram)

Capacitismo e homofobia fizeram Beto evitar relações

“Quando você está no meio do pessoal que é LGBTQIA+, você é a pessoa com deficiência, quando você está com a galera do pessoal com deficiência, você é o LGBTQI+”, conta Beto Maia, 35 anos. Desenvolvedor de softwares e influenciador digital, ele encontrou no Vale PCD um lugar de acolhimento. Amputado de uma perna, ele ouviu diversas vezes que não poderia ser homossexual, porque uma “pessoa não tem como ter dois problemas na vida”.

Por conta do combo de capacitismo e homofobia, Beto escondeu durante muito tempo sua sexualidade e evitava ter relacionamentos. “A homofobia às vezes nem bate tanto na cara, porque é invalidada a sexualidade (de pessoas com deficiência), como se eu não tivesse uma vida afetiva amorosa”, acrescenta. Na pandemia, ele baixou o TikTok e começou a fazer vídeos para falar sobre assuntos públicos, principalmente relacionados a essas duas pautas. Foi através dos vídeos nas redes sociais que Beto conheceu Priscila e começou a fazer parte do Vale PCD.

Vídeo do Beto Maia no TikTok

@betomaiafilho Sobre o tal exoesqueleto que a senadora @Mara Gabrilli testou nos EUA. Eu vi um vídeo da @Marina 💜 comentando sobre o equipamento e a chuva de comentários (capacitistas inclusive) me fez pesquisar um pouco sobre o assunto. E pasmem, a senadora que elogiou tanto a pesquisa é produto desenvolvido lá fora, fez uma longa crítica ao projeto do Miguel Nicolelis de exoesqueleto lá em 2014. Não achei coerente a exaltação a esse atlanta (nome do exoesqueleto testado) quando as mesmas críticas foram feitas ao estudo brasileiro. Esse vídeo não tem a intenção de jogar hate em ninguém, é sobre valorizar NOSSA ciência e entender que temos potencial sim de criar coisas incríveis que podem ajudar milhões de pessoas (que assim desejar, mas esse é outro papo). #ciencia #exoesqueleto #pessoacomdeficiencia ♬ Blade Runner 2049 – Synthwave Goose

“O carnaval desse ano foi o primeiro carnaval que  realmente me diverti, saí. E foi bom, saí com meu namorado, a gente foi para bloco. Foi a primeira vez que eu saí e não fui empurrado, não queriam me perguntar o que eu tinha na perna”, relata Beto, que defende a importância de eventos que promovam a inclusão e diversidade a partir de diferentes recortes sociais.

Foto colorida da Parada do Orgulho PCD em Salvador. Da esquerda para a direita aparecem uma mulher branca, de roupa preta, fazendo interpretação de Libras. Uma mulher branca usuária de cadeira de rodas, um homem branco de pé ao seu lado. Outro homem usuário de cadeira de rodas, preto e com roupas brancas. E no canto direito, uma mulher com nanismo branca de cabelo rosa e usando roupas pretas. Ao fundo, faixa branca com os logos do ValePCD e QuilomboPCD e a frase: "1° Parada do Orgulho da Pessoa com Deficiência da História do Brasil".
Parada do Orgulho PCD em Salvador: eventos para mobilização da comunidade de pessoas com deficiência LGBTIA+ (Foto: Vítor Rodrigues / Divulgação)

Parada do Orgulho PCD

Em 2023, Priscila Siqueira começou a idealizar um evento para mobilizar a comunidade de pessoas com deficiência LGBTIA+. Foi então que surgiu a ideia da Parada do Orgulho PCD, evento realizado através de uma parceria do Vale PCD com o Quilombo PCD (ONG que trabalha com pessoas com deficiência a partir do recorte racial). A primeira edição aconteceu em agosto de 2023 na Avenida Paulista, em São Paulo. 

Priscila comenta sobre o desafio de organizar a parada com recursos próprios e limitados. “Apenas 2 mil reais e um sonho conseguimos juntar cerca de 800 pessoas na Avenida Paulista. Uma caixa de som e um microfone e fizemos tudo acontecer”. Em janeiro deste ano foi a vez do evento chegar a Salvador, na 1° Parada do Orgulho PCD do Nordeste.

A previsão é de que sejam realizadas mais edições ao longo de 2024. A próxima já tem data marcada: será neste domingo, 31 de março, em Recife. Além da Parada, Priscila também foi responsável por criar a “Vale Tude”, uma festa pensada para ser 100% acessível. “Ninguém enxerga alguém distribuindo abafadores de ruído na balada, mas na minha festa tem”, destaca a psicóloga sobre o evento que foi destaque do Prêmio Biscoito no ano passado.

Outras das frentes de atuação do Vale PCD são a oferta de atendimentos psicossociais, a promoção de encontros periódicos com dicas para preparar pessoas com deficiência para o ingresso no mercado de trabalho e a produção de cartilhas com informações sobre o tema. “A gente criou o Vale PCD justamente para falar sobre os direitos. Para falar do corpo e da nossa realidade”, explica Emmanuel, que cita a longa luta das pessoas com deficiência na busca por direitos básicos.

Um dos principais exemplos de capacitismo estrutural é a definição da trajetória de vida dessas pessoas como histórias de superação. Na visão de Emmanuel, o ponto chave da luta das PcDs é a equidade. “Minha deficiência tá aqui. E é uma parte de mim. Não me faz triste. Não me faz mal. Eu sou o que sou. Eu só quero lutar pelo mesmo direito que você de poder amar, poder trabalhar e fazer o que quiser”, complementa.

Micael Olegário

Jornalista formado pela Universidade Federal do Pampa (Unipampa). Gaúcho de Caibaté, no interior do Rio Grande do Sul. Mestrando em Comunicação na Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). Escreve sobre temas ligados a questões socioambientais, educação e acessibilidade.

Newsletter do #Colabora

A ansiedade climática e a busca por informação te fizeram chegar até aqui? Receba nossa newsletter e siga por dentro de tudo sobre sustentabilidade e direitos humanos. É de graça.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *