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Paredes com Propósito: casas atingidas por enchentes ganham novas cores e horizontes
Projeto promove mutirões para pintar residências e estimular recuperação de comunidades afetadas pelo desastre climático no Rio Grande do Sul
Imagine a casa dos seus sonhos ou da sua infância: qual cor ela tem? A pergunta pode parecer banal, mas milhares de pessoas nunca tiveram a oportunidade de escolher a cor da própria casa. Pior do que isso, no Rio Grande do Sul, cidades inteiras ficaram submersas no desastre climático que atingiu o estado. O resultado: casas cobertas por lama e um cenário monocromático, sem cores ou horizontes. “Aquela marca das águas, todo mundo olhava e se lembrava da enchente. Mas agora não, a vila pintada dá outra vida”, resume Antônio Carboneiro, 77 anos, líder comunitário da Vila dos Papeleiros, uma das revitalizadas pelo projeto Paredes com Próposito.
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A iniciativa foi criada com o objetivo de revitalizar residências atingidas pelas enchentes e ajudar na recuperação física e emocional das comunidades. Em mutirões voluntários, o projeto já reformou 150 casas na região metropolitana de Porto Alegre. As ações reúnem desde artistas profissionais até pessoas que nunca tiveram experiência com pintura ou arte.
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Veja o que já enviamosAs áreas inicialmente mapeadas para receber a revitalização foram o Quilombo Areal da Baronesa, localizado no bairro Menino Deus, a comunidade Vitória, no bairro Humaitá, além da Vila dos Papeleiros, oficialmente chamada de loteamento Santa Terezinha, no bairro Floresta. O quarto mutirão começa nesta quarta-feira (02/10) no Centro Cultural da Vila Flores, também no bairro floresta. A previsão é de que sejam pintadas cerca de 25 casas, com apoio de 40 voluntários.
“Teve uma senhora que relatou que aos 70 anos, nunca ninguém tinha perguntado a cor que ela queria para a casa dela, e que ela não sabia nem escolher, porque sempre era a cor que tinha”, conta o artista visual Jonathan de Leon Peres, conhecido como Jotapê Pax. Morador da capital gaúcha, ele foi o responsável por idealizar o Paredes com Propósito junto da companheira, a produtora cultural Kami Rosito.
Na primeira fase do projeto, o objetivo é alcançar 250 imóveis, sendo a maioria casas, mas também escolas e espaços comunitários e culturais. “O objetivo ambicioso da gente é conseguir chegar em duas mil casas. Estimamos que, em média, o projeto vai demorar cerca de 8 a 9 meses para ser executado”, complementa Jotapê. Depois da região metropolitana, a intenção é levar a iniciativa para o interior do estado.
Como surgiu o projeto?
Quando as águas invadiram diversas cidades gaúchas, mesmo a parte dos gaúchos que não foi afetada diretamente, sofreu com as imagens de locais e pessoas atingidas pelo desastre (este repórter incluso). Há 20 anos atuando com a arte em Porto Alegre, Jotapê sentiu o mesmo. Em um dos dias da enchente, ele e Kami tentaram ajudar no resgate de vítimas, mas perceberam que poderiam acabar atrapalhando. “Então a gente voltou para casa e no dia seguinte eu decidi fazer um chamamento pela internet pra ver se artistas e amigos se juntariam a um mutirão de pintura”, lembra o artista visual.
A ideia cresceu e reuniu diversos artistas e entidades apoiadores, incluindo empresas e ONGs – responsáveis pela doação de tintas e outros materiais. “Focamos muito nas moradias, porque são pessoas que vivem lá e que têm suas memórias, sua história dentro da comunidade”, explica Jotapê. Assim o artista define a missão do projeto em construir comunidades mais resilientes e unidas através da arte.
Os mutirões do Paredes com Propósito também contam com o apoio de uma equipe do Museu de Arte Contemporânea do Rio Grande do Sul. O objetivo é explicar detalhes sobre aspectos da arte urbana aos moradores, principalmente para crianças e adolescentes.
O processo de pintura sempre é feito com diálogo com lideranças comunitárias e, principalmente com as pessoas, que podem escolher a cor e se querem algum desenho ou arte em sua casa. “Tem gente que pede (desenho) do Inter ou do Grêmio. Tem gente que a casa tem grade na frente e o muro é muito pequeno, então a gente pinta o entorno e a lateral”, descreve o idealizador do Paredes com Propósito.
O fato dos locais escolhidos serem justamente comunidades marginalizadas e, muitas vezes, esquecidas pelo poder público é proposital. “É o começo de uma revolução dentro desses espaços que a gente entra”, afirma o artista. Porém, ele alerta para outras necessidades que essas pessoas têm de alimentos, móveis e acolhimento pelo poder público.
A percepção das comunidades
No Quilombo do Areal, a pintura das casas serviu como um sopro de esperança para a retomada das atividades cotidianas e do projeto Areal do Futuro, bloco de carnaval que forma crianças sambistas. Na comunidade, praticamente 90% das residências sofreram impactos diretos das enchentes.
Ao falar sobre o trabalho de revitalização do Paredes com Propósito, o vice-presidente da do Areal do Futuro e uma das lideranças comunitárias, Daniel Rouvel, pontua a mudança no ânimo da população. “O rosto das pessoas tinha tristeza de voltar para casa, por ver as marcas nas paredes, saída e entrada de residências, no seu lar onde dorme”, menciona ele.
Durante três dias – de 12 a 14 de julho, cerca de 40 voluntários, desde artistas até pessoas que nunca haviam tido experiência com pintura, ajudaram a revitalizar 37 residências do Quilombo do Areal.
Revitalização em vila de recicladores
No terceiro mutirão, realizado no começo de setembro, mais de 100 voluntários se envolveram com a pintura de cerca de 50 casas na Vila dos Papeleiros. Jotapê Pax destaca que a ação só foi possível graças ao diálogo com a comunidade, em especial por meio da Associação de Reciclagem Ecológica da Vila dos Papeleiros, entidade que representa os catadores e catadoras do território que tem a reciclagem como a principal atividade econômica.
Presidente da associação, Antônio Carboneiro, 77 anos, revela que jamais imaginou que o local seria atingido por uma enchente como a de maio. “Inclusive, eu nem queria sair da minha casa. Foram meus guris que me tiraram daqui com o carrinho de papeleiro, porque eu sou o capitão do barco e não poderia abandonar”, completa Antônio.
Na entrevista ao #Colabora, mesmo por telefone, é impossível não se sensibilizar com a trajetória de lutas de Antônio em prol da comunidade. Há quatro anos ele perdeu uma das pernas em um acidente de bicicleta, mas nem isso o afastou da defesa do lugar e da profissão que o acolheram, quando o restante da sociedade fechou as portas (ele virou papeleiro após ficar desempregado).
Em 2023, Porto Alegre aprovou uma lei para proibir a circulação dos carrinhos de recicladores. O tema é alvo de disputas na Câmara Municipal e tem sido criticado por aqueles que, como Antônio, tiveram na atividade o seu sustento por tantos anos. “A gente é muito discriminado, porque têm pessoas que não sabem que cada papeleiro é um pequeno ambientalista que trabalha para nossa mãe natureza”, afirma.
Em relação à pintura das casas, Antônio observa a ação dos voluntários como um ponto diferencial, em meio ao esquecimento e as dificuldades enfrentadas pelos papeleiros. “Para nós foi muito gratificante, ver a vontade dos artistas e a felicidade que eles estavam. Para nós foi muito bom”, diz o líder comunitário, pai de 14 filhos, além de avó de 35 netos e bisavô de outras 18 crianças e jovens.
Cores de resistência
“Poder levar cores a um lugar que já estava bege, por causa das enchentes, é potente e simbólico demais”, descreve Marília Drago, arquiteta plástica e uma das voluntárias do “Paredes com Propósito”. Ela define a experiência como uma oportunidade de aprendizado, tanto com outros voluntários, artistas ou não, como com as pessoas das comunidades.
Ao participar da iniciativa, Marília diz ter colecionado uma série de histórias marcantes, como a de duas irmãs da comunidade Vitória que tinham pintado a casa pouco antes da enchente e depois perderam tudo.
“Eu tinha feito um pré-projetinho que tinha o fundo com um tom de verde. E elas falaram que amaram muito, que elas amam tons de verde e disseram que parece que eu tinha feito exatamente pra elas”, relata a arquiteta plástica que conheceu o projeto por conta da amizade com Jotapê e Kami.
De acordo com Jotapê, levar arte, cores e desenhos para locais periféricos é um exercício disruptivo de ressignificar os espaços da cidade. “É uma revolução na cabeça dessas pessoas e na nossa também”, atesta o artista visual. Ele explica que o foco atual está em buscar novas parcerias e apoio logístico para expandir os mutirões. “Conseguirmos esse apoio de materiais, voluntários dispostos a ajudar e ter artistas dispostos a doar o seu trabalho de arte, colocando dentro de uma comunidade, é muito disruptivo”.
Pessoas interessadas em doar para o projeto podem fazer através do site do Paredes com Propósito.
Micael Olegário
Jornalista formado pela Universidade Federal do Pampa (Unipampa). Gaúcho de Caibaté, no interior do Rio Grande do Sul. Mestrando em Comunicação na Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). Escreve sobre temas ligados a questões socioambientais, educação e acessibilidade.