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Mineração ilegal na Amazônia associa tráfico humano, exploração sexual e trabalho escravo

Mapeamento elaborado pela Rede Eclesial Pan-Amazônica e pelo Instituto Conviva revela tragédia humanitária gerada pelo garimpo ilegal

“No garimpo a gente aprende a não esperar nada da vida”, “Todo mundo sabia que a gente estava indo para prostituição”, “A gente ficava até três meses perambulando de garimpo em garimpo, entregando mercadoria e anotando as encomendas”. Esses são alguns dos relatos do “Mapeamento dos Impactos da Mineração Ilegal na Amazônia”, lançado nesta quinta-feira (26/06). O documento revela uma dinâmica que entrelaça tráfico humano, exploração sexual e trabalho análogo ao escravo.
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O mapeamento é resultado de uma parceria entre a Rede Eclesial Pan-Amazônica (REPAM) e o Instituto Conviva. O estudo foi elaborado a partir da análise de diversos documentos e de entrevistas com as comunidades mais afetadas pela mineração ilegal, incluindo grupos de pessoas em situação de rua em Manaus (AM), Altamira (PA), Porto Velho (RO) e Boa Vista (RR).
Um dos destaques do levantamento é um documento do Grupo de Estudo Interdisciplinar sobre Fronteiras (Geifron), da Universidade Federal de Roraima (UFRR). Segundo essa investigação, 309 pessoas foram vítimas de tráfico humano entre 2022 e 2024 em Roraima, sendo 227 migrantes e 82 brasileiros.
Os crimes sexuais contra mulheres e crianças Yanomami são estratégias utilizadas por garimpeiros para desestabilizar as comunidades e suas resistências
A maioria das vítimas foram mulheres (194) no total, além de homens (84), crianças (11) e pessoas LGBT+ (20). Entre as 129 mulheres migrantes que foram vítimas do tráfico, grande parte também foi explorada sexualmente nos garimpos. Uma das responsáveis pelo estudo e assessora da REPAM, Márcia Maria de Oliveira observa que existe uma estrutura que criminaliza e marginaliza as pessoas que vivem nesses locais, geralmente, muito distantes de políticas públicas.
“Isso vale para as mulheres, tanto cozinheiras ou marreteiras – aquelas que fazem circular mercadorias – quanto as que prestam serviço sexual. Em todas as categorias, nós identificamos processos de exploração, até muitos dos garimpeiros também estavam em situação de tráfico de pessoas”, pontua Márcia, professora da UFRR e doutora em Sociedade e Cultura na Amazônia.
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Veja o que já enviamosSegundo os relatos coletados, a informalidade é uma das características marcantes das atividades nos garimpos e as diárias pagas costumam ser baixas, enquanto os custos de vida são elevados. “Nas observações de campo, não identificamos nenhum migrante garimpeiro com carteira assinada. Absolutamente todos trabalham por diárias que nem sempre são devidamente pagas”, indica o estudo.
Violência e Narcogarimpos
O estudo também descreve a economia e a infraestrutura dos garimpos na Amazônia, cada vez mais modernos e municiados com “arsenais de guerra”. Mesmo após a Operação Libertação, realizada pela Polícia Federal em 2023 para retirada de garimpeiros da Terra Indígena Yanomami, essas estruturas seguem crescendo. Nos últimos anos, esses lugares têm se tornado “narcogarimpos”.
“Os garimpos de hoje são ainda mais perigosos e violentos para os povos indígenas porque convivem com o crime organizado, que controla, além do contrabando de ouro, o tráfico de drogas, de armas e de pessoas para o trabalho análogo ao escravo e para a prostituição, no caso do tráfico de mulheres”, afirma um trecho do mapeamento.
Márcia Maria de Oliveira, da REPAM, explica que a economia garimpeira envolve a participação de grandes empresas que financiam, por exemplo, o transporte de pessoas e mercadorias por vias aéreas e fluviais. “Vão abrindo caminhos entre os países, de modo especial entre Colômbia, Venezuela e o Brasil, passando por essas pistas de pouso abertas em clareiras no meio da floresta. Isso vai facilitando também a chegada de drogas”, detalha a pesquisadora.
Nessa conexão entre violência e poder, crianças muitas vezes também são aliciadas e feitas vítimas, principalmente em terras indígenas. “Os crimes sexuais contra mulheres e crianças Yanomami são estratégias utilizadas por garimpeiros para desestabilizar as comunidades e suas resistências”, indica outro recorte do texto. Além da exploração direta, o estudo evidencia a reprodução social da violência dos garimpos.
O avanço da mineração ilegal na Amazônia acompanha o aumento nas estatísticas de violência contra a mulher e femicídio nos Estados. “Outro resultado indica que o garimpo tem produzido relações de dominação pautadas pela violência contra as mulheres não apenas no território do garimpo, porque o mesmo agressor forjado no garimpo circula pelas cidades e muitas vezes reproduz essa violência em outras mulheres fora do ambiente do garimpo”, aponta o documento.

Como a pesquisa foi feita?
Além do mapear os impactos da mineração ilegal na Amazônia, a pesquisa teve objetivos secundários: identificar os principais impactos socioambientais na vida das comunidades e nos ecossistemas, averiguar a influência do poder econômico da mineração sobre as decisões políticas na Amazônia e relacionar a ausência de políticas públicas na região com mineração ilegal e crime organizado.
As entrevistas foram realizadas por equipes do Instituto Conviva compostas por sociólogos, antropólogos e comunicadores. Conforme os dados levantados no estudo, existem 45.065 concessões mineradoras em operação ou aguardando aprovação na Amazônia, sendo que 21.536 delas se sobrepõem à áreas protegidas e terras indígenas.
A definição de tráfico humano considera as definições da Convenção de Palermo. Segundo esse documento, essa prática se caracteriza pelo recrutamento, transporte, abrigo de pessoas, por meio de ameaça ou uso da força ou outras formas de coerção. Também pode ocorrer a partir de promessas de pagamentos ou benefícios para obter o consentimento e o controle sobre outra pessoa para exploração.
Segundo a REPAM e o Instituto Conviva, o mapeamento é uma forma de dar continuidade da Encíclica Laudato Si’, lançada pelo Papa Francisco em 2015, em prol de uma ecologia integral e do reconhecimento da resistência dos povos da Amazônia no cuidado com a natureza.

Relatos da exploração
Uma das vítimas da rede de exploração da mineração ilegal na Amazônia é Maugê, nome fictício de uma jovem venezuela entrevistada (nenhuma das pessoas entrevistadas foi identificada). Ela chegou ao Brasil após passar por garimpos em outros países, acompanhada do irmão. Nesse processo, foi diversas vezes explorada e violentada.
“Era estupro coletivo porque era eu sozinha para dar conta de mais de 20 homens numa noite. Passamos uns 15 dias neste lugar e não teve um único dia que não fosse estuprada”, conta Maugê em um dos trechos das narrativas descritas no mapeamento da REPAM e do Instituto Conviva.
Além das mulheres, o mapeamento mostra como o garimpo deixa cicatrizes nos homens explorados. “No garimpo a gente aprende a não esperar nada da vida. Se amanhecer vivo, já está no lucro. O garimpo faz a gente se perder da vida”, diz Adriano, nome fictício escolhido por um participante da atividade de 66 anos.
Outro destaque são os relatos das marreteiras, atividade equivalente à de mascate ou caixeiro-viajante. Uma delas é identificada como Ceiça, terceira geração da sua família a viver em garimpos. “Comprava mercadorias aqui em Boa Vista e saía revendendo nos garimpos da Venezuela, da Guiana, do Suriname e até da Guiana Francesa”, descreve, sobre a atividade de comércio de mercadorias nesses locais.
Ao contextualizar os elementos históricos que caracterizam o garimpo ilegal, o mapeamento enfatiza suas origens no Brasil colonial. Uma herança materializada, por exemplo, na maior estátua erguida no centro da Praça do Centro Cívico de Boa Vista que representa um garimpeiro. “Resultado desse processo histórico do Brasil colonial, nos últimos anos, ressurgiu com muita força o garimpo ilegal em toda a Amazônia, com a chancela dos poderes políticos em todas as esferas”, afirma o texto.
Junto à exploração e violência da mineração ilegal, o documento cita a resistência das populações amazônicas, muitas consolidadas ao longos dos anos pelos povos indígenas. Segundo o mapeamento, essas dinâmicas são baseadas em uma relação diferente com a natureza, semelhante ao termo Nhandereko, que significa “nosso jeito de ser”, na língua Nheengatu. “A luta contra o garimpo é uma luta de todas as pessoas que se posicionam contra todas as formas de destruição e morte”, acrescenta outro dos trechos do documento.
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Micael Olegário
Jornalista formado pela Universidade Federal do Pampa (Unipampa). Gaúcho de Caibaté, no interior do Rio Grande do Sul. Mestrando em Comunicação na Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). Escreve sobre temas ligados a questões socioambientais, educação e acessibilidade.