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Das ruas para a Bienal do Livro: ex-dependente químico conta como se tornou escritor

Leo Motta lança trilogia literária e apresenta sarau poético em evento no Rio de Janeiro com a participação de homens em situação de rua

“Com os pés descalços tocava o chão, em busca de ajuda estendia a mão. Esmolava, pedia e, ao mesmo tempo, sonhava. A vida mudou, a página virou, e o homem que ali deitava se tornou escritor”. As frases são do primeiro livro de Leo Motta, 44 anos, que viveu nas ruas e vai participar da Bienal do Livro do Rio de Janeiro, que começa nesta sexta-feira (13), para lançar seu terceiro livro ‘Há vida depois das marquises: do outro lado da rua’, com relatos de como se recuperou da dependência química e conseguiu sair das ruas.
O escritor também vai comandar uma iniciativa inédita no evento literário: o sarau poético Marquises, apresentado por um grupo de homens em situação de rua que receberam aulas de Leo para recitar poesias. “A cultura salva, a educação liberta. Quero mostrar que a população de rua vai muito além de um cobertor, um papelão e uma calçada”, conta. Além disso, vai levar para ficar ao seu lado na Bienal sua primeira professora, Célia Márcia, e a assistente social Ana Lúcia, que o tirou das ruas .
Leo apresentará o sarau poético para públicos distintos: no dia de abertura, a plateia será composta pelos alunos da rede municipal do EJA (Educação de Jovens e Adultos) do Rio de Janeiro. Já no encerramento, no dia 22 de junho, o público será de pessoas em situação de rua que estão em abrigos e nunca tiveram a chance de ir a uma bienal, um momento que Leo espera que seja profundamente marcante e os motive a deixar a situação de rua para trás. “A minha história de fracasso escrevi sozinho, mas, a de sucesso, escrevo junto a quem acredito. Meu desafio diário é não esquecer de onde eu vim, porque não tenho nada de diferente de quem tá sentado na cracolândia hoje, deitado na calçada nesse momento. Só que um dia eu aceitei ser ajudado. A minha missão é essa: ajudar”, afirma.
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Veja o que já enviamosPara quem viveu na rua, é uma emoção “muito forte” participar da Bienal do Livro. “Estar numa situação de rua recente, quando você estende a mão, mas ninguém te vê, e de repente estar em cima de um palco em que todos param para te ouvir. A palavra que uso para definir isso é restituição. É um momento de mostrar que a cidade é de todos e que o bem mais precioso do Rio de Janeiro não é o Cristo Redentor, é a vida”, frisa Leo Motta que, além dos livros, também conta sua história em um documentário.
Dependência química e vida na rua
A trajetória de Leo teve um início doloroso e conturbado. “Fui uma criança rejeitada desde o ventre pela minha mãe. Fui criado pela minha avó e só conheci meu pai recentemente, aos 38 anos”, conta. A mãe chegou a tomar remédios abortivos no dia do parto; não contou ao pai do bebê que estava grávida. a A jovem de 19 anos não queria ser mãe e desejava viver sua juventude. Quando Leo tinha nove meses, foi entregue a avó, Esther. Mesmo tendo uma infância cercada de amor pela avó na Cidade Alta, comunidade da Zona Norte do Rio do Janeiro, Léo sentia a saudade e a falta de uma mãe e um pai.
Eu voltei para a rua desde o primeiro dia que saí dela, mas voltei para ajudar. Quando lancei um livro na Bienal, muita gente entrou em contato comigo, querendo me ajudar. Mas eu não precisava de ajuda. Eu já tinha um endereço, eu já tinha uma fonte de renda, mas eu precisava ajudar quem ficou
Tinha 14 anos quando a avó morreu e ele foi morar com sua mãe. Nessa idade, teve o primeiro contato com drogas na escola pública onde estudava, durante o recreio. “Aos 21 anos, mergulhei no uso de drogas e me encontrei com a dependência química, porque perdi um filho de 5 meses de vida, assassinado pela mãe após ser espancado. Na comunidade onde cresci, não tinha ombro amigo para chorar ou psicólogos. Então recorri ao uso de drogas, porque tinha um ponto de venda à porta”, conta.
Sem apoio, ele recorreu ainda mais às drogas, intensificando um ciclo que durou vinte anos. O estopim para viver nas ruas do Rio de Janeiro foi uma overdose em frente à sua mãe, em 2016. Nesse período, segundo conta, foi quando conheceu “o pior lado do ser humano”. Leo Motta passou pouco mais de um ano nas ruas, e duas situações nesse período o marcaram profundamente: uma quando teve sede, e outra quando sentiu fome. “Entrei numa padaria em Copacabana e pedi a uma senhora para me pagar um pão. Ela cuspiu no meu rosto”, relata. “Outra vez, com sede, numa sensação térmica de 50 graus na cidade, sem acesso à água gelada potável ou chuveiro, fui num restaurante para pedir água. O segurança me botou para fora e me deu um copo com água com sal”, lembra.

O caminho de Leo para a literatura
A virada em sua vida começou, em 2017, quando ele aceitou ajuda após meses e meses em situação de rua. Foi internado numa instituição de acolhimento e, depois, conseguiu um trabalho como lavador de pratos num restaurante no Centro do Rio. “Um dia, estava indo para o meu trabalho e o ônibus engarrafou em frente à cracolândia, na Maré, aonde eu ficava muito. Uma pessoa do ônibus falou: ‘olha como está cheio aquele lugar, ali morrem 10 e chegam a 20’. Aquilo me incomodou, porque eu já habitei a cracolândia. As pessoas precisavam saber que a gente consegue sair”, testemunha.
Sou um homem que carrega uma história que começou triste, mas que não impediu de um dia se encontrar com um final feliz. Um homem que superou todas as dores e transformou tudo isso numa luta pela dignidade, igualdade, respeito e inclusão de uma causa que vivi
Com um celular doado, ele criou uma página no Facebook chamada “A vida depois das Marquises”, nomeado em homenagem à última marquise onde dormiu. Seus relatos, com fotos reais de quando era dependente químico e sua história de superação, viralizaram e alcançaram 30 mil seguidores em uma semana. Uma seguidora o incentivou a escrever um livro, e até organizou uma vaquinha online para pagar pela publicação. “Passei seis meses escrevendo o livro nesse celular usado, danificado, sem tampa traseira. Muitas vezes pensei desistir, porque o durex suava, a bateria saía, e eu tinha que escrever tudo de novo, mas consegui”, conta.
Seu primeiro livro – com o mesmo título da página, ‘A Vida depois das Marquises’ – ganhou destaque e chegou às mãos de artistas famosos como seu ídolo Chico Buarque; foi divulgado amplamente em jornais e até programas de televisão. Com a repercussão, recebeu um convite para a Bienal de 2019, onde se tornou o primeiro ex-morador de rua a lançar um livro no evento. Em 2021, publicou o segundo livro (‘A Vida depois das Marquises – Sonhos’), em que conta o encontro com seu pai aos 38 anos e o impacto da pandemia da covid-19 na população em situação de rua.
Leo Motta afirma que ressignificou sua história por um propósito. “Sou um homem que carrega uma história que começou triste, mas que não impediu de um dia se encontrar com um final feliz. Um homem que superou todas as dores e transformou tudo isso numa luta pela dignidade, igualdade, respeito e inclusão de uma causa que vivi”, relata. Também expressa o impacto da arte em sua vida: “a capa dos meus livros são as minhas mãos, para mostrar que a mesma mão que esmolava constrói uma arte”.
Hoje, como escritor e palestrante, Léo Motta diz que sua missão diária é não esquecer de onde veio, para nunca se considerar diferente daqueles que ainda estão nas ruas. “Eu voltei para a rua desde o primeiro dia que saí dela, mas voltei para ajudar. Quando lancei um livro na Bienal, muita gente entrou em contato comigo, querendo me ajudar. Mas eu não precisava de ajuda. Eu já tinha um endereço, eu já tinha uma fonte de renda, mas eu precisava ajudar quem ficou”, reforça
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Ana Carolina Ferreira
Estudante de jornalismo na Universidade Federal Fluminense (UFF). Gonçalense, ou papa-goiaba, apaixonada pelas possibilidades de se contar histórias na área da comunicação. Foi estagiária na Assessoria de Comunicação do Ministério Público Federal e da UFF. Amante da sétima arte e crítica amadora do universo geek.