ODS 1
Crítica ao racismo e a todos os preconceitos pela voz da criadora da Igreja Lesbiteriana
Cantora e compositora Bia Ferreira diz que sua música e o movimento são para educar para lutas LGBT+ e antirracista: ‘Se for para ter uma igreja, deixa que eu faço a minha’,
“Quanto tempo faz que eles contam nossa história? Quanto tempo faz que constroem nossa memória? Eu vim contar que, tão certo como o agora, eu estarei nas linhas que contam nossa vitória”. Assim começa a canção “Deixa Que Eu Conto”, de Bia Ferreira, que desde a adolescência conta suas vivências a partir da música. A cantora, compositora, multi-instrumentista e artivista de 31 anos trabalha com música desde os 15, mas foi aos três que tudo começou. Nascida em Carangola (MG), aprendeu a tocar piano na igreja evangélica — muito incentivada pela mãe, regente de coral e pianista.
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Com 13 anos, sofreu tentativas de “cura gay” e foi afastada do convívio no meio religioso por conta de sua orientação sexual. Para expressar como se sentia, passou a escrever poesias e cartas de amor para as amigas da escola. Mais tarde, em contato com o movimento estudantil, se entendeu como uma mulher negra na sociedade. Quanto mais aprendia, mais sentia a necessidade de compartilhar com as pessoas, e é através da música que faz isso até hoje.
Bia Ferreira considera suas obras Música de Mulher Preta (MMP) e Música Negra Contemporânea (MNC). Compõe para educar, conscientizar e passar informações sobre as demandas da luta antirracista, LGBT+ e feminista negra. Nos últimos dois anos, tem levado essas pautas mundo afora e já realizou mais de 90 shows internacionais — segundo ela, não toca tanto no Brasil porque “não há demanda para o trabalho que apresento”, mas gostaria de tocar em seu país e ser chamada para compor o line-up de festivais brasileiros.
É responsável pelo álbum “Igreja Lesbiteriana, Um Chamado” (2019), que vai além do som presente nos principais tocadores de música. A Igreja Lesbiteriana “é um movimento de pessoas LGBT+ se propondo a pautar tecnologias de sobrevivência para pessoas como nós, no país que mais mata a população que parece com a gente”, conta a cantora. Em entrevista ao #Colabora, Bia Ferreira fala muito mais sobre sua história, música e vida.
#Colabora: A partir de que momento você começou a realizar composições musicais políticas?
Bia Ferreira: Quando tinha 15 anos, no meu último ano de escola, entrei para o Grêmio Estudantil. A gente começou a ter aula de formação política, a entender racismo, pirâmide social, deu um “boom” na minha cabeça, para uma pessoa que só vivia num meio cristão. Dos 13 aos 16 anos, eu vivia esse momento de descoberta. Eu era uma menina lésbica, fazendo amigos na escola, descobrindo outros espaços para frequentar. Depois dos 16, já sabia que eu era uma mulher negra, numa sociedade que há 100 anos tinha abolido a escravidão. Que precisava me posicionar enquanto tal, porque eu era a base dessa pirâmide social. Nesse momento, pensei ‘mano, eu tenho que contar isso para a minha galera’. Eu era chata, tipo aquela pessoa que acabou de virar crente e começa a ficar contando ‘Jesus é maravilhoso’, começa a entregar folheto no metrô. Comecei a fazer poesia, rap, tocar meu violão de um jeito diferente para chamar a atenção da galera. Fazia arte na rua rodando o chapéu. Acho que a minha maior formação enquanto compositora, musicista, artista é ser artista de rua.
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Veja o que já enviamos#Colabora: Como é a relação com a sua família, principalmente considerando que hoje você prega outra palavra na Igreja Lesbiteriana, diferente da doutrina religiosa da sua infância?
Bia Ferreira: Fui educada para ser pastora, ensinada a falar em público; na igreja fiz aula de oratória, hermenêutica, programação neurolinguística. Fui preparada para fazer apresentações públicas, falar com muita gente. A ideia da Igreja Lesbiteriana é falar: ‘esse lugar que vocês criaram não me acolhe, não é para mim, e se for para ter uma igreja, deixa que eu faço a minha. Já que é de igreja que vocês gostam, de igreja eu entendo. Não é sobre ser LGBT+, é sobre acreditar na emancipação social, política e afetiva de grupos minoritários como um avanço social. Não tem inferno nem céu, pode ser macumbeiro, budista, hare krishna, católico, crente… Você pode ser o que quiser, contanto que acredite na emancipação social, política e efetiva desses grupos como a única saída para um mundo diferente do que a gente está vivendo agora. É uma igreja porque reúne pessoas que compactuam da mesma fé. A partir do momento que os meus pais começaram a entender que não era uma chacota, que eu estava fazendo 53 shows fora do país, voltando de uma turnê por 13 países diferentes. Falando a mensagem que acredito sem precisar hipersexualizar meu corpo, mudar minhas crenças e o que acredito enquanto artista para estar nos lugares. Acredito que, a partir daí, consegui ganhar o respeito da minha família. Hoje em dia a gente tem uma relação de cuidado, respeito, carinho e afeto. O maior milagre da Igreja Lesbiteriana é poder ver meus pais no meu show, cantando minhas canções, entendendo a necessidade de dizer “não” ao genocídio do povo preto e indígena, entendendo que somos uma família negra e que existem intersecções sociais que nos atravessam. Conseguir explicar isso, para mim, é o maior milagre que a minha igreja poderia me presentear.
#Colabora: A Igreja Lesbiteriana existe como um álbum e um movimento político, mas não há espaço físico com algum tipo de sacerdote. Você pode explicar como funciona?
Bia Ferreira: A Igreja Lesbiteriana é uma intervenção social artística provocativa, para fazer pensar o porquê de as igrejas terem tanto poder, acesso e liberdade, e o que elas estão fazendo com isso. Cada show é um culto diferente, é como se fosse uma igreja em células. Fiz um culto na Eslováquia para 1400 pessoas, em Portugal para 35 mil, e em São Paulo para 120. São encontros para pensar tecnologias de sobrevivência através da arte, do afeto e do acesso à informação para pessoas que se parecem comigo.
#Colabora: E quanto aos seguidores da Igreja Lesbiteriana, você já recebeu relatos de como a sua palavra impactou a vida dessas pessoas?
Bia Ferreira: Tenho o hábito de terminar um show, ir para porta e falar com todas as pessoas que quiserem falar comigo. Não sou o tipo de pessoa que termina um show e fica no camarim, inacessível. Gosto de falar ‘olha, a gente é igual, é tudo nosso. Se você não viesse, não teria show, muito obrigada’. Isso me faz receber vários relatos das pessoas que estão ali, que aprenderam a falar português por causa das minhas músicas, ou que conseguiram entender que são pessoas negras e que não tinham essa percepção. Relatos de mães que mudaram totalmente a sua ideia sobre os filhos após terem acesso à minha arte. Crianças que conseguiram responder ao racismo na escola, depois de ouvir ‘diga não ao racismo, diga não ao preconceito e ao genocídio do povo preto’.
A minha música é leitura obrigatória para o vestibular da Universidade de Brasília (UnB) e está presente em todos os livros de primeira à quarta série do sistema SESI de ensino. Estou conseguindo trazer educação antirracista para as crianças através da arte. É possível, sim, pautar intelectualidade sem precisar ser acadêmica, porque a arte é intelectualidade e é preciso respeitá-la nesse lugar. Sempre recebo vídeos de crianças na escola que estão fazendo trabalhos sobre mim e pedem entrevista. É uma mudança tão pequenininha, mas é a parte que consigo fazer agora. Tenho uma música que fala “deixa que eu conto”, sobre a necessidade da gente contar nossa própria história. É uma canção baseada no conceito de escrevivência, de Conceição Evaristo, e nessa música falo que gostaria de estar nas linhas que contam a vitória do meu povo. Estou tentando fazer isso de forma efetiva, e receber o retorno das pessoas é o que me move e faz com que eu não desista de ser artista, de falar o que tenho para falar porque acredito nessa revolução.
#Colabora: Você citou em alguns momentos da conversa o termo “tecnologia de sobrevivência”, poderia contar o que é e como você usa a música para comunicar o afeto como ferramenta de transformação?
Bia Ferreira: Tecnologia é tudo que facilita a vida das pessoas, e tecnologias de sobrevivência são coisas pensadas para manter as pessoas vivas. Eu entendi que o afeto é o que traz a possibilidade de manutenção da vida da gente enquanto povo preto, pessoas indígenas, quilombolas, queer… o afeto salva a gente. Afeto é o que mantém a gente vivo, não é à toa que nós [negros] somos 56% da população brasileira hoje, porque apesar da tentativa de clareamento da população, apesar da tentativa da política eugenista de apagar o nosso povo, nós conseguimos nos amar e manter nossas culturas e tradições. O afeto é uma das maiores tecnologias de sobrevivência que a gente tem, e a gente esquece disso. A gente esquece o poder do afeto, o poder de um “bom dia”. Três segundos do seu dia sorrindo para alguém que você não conhece pode mudar 24 horas do dia dessa pessoa, e é de graça. A gente esquece disso. Nas minhas canções, quando falo de afeto, tento trazer esse lugar de resiliência e empatia com outro.
“De terra coberta a lágrima me rega,
Não perde quem espera porque eu vou germinar
Florescer mais bonita como árvore vida
Fotossíntese filtra o que fica e o que vai
Carbônico entra, a folha sustenta
E quando se alimenta oxigênio sai
Então paro, respiro, eu penso e filtro
Só fica o que é bendito, o que for maldito vai
Chuva é alimento, folhas balançam ao vento
Na mente um mandamento: nós enverga, mas nós não cai”
(Paz para o Espírito, de Bia Ferreira)
Isso é tecnologia de sobrevivência. Isso é como a gente se mantém vivo entendendo que pode arrancar o braço, mas nasce outro. A gente é igual a um galho de árvore, a natureza está em nós. A gente é 70% água, então é entender que a gente tem resiliência e vida em nós, e que a gente pode se reinventar com o tempo. Quando trago afeto como tecnologia de sobrevivência, convido as pessoas para levantarem a bandeira do amor, para olharem o problema do outro com empatia.
#Colabora: Você diz que produz Música de Mulher Preta (MMP). Qual a importância de definir suas produções a partir desse lugar?
Bia Ferreira: É a importância de dar um basta ao epistemicídio que está imposto a mulheres negras historicamente. “Epistemicídio” é o apagamento da identidade, da história e da construção intelectual de determinado indivíduo. Muitas coisas escritas, produzidas e pensadas por mulheres negras na sociedade foram apagadas em vários lugares, ou muitas tiveram voz através de falas e textos de outras pessoas, sendo impedidas de contarem sua própria história. Quando denomino a minha arte como Música de Mulher Preta, identifico qual é o interlocutor da narrativa que estou trazendo. Também digo que faço parte da Música Negra Contemporânea, porque me inclui num movimento que tenho muito orgulho de fazer parte. Tenho orgulho de ser contemporânea de Josyara, Ellen Oléria, Dani, Nega, Anna Tréa, Paula Lima, Preta Ferreira, Preta Rara e várias mulheres negras que estão fazendo o movimento cultural e artístico da Música Negra Contemporânea.
#Colabora: E esse movimento está atingindo não só o Brasil, mas também o mundo. Você sentiu diferença entre a percepção do seu artivismo em diferentes países e culturas?
Bia Ferreira: No caso do público brasileiro e português, é diferente por conta da língua, então eles compreendem a narrativa de construção, da rima e da música. Quando estou no Brasil, consigo gerar uma identificação através da narrativa — coisa que aqui fora eu consigo gerar através da sonoridade e da performance, mas principalmente através do discurso que faço antes de cada canção. Explico na linguagem que eles vão entender, seja inglês, espanhol ou francês, sobre o que aquela canção trata. Faço show na Alemanha que a galera sai chorando, fiz um na Eslováquia que tinham umas 1400 pessoas cantando que “a conta vai chegar, diga não ao genocídio do povo preto” em português, e eles nem falavam português. O que tenho sentido é que eles têm visto um avanço do conservadorismo muito avassalador. Acho que tem um público que não era politizado, mas que vem sentindo a necessidade de se politizar, e foi aí que a minha arte se tornou relevante para essas pessoas. Muitos brasileiros me ouvem, em geral, mas, por exemplo, esse ano, estive no line up (escalação) de um festival no Brasil, o Festival Latinidades, voltado para mulheres negras. Nenhum outro festival no Brasil me bancou esse ano, por causa das narrativas que trago em cima do palco, de falar que, sim, existe privilégio, racismo, machismo, xenofobia, necropolítica e genocídio dos povos, e que grandes empresas compactuam para que isso aconteça. Sinto que o meu público do Brasil é um público que realmente gosta muito e dá muito suporte para o meu trabalho, mesmo sem fazer shows — e quando faço, eles lotam, é sold out. É bonito de ver, porque no Brasil consigo gerar uma identificação de história. Tem muita coisa que liga a gente; às vezes minha história não é parecida com a sua, mas a da sua mãe é. Isso faz com que a gente tenha uma ligação, e eu não vou sentir isso em lugar nenhum que não seja o Brasil.
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Estudante de jornalismo na Universidade Federal Fluminense (UFF). Gonçalense, ou papa-goiaba, apaixonada pelas possibilidades de se contar histórias na área da comunicação. Foi estagiária na Assessoria de Comunicação do Ministério Público Federal e da UFF. Amante da sétima arte e crítica amadora do universo geek.