Quando Erika Candido iniciou na produção audiovisual, há mais de 20 anos, foi um desafio fazer parte da indústria cinematográfica enquanto mulher negra. Ela diz: “não conseguia me ver, encontrar pares na jornada de produzir filmes. O mercado audiovisual era muito branco na minha época, e nem se discutia sobre ter equipes mistas e com gêneros diversos”. Mas Erika encontrou resposta ao construir redes para uma maior integração de outros profissionais negros, e hoje, aos 41 anos, é diretora-executiva da Kilomba Produções, que não carrega esse nome a toa; tem muito a ver com sua história.
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Erika “se aquilombou” porque não queria visibilidade sozinha. Isso significa que passou a convidar outras pessoas negras para trabalharem com ela, e a questionar essa ausência de diversidade nas equipes. “Meu compromisso é fazer a gira girar de forma justa e organizada, para estarmos sempre no centro da roda. Para sermos protagonistas das nossas histórias, sem perder as rédeas de quem somos e do quanto transformamos esse mundo que não nos convida a estar em posições de destaque”, conta a produtora. São eventos que criam, para além das janelas possíveis para esses filmes, possibilidades dos corpos negros transitarem e viverem em liberdade. São espaços de muita troca e aprendizado, e também percebemos que a maioria é liderada por mulheres negras
A falta de representatividade dentro e fora das telas, que Erika sentiu ao ingressar no mercado de trabalho, também aparece nos dados. Um relatório da Agência Nacional de Cinema (Ancine) revela que, em 2021, entre os empregados formais do setor audiovisual, 59,5% eram brancos, 32,5% pardos e 6,8% pretos. Além disso, entre 1995 e 2022, nenhuma mulher negra dirigiu ou roteirizou um filme de grande público, segundo o Grupo Multidisciplinar em Ações Afirmativas (Gemaa) da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ). A falta de diversidade também afeta a forma como as pessoas negras se veem nas produções: 24% afirmam que são retratadas como perigosas no audiovisual, e 88% acreditam que é preciso mais diversidade nas produções, segundo pesquisa da Paramount Global.
Assim como Erika em sua trajetória profissional, mostras e festivais de cinema negro vão na contramão desse cenário ao se organizarem como espaços de aquilombamentos, criando suas próprias lógicas de produção, curadoria e circulação, preservando locais de encontro entre profissionais negros do audiovisual e dando visibilidade a narrativas afro-brasileiras. Segundo Erika, hoje é possível ver “um reflexo de lutas do passado” — de nomes como Dom Filó, Zózimo Bulbul, Abdias Nascimento e Beatriz Nascimento. “Esse movimento possibilitou que as próximas gerações pudessem sonhar mais do que as anteriores. Não havia essa quantidade de iniciativas falando por nós, sobre nós, brigando para ocuparmos esses espaços”, afirma. Um exemplo é o Encontro Internacional de Cinema Negro Zózimo Bulbul, do qual Erika Candido já foi diretora de produção.
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Outro exemplo é a Egbé – Mostra de Cinema Negro de Sergipe, que está em sua 8° edição e acontece entre 29 de março e 05 de abril. A mostra realiza exibições de filmes, mesas de debate e espaços de formação como oficinas. O evento nasceu em 2016 e parte de uma insatisfação com a falta de visibilidade do cinema negro no estado de Sergipe, além da inquietação com a baixa circulação de filmes de cineastas negros em festivais hegemônicos.
A pesquisadora e cineasta Luciana Oliveira, uma das idealizadoras da mostra, lembra: “em 2015, vi pela primeira vez o filme Ôrí (1989), de Raquel Gerber, e me impactou enquanto mulher negra e jovem militante”. O documentário aborda a história e a resistência da população negra no Brasil, com foco na construção da identidade afro-brasileira. Narrado pela intelectual e ativista Beatriz Nascimento, o filme traça um panorama sobre o movimento negro entre as décadas de 1970 e 1980, explorando temas como quilombos, ancestralidade, cultura e luta por direitos.
“Me deparo com a imagem de Beatriz, uma mulher negra retinta, com toda aquela reflexão a frente de seu tempo. Pensei: como assim ela é sergipana? Foi um conjunto de fatores que fez com que nos mobilizássemos para criar essa janela, pois não tínhamos acessos a esses filmes. Para a gente era uma angústia não haver esse debate aqui, sendo que já tínhamos uma produção pulsante. Só não havia nomenclatura para o que já existia, o cinema negro”, conta Luciana.
Assim nasceu, há oito anos, a mostra Egbé — palavra que em Iorubá significa uma sociedade que se organiza em algo comum — surge para dar visibilidade aos filmes de cineastas negros, tanto locais quanto de outras regiões do Brasil, que não encontravam espaço nos circuitos tradicionais. A mostra foi concebida também como um espaço de encontro, diálogo e “aquilombamento”, seguindo a perspectiva de Beatriz Nascimento sobre o quilombo como um espaço de resistência cultural. “São espaços onde corpos negros também podem viver em liberdade”, diz fundadora da Egbé
Além de impulsionar a visibilidade dos filmes produzidos por cineastas negros, mostras e festivais com o Egbé também são espaços de encontros. “São eventos que criam, para além das janelas possíveis para esses filmes, possibilidades dos corpos negros transitarem e viverem em liberdade. São espaços de muita troca e aprendizado, e também percebemos que a maioria é liderada por mulheres negras. Também notamos que mesmo as mostras competitivas não têm um caráter ‘predatório’”, afirma Luciana.
Para João Brazil, co-idealizador do Egbé, esses eventos também estão muito ligados aos clubes de cinema. “A gente também vê esses espaços-quilombos relacionados ao cineclubismo, onde unimos o cinema e as discussões levantadas com filmes. Além disso, a gente tenta sempre mesclar com outras áreas, como as artes visuais, economia criativa, teatro e música”, explica.
A mostra passa a ser itinerante no segundo semestre de abril, e o foco são nas regiões com pouco acesso a essas produções em Sergipe. João Brazil diz que já circularam em locais como escolas, periferias, comunidades quilombolas, ribeirinhas e indígenas. “A gente vê o quanto é importante o investimento em políticas públicas para que mais projetos, instituições e coletivos cheguem a essas localidades levando cinema, teatro e todas as artes possíveis, porque arte também é educação, e a educação transforma a sociedade”, conta.
E ainda, para além do acesso ao cinema, participantes da mostra alcançam também informações sobre a história da população negra e se identificam com narrativas que se assemelham às suas realidades. “Egbé mudou a minha vida”, diz o cantor e compositor Alex Sant’anna. “Comecei a frequentar num momento que estava em processo de autoconhecimento, de me ver como negro, me enxergar no espelho”, conta . A fotógrafa Pritty Reis também deixa um depoimento. “Foi através da mostra que redescobri minhas raízes e minha autoestima como mulher negra. Pude vivenciar através do cinema cada passo que nosso povo deu e aprender com essa luta”.
A cineasta e comunicóloga Nayra Albuquerque terá o documentário que dirigiu, “Ginga Reggae na Jamaica do Brasil”, exibido na mostra, e compartilha que é “uma pessoa abraçada pelo aquilombamento negro. Festivais e mostras como a Egbé, que tenho circulado, criam uma rede de apoio imensa, porque a gente partilha de experiências comuns. São ambientes seguros para os cineastas e fortalecem muito a nossa produção, nossa autoestima, e nosso caminhar no mercado audiovisual que já é tão competitivo”. Quanto ao atual cenário do cinema negro no Brasil, para impulsionar a presença dessas narrativas para além dos festivais e mostras, Nayra acredita que é preciso que “pessoas negras precisam estar em posições de poder com um pensamento de bem-viver coletivo, porque somente assim será possível gerar mudanças estruturais”.
Mostras, festivais e encontros do cinema negro por região*
Nordeste
– EGBÉ Mostra de Cinema Negro
– Infinita Festival de Cinemas Negros e Indígenas
– MIMB – Mostra Itinerante de Cinema Negro Mohamed Bamba
– Mostra Ousmane Sembene de Cinema (MOSC)
– Mostra Quilombo de Cinema Negro e Indígena
– Semana do Audiovisual Negro
– Mostra de Cinema Negro de São Félix
– Mostra Cine AfroMar
Norte
– Festival de Cinema Negro Zélia Amador de Deus
Centro-Oeste
– Mostra de Cinema Negro de Mato Grosso
– Mostra Competitiva de Cinema Negro Adélia Sampaio
Sudeste
– Encontros de Cinema Negro Zózimo Bulbul – Brasil, Africa e Caribe
– Mostra de Cinema Negro no Espírito Santo (MOCINES)
– Mostra Cinema e Negritude – Festival de Cinema de Vitória
– Festival Internacional do Audiovisual Negro do Brasil (FIANB)
– Semana de Cinema Negro de Belo Horizonte
– Mostra de Cinema IFÉ
– Nicho Novembro
– OJU – Roda Sesc De Cinemas Negros
Sul
– OHUN Mostra de Cinema Negro de Pelotas
– Griot – Festival de Cinema Negro Contemporâneo
– Festival Cinema Negro em Ação
*Lista organizada a partir de informações da iniciativa Mapa do Cinema Negro.