Por experiência pessoal, Mirian Fichtner nunca sentiu preconceito na pele. Gaúcha, formada em escolas e universidades de qualidade e morando em uma região nobre do Rio de Janeiro, a fotógrafa e jornalista só passou a compreender as engrenagens da intolerância quando começou a documentar a cultura negra do Rio Grande do Sul. Embora busque a espiritualidade de diferentes formas, são as religiões de matriz africana que estão mais presentes em sua vida. Prova disso é seu livro de fotos Cavalo de santo, de 2011, hoje esgotado. Um registro da presença da cultura afro-brasileira no Sul do país, o trabalho saiu das páginas e ganhou movimento.
O livro virou filme, foi selecionado para a mostra competitiva de longas-metragens gaúchos do 49º Festival de Cinema de Gramado, em agosto de 2021, e ganhou quatro prêmios: melhor filme, melhor filme pelo júri popular, melhor roteiro e melhor trilha sonora. No mesmo mês, Cavalo de santo também participou do FestCine Pedra Azul, no Espírito Santo. E em setembro foi selecionado para o 4º FestCine de Rua de Remígio, na Paraíba, e poderá ser assistido online.
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Em entrevista ao #Colabora, a fotojornalista fala sobre o processo de fazer um documentário sobre as religiões afro-gaúchas e as dificuldades que vieram com a produção: “O filme nasceu para dar voz e protagonismo aos personagens retratados no livro. Ouvir as rezas, o batuque, mostrar a cultura exuberante e conhecer a vida pulsante dos terreiros gaúchos. É uma forma de preservar saberes e memórias desta cultura imaterial afro-brasileira no Rio Grande do Sul, transmitida pela oralidade da ancestralidade negra no estado”.
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Veja o que já enviamosNos terreiros, filmagens sem equipe em respeito aos rituais
Os desafios de adaptação do livro para as telas não foram poucos. Uma das grandes preocupações de Mirian Fichtner, que dividiu a direção de Cavalo de santo com o jornalista, poeta e produtor cultural Carlos Caramez, foi manter a emoção essencial evocada pela estética e a densidade das cores presentes no material impresso.
“Como venho do jornalismo e da fotografia, pensava mais na narrativa visual e na síntese da foto. Aos poucos, na transição da narrativa do livro para o filme, fui aprendendo a contar uma história, captando imagens privilegiando o roteiro e a montagem”, diz Mirian.
A captação de imagens e som precisou de atenção especial, pois a maioria dos rituais e cerimônias nos terreiros ocorre à noite. A diretora precisou ser engenhosa para conseguir boa iluminação, usando contraluz e luz natural. Muitas vezes ela era o único membro da equipe presente: “Filmei sozinha para não atrapalhar e interferir nos acontecimentos, procurando ser uma energia invisível”.
A iluminação de Cavalo de santo chamou a atenção do cineasta Silvio Tendler, que não mediu elogios: “Encantador, absolutamente rico, bonito. Que luz, que fotografia”.
A falta de interesse das empresas pela cultura negra no Rio Grande Sul
O estágio mais árduo da produção de Cavalo de santo foi o financiamento do projeto. As primeiras tentativas datam de 2016, com a produção de um média-metragem de 52 minutos através de um edital do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES).
“Ao longo do projeto percebemos que o tema não fazia parte da cultura oficial gaúcha. A suspeita se materializou nas inúmeras recusas de patrocínio”, conta Mirian Fichtner. “Com a inscrição no Pronac da Lei Rouanet, visitamos mais de 30 empresas apoiadoras de projetos culturais. Nunca recebemos uma negativa explícita. Uma grande empresa elogiou o trabalho e afirmou que possuía a verba solicitada, mas sugeriu que trocássemos de assunto”.
Era vida e arte contracenando juntos. Se o documentário mostra como o enriquecimento do Rio Grande do Sul tem um histórico de violência, a dificuldade de fazer o filme ressalta como a violência ainda continua forte, mesmo que com contornos mais sutis. Mas foi durante a pandemia, quando o mundo parece fora dos trilhos, que o projeto se tornou viável. Apesar do crescente desmonte do setor cultural, a produção conseguiu apoio da Lei Aldir Blanc.
“Foi preciso muito trabalho nos quatro meses iniciais de 2021 para finalizar e lançar o filme. Afinal, foram necessárias gravações de novos depoimentos e rituais, além de edição, montagem, colorização, sonorização, acessibilidade como libras, audiodescrição e legendas descritivas, promoção nas redes sociais, elaboração do site e versão do filme para inglês”, elenca Mirian. “Mas tivemos sorte, porque fizemos várias cenas novas antes do início da pandemia. Gravamos as três últimas entrevistas em março de 2021, com equipe mínima, distanciamento, máscaras e álcool, em espaços com boa ventilação dentro dos terreiros”.
Retrocessos da intolerância na década que separa livro e filme
Dez anos depois da publicação do livro e com o documentário pronto, a diretora reflete sobre como o racismo e a intolerância religiosa operam no Brasil de forma sistemática:
“Houve avanços, mas também muitos retrocessos. Com o crescimento do neopentecostalismo, que sataniza cultos e participantes de religiões africanas no Brasil, a intolerância cresceu. Um exemplo disso é como, no Rio de Janeiro, traficantes aliados às milícias evangélicas neopentecostais expulsam e destroem terreiros nas comunidades”.
Mesmo com números devastadores, a união entre resistência e religião continua, em um exercício de memória cultural, democracia e justiça. Em 2020, na véspera do Dia da Consciência Negra, um cliente negro foi espancado até a morte em uma loja do Carrefour de Porto Alegre. A vítima era adepta do batuque, ocupando o cargo de tamboreiro no terreiro onde cumpria suas funções religiosas. Sua espiritualidade logo foi posta à prova, assim como sua humanidade. A demonização da religião e as alegações de que era um homem violento também não demoraram a aparecer. Diante de exemplos recentes de intolerância como este, não é difícil entender como tanto conforto e esperança são encontrados em espaços de fé.
Afro-gaúchos, povo orgulhoso da cultura negra no Rio Grande do Sul
No batuque, a expressão “cavalo de santo” é usada para representar o indivíduo que recebe a energia do seu orixá, a pessoa na qual o orixá se manifesta. Por isso a escolha do nome: o livro e o documentário são também lugares onde as entidades podem se manifestar. Mais do que um retrato antropológico ou instrumento de mudança social, o longa foi um imenso aprendizado pessoal para todos os envolvidos. E, arrisco dizer, até para quem apenas assiste ao filme.
Refletindo sobre suas percepções pessoais após esta década de trabalho, Mirian percebe como o racismo se perpetua constantemente com a invisibilidade sistemática das heranças africanas:
“Com este trabalho foi possível aprender muito. Entre outras coisas, que candomblé e batuque são religião irmãs formadas no Brasil, através dos negros que foram escravizados e trazidos para diversas regiões do país. Fotografei pais e mães-de-santo com mais de 50 anos de feitura e encontrei um povo de religião orgulhoso de sua fé e da sua cultura. Gente guerreira, incansável no trabalho diário de materializar rituais, preparar oferendas, festas, atender pessoas e manter esta cultura ancestral viva. Foram inúmeras visitas aos terreiros fotografados para acompanhar o calendário de atividades e os vários rituais, alguns em extinção, em todas as linhas da religiosidade afro em Porto Alegre e na região metropolitana, no litoral e no sul do estado, berço da ancestralidade afro no Rio Grande do Sul”.
Produzido por Cubo Filmes, em parceria com Estação Filmes, Pluf Fotografias e Caminho do Mar Soluções Culturais, Cavalo de santo em breve, também estará disponível para compra digital e em serviços de streaming.
Queridos parceiros do projetocabora.com.br Amei a reportagem do Vinicius.Muito obrigada pelo espaço .Orgulhosa de estar aí nas páginas com vcs. !!!!!
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AXÉ MEUS IRMÃOS. MARAVILHOSO, REAL E ACIMA DE TUDO, IQUIETANTE. ESTE É PARA MIM, O QUE MAIS PORTA EM CAVALO DE SANTO. SENTÍ FALTA DA FESTA DE MÃE IEMANJÁ EM PORTO ALEGRE, BEM COMO, DA PROCERSSÃO DE PAI OGUM. ASSAGEO. ALVARO LOBATO, 53/3222.34.09