A drástica transição religiosa numa pequena cidade de Minas e o “Apocalipse nos Trópicos”

Em apenas 30 anos, porcentagem de católicos em Alto Caparaó caiu pela metade e a de evangélicos quase dobrou; documentário de Petra Costa mostra ameaças da mistura entre religião e poder

Por José Eustáquio Diniz Alves | ODS 16
Publicada em 11 de agosto de 2025 - 09:01  -  Atualizada em 11 de agosto de 2025 - 11:11
Tempo de leitura: 13 min

Cena de “Apocalipse nos Trópicos”: drástica transição religiosa em Alto Caparaó (MG), apesar de incomum, mostra como é possível uma hegemonia religiosa, que o documentário retrata em sua face mais fundamentalista (Foto: Busca Vida Filmes / Divulgação)

O município de Alto Caparaó, localizado no leste de Minas Gerais, na fronteira com o Espírito Santo, é porta de entrada para o Parque Nacional do Caparaó, que abriga o Pico da Bandeira, com 2.891 metros de altitude, o 3º ponto mais elevado do Brasil.

Historicamente, os distritos de Caparaó e Caparaó Velho pertenciam ao município de Carangola, sendo que Caparaó emancipou em 1962 e o distrito de Caparaó Velho passou a pertencer ao novo Município. Pela lei 8.285, de outubro de 1982, o distrito de Caparaó Velho passou a se chamar Alto Caparaó e por meio de plebiscito popular, emancipou-se em 1995.

No final de década de 1960, houve um movimento de guerrilha na região, que provavelmente foi o primeiro movimento armado de oposição ao regime militar brasileiro conhecido como Guerrilha do Caparaó, que levou à localidade cerca de dez mil soldados da Força Aérea Brasileira para efetuar a prisão dos combatentes.

Mas o pequeno município – hoje com pouco menos de seis mil habitantes – se destaca também por apresentar uma das maiores transformações do cenário religioso de Minas Gerais e do Brasil. Entre 1991 e 2022 houve uma grande queda das filiações católicas e um grande aumento das filiações evangélicas. Os percentuais dos sem religião e outras religiões não apresentaram mudanças significativas.

O gráfico abaixo mostra que o percentual de católicos em Alto Caparaó caiu de 55,1% em 1991 para 25,4% em 2022, enquanto o percentual de evangélicos passou de 34,7% em 1991 para 63% em 2022. Entre 2010 e 2022 caíram os percentuais dos sem religião e das outras religiões. 

Porcentagem de católicos e evangélicos e sem religião no município mineiro de Alto Caparaó

O gráfico abaixo mostra que o estado de Minas Gerais tinha uma altíssima proporção de católicos em 1991 (86,8%), caindo para 63,5% em 2022. Os evangélicos subiram de 7,7% para 24,8% no mesmo período. O grupo sem religião passou de 2,8% para 5,7% e as demais religiões passaram de 2,6% para 6% entre 1991 e 2022. 

Minas Gerais tem um percentual de católicos acima da média nacional, embora abaixo da média apresentada pela região Nordeste. E tem percentuais de evangélicos e dos outros dois grupos abaixo da média nacional. A transição religiosa mineira tem sido mais lenta do que a transição brasileira. 

Porcentagem de católicos, evangélicos e sem religião em Minas Gerais

O cenário religioso de Alto Caparaó entre os dois grandes grupos é o inverso do que ocorre em nível estadual  em 2022, com os católicos estando em torno de 63% em Minas Gerais e em 25% em Alto Caparaó e os evangélicos estando em torno de 25% em Minas Gerais e em 63% em Alto Caparaó. É quase como um espelho invertido. 

O exemplo de Alto Caparaó representa um caso extremo de mudança religiosa. Os católicos eram maioria da população em 1991 e caíram para um quarto em 2022, enquanto os evangélicos atingiram maioria absoluta da população no ano 2000 e estão chegando perto de dois terços da população. Os outros dois grupos tem uma baixa participação. 

A tabela abaixo apresenta a distribuição percentual dos quatro grupos religiosos e também o Índice de Entropia de Shannon, que é um indicador que mede o grau de concentração ou de pluralidade religiosa. Este índice é como um termômetro que nos diz quão diversificado ou plural é um determinado cenário.

Num contexto religioso onde a esmagadora maioria da população segue uma única religião (por exemplo, 90% católicos e 10% divididos em outras crenças). Há pouca variedade perceptível. Portanto, baixo índice de Shannon.

Num contexto religioso onde as pessoas estão mais ou menos igualmente distribuídas entre várias religiões diferentes (por exemplo, 25% católicos, 25% evangélicos, 25% sem religião, 25% outras), o cenário é muito mais diverso em opções e menos dominado por uma única crença. Situação de muita pluralidade e alto índice de Shannon.

Portanto, um índice de Shannon elevado significa mais equilíbrio entre as diferentes categorias religiosas. Um índice de Shannon baixo significa menos equilíbrio, com uma ou poucas categorias dominando. Ao analisar as mudanças no Índice de Shannon ao longo do tempo, podemos entender se o município se tornou mais ou menos diversificado em suas crenças, e qual o impacto do crescimento ou declínio de certas religiões nessa paisagem geral.

No caso de Alto Caparaó, nota-se que o Índice de Entropia de Shannon era de 1,367 em 1991 e aumentou para 1,438 em 2000 e para 1,528 em 2010. Isto mostra que o município estava apresentando um quadro de transição religiosa com aumento da pluralidade nas opções de crença. Porém, o índice caiu para 1,364 em 2022, indicando uma redução da pluralidade religiosa e um aumento do monopólio religioso, mas trocando a maioria católica pela maioria evangélica.

Distribuição religiosa em Alto Caparaó e o índice de Shannon

Desta forma, a transição religiosa em Alto Caparaó tem apresentado uma tendência excepcional pois o maior equilíbrio entre os grupos de crenças ocorreu até 2010 e no último período intercensitário voltou a apresentar um desequilíbrio. Isto levanta um ponto crucial e pertinente para a análise da dinâmica religiosa. Existe a possibilidade de o município trocar um tipo de concentração (o monopólio católico histórico) por outro (uma hegemonia evangélica crescente).

O problema de trocar o “monopólio católico” por uma “hegemonia evangélica” reside no fato de que, se uma única categoria religiosa se torna excessivamente dominante, o índice de Shannon tende a cair, mesmo que o número absoluto de outras religiões continue existindo.

Nesse cenário, poderíamos ter uma situação em que a influência política, social e cultural da comunidade evangélica se tornaria tão avassaladora que, na prática, reproduziria uma dinâmica de “monopólio” ou, mais precisamente, de hegemonia – onde uma única cosmovisão religiosa teria um peso desproporcional. 

Uma nova concentração, mesmo que com um ator diferente, pode trazer preocupações semelhantes às do antigo monopólio. A voz de um grupo dominante pode se sobrepor a outras, dificultando o diálogo inter-religioso e a expressão de visões de mundo diferentes. Além do mais, uma maioria religiosa pode buscar impor suas pautas morais e sociais à legislação, afetando direitos de minorias e a laicidade do Estado.

O aumento inicial do Índice de Shannon em Alto Caparaó pode ser um caso isolado ou muito minoritário.  No entanto, serve para alertar que uma queda do índice, em vez de uma distribuição cada vez mais equitativa entre muitas opções, significa uma nova forma de concentração. O risco é que, se o crescimento de um grupo específico for muito acentuado, pode representar um afastamento de um ideal de pluralidade religiosa genuína e trocar uma predominância por outra, com todas as implicações que isso acarreta para a democracia.

Cena de “Apocalipse nos Trópicos” com imagem do 8 de Janeiro: documentário revela como a fé se transformou em um campo de batalha público (Foto: Busca Vida Filmes / Divulgação)

Apocalipse nos trópicos e a transição religiosa

O exemplo de Alto Caparaó não é representativo de tudo o que está ocorrendo nos municípios brasileiros. Até o momento trata-se de uma exceção. Na verdade, nas últimas décadas, o país, as regiões e as Unidades da Federação estão transitando para um cenário de maior pluralidade religiosa. Mas a possibilidade de uma nova redução do índice de Shannon e o surgimento de um novo monopólio religioso preocupa, sobretudo, diante da ameaça do crescimento dos setores do conservadorismo moral e do fundamentalismo religioso. 

O crescimento da representação evangélica e o fortalecimento das correntes de extrema direita é o tema do documentário “Apocalipse nos Trópicos”, da cineasta Petra Costa, coproduzido por Alessandra Orofino. O foco das filmagens é a interseção entre religião e poder. Petra Costa acompanhou o tema ao longo de cerca de quatro anos, obtendo acesso a figuras centrais da cena política e religiosa brasileira, como o ex-presidente Jair Bolsonaro, o atual presidente Luiz Inácio Lula da Silva, o pastor Silas Malafaia e o deputado-pastor Cabo Daciolo. 

O documentário mescla uma abordagem pessoal – com a própria diretora na narração – revelando como a fé se transformou em um campo de batalha público. A obra apresenta cultos em massa, o uso recorrente de linguagem apocalíptica na campanha de Bolsonaro, a condução da pandemia sob uma ótica religiosa e os eventos que vão dos protestos de 7 de setembro de 2022 até os ataques às sedes dos Três Poderes, em Brasília, no dia 8 de janeiro de 2023.

O documentário mostra como setores do evangelicalismo, sobretudo os mais conservadores, adotam uma leitura literal e militante do Apocalipse bíblico: o mundo estaria em guerra espiritual; o mal estaria encarnado em certos grupos sociais ou políticos (esquerda, comunistas, feministas, LGBTQIA+ etc.); o bem estaria representado por líderes “ungidos” por Deus e Jesus voltará em breve, e os cristãos devem “tomar os 7 montes da sociedade” (Artes/Entretenimento, Negócios/Economia, Governo/Política, Mídia, Educação, Família e Religião/Igreja). Essa leitura é próxima do que se conhece como teologia do domínio que associa fé cristã com poder político e controle institucional.

Essa visão apocalíptica gera uma série de efeitos que Petra Costa evidencia no filme:

a) Demonização dos opositores: adversários políticos são tratados como inimigos de Deus, e não como interlocutores legítimos. Isso mina o diálogo democrático e incentiva o ódio.

b) Justificativa moral para o autoritarismo: se a batalha é entre o bem e o mal, qualquer meio é válido para salvar o “povo de Deus”. Daí surge apoio a medidas autoritárias, como ataques ao Supremo, militarização, censura de professores, entre outros.

c) Desinformação e negacionismo: a crença de que a ciência, a mídia e as instituições estão “tomadas pelo mal” leva à rejeição de vacinas, dos indicadores da crise climática, da imprensa e das regras democráticas, como vimos na pandemia e nas eleições de 2022.

d) Deslegitimação das eleições: o discurso apocalíptico justifica o não reconhecimento de resultados eleitorais — como aconteceu nos atos golpistas de 8 de janeiro de 2023, interpretados no documentário como tentativa de instaurar um governo “cristão” acima das instituições.

O documentário mostra que a visão religiosa do Apocalipse mobiliza politicamente grande parte da população, justifica o autoritarismo em nome de Deus e enfraquece a democracia ao negar o pluralismo e a legitimidade das instituições. Evidentemente, não se deve discriminar qualquer religião, mas cabe sim questionar o uso político fundamentalista e instrumentalizado, que substitui o debate democrático por uma guerra moral.

Alguns críticos argumentam que o documentário foca de forma desproporcional nos aspectos negativos do movimento evangélico (fanatismo, fundamentalismo, aliança com a extrema direita), sem contextualizar a diversidade interna do campo evangélico (há muitas denominações e correntes de pensamento, incluindo as mais progressistas ou engajadas em causas sociais), ou sem reconhecer o papel positivo de muitas igrejas evangélicas na vida de seus fiéis (apoio comunitário, combate a vícios, etc.). Alegam que a narrativa é generalizante e enviesada.

Outro ponto de crítica é sobre a ausência do conservadorismo católico. O fundamentalismo não é exclusivo do evangelicalismo; ele existe também em segmentos do catolicismo (tradicionalistas, ultraconservadores, grupos que advogam pautas morais rígidas e se opõem a avanços em direitos humanos com base em interpretações dogmáticas). Se o documentário foca no perigo do fundamentalismo religioso, a omissão ou a menor atenção ao fundamentalismo católico (que também se alia à extrema direita e atua politicamente, como em questões de aborto e gênero) pode ser vista como uma lacuna.

Um outro ponto controverso diz respeito à possibilidade de implantação de uma teocracia no Brasil, impulsionada pela corrosão das instituições democráticas. De fato, há ameaças concretas oriundas de setores políticos vinculados à extrema direita. Embora essa hipótese não possa ser inteiramente descartada, o país ainda se apoia em um Estado de Direito e em um sistema de freios e contrapesos entre os três poderes, que garante certa resiliência institucional.

Do ponto de vista da dinâmica religiosa, o Brasil está muito longe da possibilidade de implementar um monopólio de uma crença e de construir uma hegemonia de algum grupo fundamentalista. Na verdade, são poucos os municípios que apresentam uma tendência de concentração em apenas um grupo religioso. Na média nacional existe uma clara trajetória de aumento da pluralidade religiosa.

Essa diversidade religiosa, por si só, não representa uma barreira automática contra o risco de uma teocracia e nem garante o pleno funcionamento da democracia. Porém, quando a democracia fica vazia e não consegue garantir direitos para a maioria da população, ela deixa de ocupar o centro do debate, perdendo espaço para outras narrativas, conforme bem apresentado no “Apocalipse nos Trópicos”.

É fundamental que a liberdade religiosa conviva com o respeito ao Estado laico e com os pesos e contrapesos da democracia. Por enquanto, o ritmo da transição religiosa no Brasil caminha para uma configuração mais equilibrada, o que pode contribuir para a estabilidade institucional e para o avanço do bem-estar coletivo, com respeito às minorias. Como o assunto é complexo, é normal que haja diferentes pontos de vista. Mas, sem dúvida, vale a pena ver “Apocalipse nos Trópicos”.

Referências:

ALVES, JED. A transição religiosa nos 200 anos da Independência, # Colabora, 30/05/2022

https://projetocolabora.com.br/ods16/transicao-religiosa-evangelicos-serao-maioria-nos-proximos-dez-anos/

ALVES, JED. Os evangélicos ultrapassaram os católicos em 2 estados e em 245 cidades, # Colabora, 16/06/2025. https://projetocolabora.com.br/ods11/evangelicos-ultrapassam-catolicos-em-2-estados-e-em-245-cidades/  

ALVES, JED. A transição religiosa na Região Metropolitana do Rio de Janeiro, # Colabora, 14/07/2022

https://projetocolabora.com.br/ods11/avanco-evangelico-a-transicao-religiosa-na-regiao-metropolitana-do-rio-de-janeiro/

ISER. Censo 2022: reflexões sobre religiões e sociedade. Debate com José Eustáquio Alves e Paul Freston, mediado por Christina Vital, 03/07/2025 https://www.youtube.com/watch?v=GvbtBA1jxnk 

 

José Eustáquio Diniz Alves

José Eustáquio Diniz Alves é sociólogo, mestre em economia, doutor em Demografia pelo Centro de Desenvolvimento e Planejamento Regional (Cedeplar/UFMG), pesquisador aposentado do IBGE, colaborador do Projeto #Colabora e autor do livro "ALVES, JED. Demografia e Economia nos 200 anos da Independência do Brasil e cenários para o século" (com a colaboração de F. Galiza), editado pela Escola de Negócios e Seguro, Rio de Janeiro, 2022.

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