A maconha que transforma a vida de mulheres negras em territórios reduzidos à criminalização

Mulheres negras e periféricas lideram associações de cultivo medicinal e fazem de suas casas espaços de cuidado coletivo. Luta por saúde envolve enfrentar estigmas, falta de infraestrutura e vigilância policial

Por Mariana Rosetti e Paola Churchill | ODS 10
Publicada em 5 de dezembro de 2025 - 09:20  -  Atualizada em 5 de dezembro de 2025 - 09:35
Tempo de leitura: 14 min

Marilene fundou associação para garantir direito ao uso da maconha para fins medicinais em periferias (Foto: Divulgação)

18 dias seguidos. Aproximadamente 432 horas. Quase três semanas. Esse foi o período que Lucas passou convulsionando em 2014, aos 14 anos. Seu corpo não respondia mais aos seis anticonvulsivantes que tomava diariamente. Marilene da Silva Lima de Oliveira, de 44 anos, mãe do garoto, assistia impotente enquanto a medicina tradicional chegava ao seu limite. A solução viria de onde menos esperava e de onde todos julgavam: da maconha.

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Marilene, uma mulher negra, líder comunitária e moradora de periferia, é fundadora da Abrario, associação de cannabis medicinal sediada em Niterói que atende mais de 3.500 pessoas em 17 estados

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A pouco mais de 20km dali, no Complexo do Alemão, também no Rio de Janeiro, Rafaela França vive trajetória semelhante. Coordenadora do Núcleo de Estimulação Estrela de Maria (NEEM), criado em 2021, encontrou na cannabis uma resposta para o abandono institucional. O núcleo “nasce da dor com a Maria, minha filha, da falta de acesso ao diagnóstico e também da falta de acesso à cannabis medicinal”, explica. “Nasce dessa dor, para que ficasse mais leve para outras mães atípicas de favela”.

Nas periferias brasileiras, essas mulheres lideram iniciativas que transformam casas em espaços de cuidado coletivo e salvam vidas onde o Estado se faz ausente.

O óleo que mudou tudo

Lucas teve, aos 4 anos, com a primeira crise convulsiva. “Eu nunca tinha nem visto ninguém convulsionar, então foi bem assustador para mim”, recorda Marilene. O diagnóstico inicial foi epilepsia, com o filho tendo entre 50 e 60 crises por dia, mesmo medicado com doses altas de anticonvulsivantes.

Um especialista enfim o diagnosticou com síndrome de Rasmussen, uma doença cerebral rara e crônica que causa inflamação progressiva em um dos hemisférios do cérebro. Quando saiu do hospital após 18 dias de convulsões ininterruptas, “ele não sustentava nem o pescoço, ele só mexia os olhos, eu não sabia nem se meu filho me reconhecia”, lembra.

Eu sou a única mulher negra no Brasil presidente de uma associação de cannabis medicinal

Marilene da Silva Lima de Oliveira
Presidente da Abrario e líder comunitária

Foi num momento de desespero que o neurologista Dr. Eduardo Faveret, que assumiu o caso do garoto, mencionou que algumas mães estavam trazendo extrato de canabidiol de fora do país e tendo bons resultados contra a epilepsia. O tratamento custaria cerca de R$ 5 mil por mês — impensável para uma família que vivia com o benefício BPC — que garante um salário mínimo mensal para idosos e pessoas com deficiência que comprovem não ter meios de se sustentar ou de serem sustentados por suas famílias. 

Através de contatos, Marilene chegou até Cassiano Teixeira, fundador da Associação Brasileira de Apoio à Cannabis Esperança (Abrace Esperança), entidade pioneira da Paraíba autorizada judicialmente a cultivar e distribuir produtos à base de canabidiol. “Cassiano imediatamente mandou um vidro de óleo para o Lucas”, conta.

O resultado foi transformador: “com um mês de uso desse óleo, o Lucas voltou a falar, voltou a andar, as crises do meu filho zeraram. De 60 crises por dia, ele ficou meses sem ter crise nenhuma”. Ele voltou a andar de bicicleta, retornou à escola e recuperou sua vida.

Foto colorida de Rafael França sentada em cadeira na Alerj. Ela é uma mulher negra, com cabelo liso preto longo e usa uma camisa branca
Rafaela França criou o Núcleo de Estimulação Estrela de Maria para ajudar outras mães atípicas de favelas (Foto: Divulgação)

Da feira à luta pelo diagnóstico 

No Alemão, Rafaela França também via a vida da filha transformada com o uso de canabidiol. Maria tinha 1 ano e 6 meses quando começou a ter dificuldades para repetir palavras e gestos. Era 2020, plena pandemia, e conseguir atendimento no SUS parecia impossível. Rafaela, que vendia maquiagem e frutas e legumes na feira, tentou marcar consultas, mas sem sucesso. A solução veio da mesma internet que hoje conecta o NEEM a 170 favelas: uma vaquinha online arrecadou R$ 10 mil em menos de uma semana.

Com o dinheiro, pagou dois anos de plano de saúde e as primeiras consultas com neurologista que diagnosticou Maria com Transtorno do Espectro Autista (TEA). Mas era apenas o começo: sem observar mudanças significativas com os tratamentos convencionais, Rafaela passou a estudar o efeito do canabidiol em crianças com autismo. 

Ser uma liderança feminina na favela já é conturbado. Trabalhar com maconha é dez vezes pior. Os ataques na internet são bem pesados

Rafaela França
Fundadora do NEEM e líder comunitária

“A cannabis medicinal entra após vários protocolos de homeopatia. Ela chega para a gente com esperança de recuperar habilidades que a Maria perdeu”, conta. O primeiro frasco custou R$ 1,7 mil e durava três meses. Apesar da melhora cognitiva, Maria ainda tinha crises que a colocavam em risco, principalmente físico, e o remédio teve que ser trocado. No início de 2021, com um novo óleo também à base de canabidiol, a resposta veio rápida: as crises de autolesão diminuíram significativamente, e o desenvolvimento gradativo retornou.

A transformação na vida de Maria fez Rafaela perceber que outras mães no Alemão enfrentavam as mesmas barreiras. Foi assim que nasceu, em 2021, o Núcleo de Estimulação Estrela de Maria. 

A principal urgência das famílias que procuram o NEEM é semelhante às suas: diagnósticos confusos, quadros desacreditados pelos médicos e crianças fora da escola porque não existe mais nenhuma alternativa farmacológica que ajude no quadro. 

Foto colorida de Marilene da Silva Lima de Oliveira. Ela é uma mulher negra, com cabelo preto longo e cacheado. Ela usa óculos e um chapéu de palha. Ela aparece agachada diante de uma muda de cannabis - maconha. Ao fundo, outras plantas de maconha
“Mulher negra periférica plantar maconha, não dá nem mídia”; Marilene observa os desafios e preconceitos que envolvem a cannabis (Foto: Divulgação)

Da dor individual ao cuidado coletivo

Marilene percebeu que precisava fazer algo quando desconhecidos passaram a bater em sua porta, pedindo ajuda. “Eu estava fazendo uma coisa que ajudava muito as pessoas, mas era errada”, relembra. Já que, naquela época, usava canabidiol no tratamento do filho, mas não tinha autorização para plantar. 

Além da irregularidade, enfrentava um conflito interno: “Eu era muito preconceituosa, fui criada na igreja, aprendendo que maconha é tudo de ruim, que maconha destrói neurônios”, conta. Foi quando Cassiano e o Dr. Faveret sugeriram que ela abrisse uma associação. Após visitar a Abrace e ver fotos de crianças recuperadas – incluindo seu filho -, decidiu fundar a Abrario em 2019.

A Abrario completou cinco anos em novembro deste ano e hoje conta com 23 funcionários CLT, incluindo mães atípicas. “Tenho muito orgulho de poder fazer com que essas mães se libertem desse benefício e consigam voltar ao mercado de trabalho sabendo que o filho tá controlado, que o filho tá bem, que o filho tá vivendo”, afirma Marilene.

A associação possui autorização judicial para plantar, pesquisar e produzir, e mantém duas sedes: uma em Niterói, com o Espaço Lucas, que oferece atendimentos gratuitos e assistência social, jurídica e psicológica; e outra em Cachoeiras de Macacu, onde cultiva dois módulos de mil plantas cada. A associação produz óleos ricos em CBD, THC e balanceados, além de pomadas e spray nasal, e desenvolve projetos em parceria com a USP e UFRJ. A Abrario é mantida inteiramente pelos próprios associados, sem ajuda governamental.

As mulheres negras estão sempre à frente dos cuidados. Na periferia, a economia gira com mães solo, mulheres pretas. Se a gente não tem saúde, a gente não tem nada

Rafaela França
Fundadora do NEEM

Os trabalhos delas ganham ainda mais relevância diante do cenário nacional: estima-se que mais de 670 mil brasileiros utilizem produtos de cannabis, a maioria dependendo de decisões judiciais para ter acesso ao tratamento. Desde 2022, o Ministério da Saúde já atendeu cerca de 820 decisões judiciais para fornecimento desses produtos. Marilene é uma das poucas que conseguiu autorização para cultivar e produzir legalmente.

Rafaela também percebeu “que o NEEM precisava de uma sede física, principalmente por trabalharmos com direitos. A mãe ter direito a lavar roupa porque sua casa está sem água, ter um lugar seguro quando tem operação na favela. Se ela consegue chegar aqui, não precisa subir o morro duas vezes para esperar a criança sair da escola”, explica. “O NEEM nasce como um socorro em várias frentes, porque enfrentamos muitas demandas ao mesmo tempo”.

O NEEM atua hoje em 170 favelas do estado do Rio de Janeiro e em outras partes do Brasil, com atendimentos presenciais e online. “Hoje oferecemos acesso a direitos, cannabis medicinal, orientações de mediação escolar, distribuição mensal de leite, cestas básicas, apoio a famílias com crianças com seletividade alimentar e acesso a diagnósticos. Fazemos mutirões de diagnóstico. Trabalhamos em muitas frentes”, lista Rafaela.

O núcleo conta com equipe médica e jurídica que atua para garantir o tratamento digno e a continuidade do acesso à cannabis. “Não dá para não ter médico, não dá para não ter advogado. A gente precisa desse corpo de apoio”, afirma. A equipe médica é diversa: “Temos médicos pretos e médicos brancos, mas a maioria é branca e entende o privilégio que tem e como pode agregar. Existe consciência sobre reparação histórica.” O NEEM já realizou duas capacitações médicas para clínicas da família do território, pelo SUS, para que os médicos entendam como a cannabis pode somar em territórios vulneráveis.

Foto colorida de Rafael França ao lado da filha. Ela é uma mulher negra com cabelo preto e está sentada, olhando para a filha, uma criança negra que segura um celular. Ao fundo, parede em que se lê: "o senhor é o nosso pastor nada falta"
Rafael França ao lado da filha; líder comunitária defende o acesso mais democrático à cannabis no Brasil (Foto: Divulgação)

Racismo estrutural e invisibilidade

Em novembro de 2024, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) determinou que a União regulamentasse o plantio de cânhamo para fins medicinais e farmacológicos. O governo apresentou um cronograma de 145 dias para concluir a regulamentação, incluindo consulta à sociedade civil. 

“Eu sou a única mulher negra no Brasil presidente de uma associação de cannabis medicinal”, afirma Marilene. “Por cuidar da Abrario com tanto carinho, cuidar como cuido da minha família, da minha casa, eu acho que é porque dá tanto certo”, reflete.

Ela reconhece o peso do racismo estrutural no debate sobre cannabis. “Quando você fala a palavra maconha, o pensamento que muitas pessoas ainda têm é de um moleque negro saindo de dentro da favela com um baseado”, critica. Sua resposta é a qualificação e o trabalho sério: de mãe atípica que vivia de benefício, tornou-se gestora que emprega pessoas e transforma vidas. E completa: “Uma mulher negra plantar maconha, mulher negra periférica plantar maconha, não dá nem mídia”.

Rafaela também enfrenta as barreiras impostas pelo machismo e pelo preconceito. “Ser uma liderança feminina na favela já é conturbado. Trabalhar com maconha é dez vezes pior. Os ataques na internet são bem pesados”, conta.

Para ela, falta reconhecimento do protagonismo das favelas na cobertura midiática. “O que a mídia costuma errar quando fala de cannabis medicinal na periferia é não procurar saber que existem projetos na favela trabalhando isso fortemente. Apesar de termos um grande portfólio, nem todo mundo está aberto a falar e a mostrar a favela como protagonista.”

“As mulheres negras estão sempre à frente dos cuidados. Na periferia, a economia gira com mães solo, mulheres pretas. Se a gente não tem saúde, a gente não tem nada”, resume Rafaela. O que começou como urgência social transformou-se em propósito de vida. “Eu considerei o NEEM como urgência social no início. Hoje entendo que era um propósito de vida. Ele precisava existir com a gente para garantir esse cuidado”.

A promessa que a move é clara e direta: “O maior desafio, e o que faz eu não parar, é a promessa que fiz: nenhuma criança de favela vai passar o que eu e Maria passamos. E eu tenho cumprido”.

Para que o acesso à cannabis medicinal seja verdadeiramente democrático, ambas concordam que é necessário ir além do trabalho das associações. “Para que tudo isso seja mais democrático e acessível, além de informação — porque muita gente é carente de informação — a gente precisa de políticas públicas reais para que o acesso no Brasil seja de fato possível”, defende Rafaela.

Lucas, hoje com 24 anos, não faz mais uso de nenhum medicamento convencional, apenas cannabis, e tem as crises totalmente controladas. Sua história, e a de milhares de outras famílias atendidas pela Abrario e pelo NEEM, mostra que a periferia e as favelas, longe de serem apenas territórios de criminalização, são também espaços de inovação, cuidado e resistência liderados por mulheres negras.

Mariana Rosetti e Paola Churchill

Mariana Rosetti é jornalista independente, repórter, fotógrafa e produtora, com atuação focada em direitos humanos, meio ambiente e segurança pública — sempre pelas lentes de gênero. Investiga histórias que revelam desigualdades estruturais e amplificam vozes historicamente invisibilizadas. Foi finalista do Prêmio Patrícia Acioli de Direitos Humanos com uma reportagem sobre violência obstétrica no cárcere; Paola Churchill é jornalista freelancer. Escreve sobre gênero e cultura em veículos como Azmina, Ponte jornalismo, BBC, Remezcla, Revista Claudia, Capricho, Mongabay Brasil, Núcleo Jornalismo, Noize, Bazaar, Folha de S.Paulo, Estadão, Marie Claire, Vogue, Tab UOL e Universa. Acredita no jornalismo como uma ferramenta para revelar desigualdades e ampliar vozes que costumam ficar à margem

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