ODS 1
A incrível história de luta de AfroDef e a sua Cadeira de Som
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Um super-herói moderno, brasileiro que luta todos os dias contra o racismo e o capacitismo, vai liderar primeira ala PCD num bloco afro no Carnaval de Salvador
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“Só porque alguém tropeça e perde o caminho, não significa que esteja perdido para sempre”. A frase dita pelo Professor Xavier no filme “Dias de um futuro esquecido”, parece cair como uma luva para o AfroDef. Diferentemente do líder espiritual dos X-Men, que tem o poder da telepatia, esse super-herói do mundo real – avistado pela primeira vez nas ruas de Salvador em 2024 – junta forças, inclusive na música, para alterar a percepção de realidade das pessoas ao seu redor na luta contra o capacitismo (o preconceito contra pessoas com deficiência) e o racismo – que muitas vezes, atuam perigosamente juntos. Para isso, ele quer tudo menos o dom da invisibilidade: o AfroDef e a Cadeira de Som são um projeto do filósofo, músico e ativista Marcelo Zig, de 52 anos, carioca, radicado na Bahia desde os anos 90.
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Como todo super-herói, sua história tem um ponto de virada. Ele aconteceu há 30 anos, no dia 21 de janeiro de 1995, quando Zig, então com 21 anos, estava de férias e resolveu pular de um rio, numa área próxima a Salvador.
– Na queda, lesionei a medula na altura do pescoço, perdi a mobilidade e sensibilidade imediatamente. – conta ele, por telefone. – Fiquei consciente, mas sem conseguir me mexer.
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Veja o que já enviamosDepois de ter passado pelo que chama de “período de luto” (“Me culpava, sentia que minha vida não teria continuidade”), Zig foi, progressivamente, ganhando consciência da sua situação.
– Entrei na faculdade, voltei a frequentar alguns espaços e passei a ter uma percepção diferente de uma pessoa com deficiência. Comecei então a desenvolver ações que pudessem compartilhar esses conhecimentos com a sociedade.
A primeira ação foi o projeto Mergulho Cidadão, que realizava campanhas preventivas sobre os riscos de episódios semelhantes ao que Zig sofreu, uma das principais causas de acidentes de lesão medular no Brasil. Mas a mensagem estava incompleta, como ele depois percebeu.
– Era uma campanha com uma perspectiva capacitista – reconhece. – Basicamente o que estava dizendo era: “Cuidado ao brincar porque você pode virar uma pessoa como eu”. Então, revi esse processo e concluí que, de fato, o que temos que evitar é esse tipo de acidente, que pode matar. Dentro dessa nova perspectiva, se tornar deficiente deixa de ser o problema.
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O problema, como ele aprendeu não era ser uma pessoa com deficiência, mas não poder ser uma pessoa com deficiência por causa das barreiras impostas pela sociedade. Junto a isso, ele, uma pessoa negra, foi enxergando também os outros marcadores sociais que trazia. Nasceu, então, sua segunda ação: o Quilombo PCD, em que duas batalhas – o antirracismo e o anticapacitismo – se encontraram e se entrelaçam.
– Eu não podia ser negro em um espaço e uma pessoa com deficiência em outro. O Quilombo PCD nasceu a partir da consciência dessa interseção – explica ele. – Estudando filosofia africana, comecei também a questionar por que não há registro na história da luta antirracista no país de pessoas negras com deficiência. Quem pode garantir que Zumbi, por exemplo, não tenha se tornado um deficiente devido a tantos enfrentamentos que teve na vida? Existe um capítulo do genocídio do povo negro que não começou sequer a ser conversado, que é quando o racismo dirigido a pessoas com deficiência simboliza o grande depósito de gente negra que o estado não consegue matar.
A extensão do Quilombo PCD foi a Parada do Orgulho PCD, que teve uma primeira edição em São Paulo, em 2023, passando no ano seguinte por Salvador, Recife, Belo Horizonte, São Paulo e Rio.
– O que a Parada propõe é uma virada de chave no debate sobre a pessoa com deficiência. Com ela, passamos a falar sobre orgulho, sobre reconhecimento e enaltecimento dos nossos corpos.
Foi junto com a Parada que surgiu o projeto AfroDef e a Cadeira de Som, o “super-herói ancestral que transforma a cadeira de rodas em um sound system para realizar intervenções e performances”. Ele foi visto em ação recentemente no Circo Voador, no Rio, na abertura do show do grupo britânico de reggae Steel Pulse.
– O Afrodef reúne muitas lutas e traz também uma ressignificação da cadeira de rodas na sociedade, que é sempre identificada como um equipamento negativo, associado a situações ruins, de quem está aprisionado nele – explica Zig. – Com o projeto, queremos inserir uma pessoa com deficiência em ambientes públicos, de alegria e de entretenimento, numa posição de protagonismo. E para isso, toco muito reggae, que é um som que eu amo, de Bob Marley a Edson Gomes, passando por rocksteady e dub.
Além da transformação da cadeira de rodas em um sound system, movido a energia solar, feito com a ajuda de um artista plástico e um serralheiro próximos de Zig, o projeto do AfroDef inclui também uma máscara de vidro usada pelo super-herói em suas apresentações (uma delas foi à frente do trio elétrico do BaianaSystem na capital baiana).
– A máscara representa um diálogo do mito de Narciso com o Espelho de Oxum. E ela é de vidro quebrado para que a pessoa que olhe se veja de maneira fracionada, com suas próprias referências. É uma provocação e um convite à reflexão – diz ele, que vai participar do desfile do bloco Malê Debalê no carnaval de Salvador deste ano. – Vai ser a primeira ala de PCD dentro de um bloco afro. Vamos celebrar o direito de existir.
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Carlos Albuquerque (ou Calbuque) é jornalista de cultura, biólogo, DJ (daqueles que ainda usam vinil) e ocasional surfista de ondas ridiculamente pequenas. Escreve com a mão esquerda e Darwin é seu pastor.