Versos por encomenda ajudam famílias do semiárido a enfrentarem covid-19

Jogadoras de verso do Vale do Jequitinhonha antes da pandemia: mulheres aceitam encomendas de verso para garantir renda na pandemia (Foto: Érika Riani/Divulgação)

Tradicional arte das mulheres versadeiras do Vale do Jequitinhonha, no norte de Minas Gerais, atravessa fronteiras durante a pandemia

Por Yasmim Restum | ODS 1ODS 5 • Publicada em 3 de julho de 2020 - 08:40 • Atualizada em 11 de fevereiro de 2021 - 16:38

Jogadoras de verso do Vale do Jequitinhonha antes da pandemia: mulheres aceitam encomendas de verso para garantir renda na pandemia (Foto: Érika Riani/Divulgação)

As rimas de mulheres do Vale do Jequitinhonha estão atravessando as fronteiras do semiárido mineiro e acalentando corações no Brasil e no mundo enquanto o coronavírus parece não dar trégua. O projeto Versinhos do Bem-Querer nasceu em 26 de março com o objetivo de gerar renda para famílias da região no impacto da crise: as mulheres – que além de versadeiras, são também bordadeiras, tecelãs e ceramistas – souberam que as feiras onde expõem artesanatos seriam canceladas e os homens das famílias, acostumados às viagens para trabalhar no corte de cana e na colheita do café, tiveram que ficar em casa por não conseguirem transpor as barreiras sanitárias.

Desde então, já foram mais de duas mil encomendas de versos, de todo o Brasil e até do exterior, que chegaram pelo site do projeto. “Como tudo precisava ser pensado online, e muitas das versadeiras não têm acesso à internet, foi um desafio. E dar certo só mostra como o trabalho e a cultura da região são especiais. São muitas famílias e esperamos conseguir atender todas com o valor que está sendo arrecadado”, diz Viviane Fortes, da ONG Ajenai, gestora do projeto.

Ao todo, além das jogadoras de verso e suas famílias, sete comunidades rurais também são beneficiadas pelo projeto. Mais do que dinheiro, alimentos, medicamentos ou itens de higiene, Viviane conta que as encomendas estão devolvendo alegria para as mulheres do Jequitinhonha – já saudosas das rodas de verso tão comuns na região. “Cantar é algo que as deixa contentes. É tradição se reunir, jogar verso; muitas me falavam que estavam tristes com a pandemia, e cantar as ajudou a ficarem mais esperançosas”, acrescenta Viviane, que atua no Vale do Jequitinhonha há 25 anos.

Os versos de bem-querer falam de amor, de beleza, animam a gente. Já chorei demais com mensagens e fotos de quem recebeu meus versos, muitas são pessoas sozinhas ou que estão passando por alguma dor muito grande

Jogar verso, como se diz no Vale do Jequitinhonha, é uma tradição nessa região de Minas Gerais. Em festas, nas celebrações de colheita, nos encontros das comunidades, nas festas de nascimento, as pessoas – mulheres, na grande maioria – se juntam para cantar rodas de verso. Todos cantam juntos um refrão, que é entremeado de versos. Os versos são jogados pelas participantes: podem ser cantados de improviso ou fazer parte de um repertório tradicional; podem ser de “bem querer” ou de desafio.  No Projeto Versinhos do Bem Querer, as pessoas encomendam o verso pelo site, pagam R$ 26 e enviam o email para onde a poesia deve ser encaminhada.

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O corte abrupto de renda com a pandemia levou as versadeiras a serem mais ativas também na agricultura familiar. Mas, mesmo trabalhando longas horas por dia, Marli de Jesus garante que ainda sobra disposição e criatividade para rimar. “Crio os animais, planto, capino, colho: no fim do dia. às vezes. me dá cansaço, mas os versos faço tranquilamente. Canto desde criança. Sou filha de mestre cantador e, com a experiência, a gente vai sabendo cruzar as palavras; depende da personalidade de cada um, da forma como a inspiração vem para a gente”, explica a versadeira por telefone, enquanto reclama do barulho das galinhas no quintal e as afasta para ouvir melhor as perguntas.

A jogadora de verso e bordadeira Marli de Jesus em Jenipapo de Minas: tradição no Vale do Jequitinhonha (Foto: Arquivo Pessoal)
A jogadora de verso e bordadeira Marli de Jesus em Jenipapo de Minas: tradição no Vale do Jequitinhonha (Foto: Arquivo Pessoal)

Mãe de três filhos e moradora da comunidade de Curtume, no município de Jenipapo de Minas (a quase 600 quilômetros de Belo Horizonte), Marli conta ao #Colabora quais pedidos foram mais marcantes. “Os versos de bem-querer falam de amor, de beleza, animam a gente. Já chorei demais com mensagens e fotos de quem recebeu meus versos, muitas são pessoas sozinhas ou que estão passando por alguma dor muito grande. Me emocionei muito com uma criança que estava em tratamento de câncer e uma moça que tinha perdido o neném. A gente sofre, mas tenta buscar leveza”.

A versadeira, que também é bordadeira, fala da saudade de se juntar às comadres para o canto e o trabalho artesanal, além da falta que está sentindo da principal aglomeração da região: as rodas de verso. “É muita felicidade quando a gente se encontra para cantar. Os versos de desafio, então: a gente joga e a pessoa vai combatendo, tudo num clima de brincadeira. E sozinha a gente canta menos, não é tão bom, sinto falta da participação das outras. Você já pegou um bordado tingido para secar? É um peso! Precisa de companhia”, explica.

São mulheres de força e generosidade, mesmo em uma região muito seca do Brasil e com poucos recursos. Elas carregam muita sabedoria: seja nos versos, nos tingimentos dos tecidos ou cerâmicas com diferentes cores de barro e plantas locais, seja no respeito e atenção aos ciclos da natureza

Marli também confessa que, apesar das dificuldades, acredita que as famílias do Jequitinhonha vão se recuperar em breve. “Tem muitos casos ainda. Muitos homens tentaram ir trabalhar, mas foram barrados pelos policiais. E tudo bem. Temos alegria e esperança, nossa casa: de fome, a gente não morre”, garante a jogadora de versos, em meio a risos.

Alegria, inclusive, foi a palavra que a mineira Mariana Berutto, responsável pela comunicação do projeto, escolheu para definir o povo e, principalmente, a legião de mulheres do Vale. Atualmente morando na Suíça, a publicitária fala com carinho das tradições e ensinamentos da região. “Não moro mais no Brasil, mas nunca saí de lá. Me apaixonei pela riqueza cultural dessa região. E percebi que não tinha nada documentado, registrado e isso dificultava muito a obtenção de recursos de editais, financiamentos, então comecei esse trabalho. O projeto dos versinhos é uma forma de gerar renda com uma tradição local, que já existe. Se traz alegria para eles, por que não traria para outras pessoas?”, indaga.

Aos olhos de Mariana, as mulheres da região são representantes da resistência. Não só pelo isolamento geográfico, mas também por muitas delas têm origens quilombolas – reconhecidas pela Fundação Palmares – e têm uma forte ligação com a natureza como fonte de renda e inspiração. “São mulheres de força e generosidade, mesmo em uma região muito seca do Brasil e com poucos recursos. Elas carregam muita sabedoria: seja nos versos, nos tingimentos dos tecidos ou cerâmicas com diferentes cores de barro e plantas locais, seja no respeito e atenção aos ciclos da natureza. É muito aprendizado que se tem lá”.

Jovem versadeira em roda de verso no Vale do Jequitinhonha antes da chegada do coronavírus: venda de versos ajuda sete comunidades do semiárido (Foto: Rinaldo_Martinucci/Divulgação)
Jovem versadeira em roda de verso no Vale do Jequitinhonha antes da chegada do coronavírus: venda de versos ajuda sete comunidades do semiárido (Foto: Rinaldo_Martinucci/Divulgação)

Na região com um dos piores índices de desenvolvimento humano de Minas Gerais, conhecida pela aridez das paisagens, pelas dificuldades impostas pelo sol intenso, pelas casinhas isoladas e pelos mais de 50 mil km² do Rio Jequitinhonha, há também uma forma única de se levar a vida. Através dos versos, essas mulheres buscam inspirar mais pessoas a escolherem ‘viver brincando’ sem ‘brincar com a vida’.

“Essa doença é perigosa, não é para desafiar ela não. A gente tem que tomar cuidado, mas sem perder a leveza. Com tudo isso acontecendo, a gente sofre sim. Mas precisamos buscar a delicadeza e a poesia lá no fundo pra trazer o sorriso de volta pro rosto”, diz Marli, com firmeza. Brincando, perguntei se a máscara não iria atrapalhar ver o sorriso, e ela me respondeu: “Aí a gente sorri com os olhos bem apertadinhos que dá pra saber”.

Para comprar um versinho e conhecer mais sobre o projeto, acesse: https://www.versinhos.com.br/

Yasmim Restum

Yasmim Restum é jornalista, produtora e editora de conteúdo web. Formada pela PUC-Rio, tem passagem pelo portal G1. Especializou-se em jornalismo para mídias digitais pela Universidade de Liverpool e em roteiro audiovisual pela Academia Internacional de Cinema. É amante de documentários, interessada em fact-checking e reportagens de comportamento.

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