Um estudo divulgado recentemente pelas pesquisadoras Luiza Nassif Pires, do Levy Economics Institute, Laura Carvalho, da USP, e Laura Lima Xavier, da Havard Medical School, mostra que a desigualdade no Brasil é tanta e tão antiga que chega a estar entranhada no corpo das vítimas. Segundo elas, as chances de um brasileiro pobre, que tenha apenas o ensino fundamental, ser infectado pelo coronavírus é muito maior do que a de um indivíduo que tenha feito o ensino médio ou um curso superior. A proporção de pessoas com um ou mais fatores de risco, as chamadas comorbidades, chega a 54% entre os que têm apenas o ensino fundamental, contra 28% do ensino médio e 34% do superior. Entre os mais pobres, a presença de dois ou mais fatores de risco é três vezes maior do que entre aqueles que frequentaram o ensino médio. Os fatores de risco ou pré-condições incluem, entre outras, as doenças cardiovasculares, diabetes, doenças pulmonares crônicas, hipertensão e doenças renais.
[g1_quote author_name=”Giovanni Boccaccio ” author_description=”Autor do livro Decamerão” author_description_format=”%link%” align=”left” size=”s” style=”simple” template=”01″]Deveria ser inerente ao ser humano mostrar pena dos que sofrem
[/g1_quote]O quadro fica ainda mais feio quando se sabe que algumas dessas doenças pré-existentes levam a uma taxa de hospitalização ainda mais alta. Os infectados que possuem doença crônica renal e diabetes apresentam taxas de internação em UTI de 11 e 8,5 vezes maiores, respectivamente, do que os que estão fora do grupo risco. Pessoas com doenças pulmonares crônicas como bronquite e asma têm uma chance 3,4 vezes maior de internação e 6,5 vezes maior de transferência para uma UTI. Se houver vaga, é claro.
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Veja o que já enviamosO trabalho das pesquisadoras insiste em uma tese que tem tido muito pouco eco na sociedade brasileira. A importância da equidade. A necessidade de tratar os desiguais de forma desigual. Ou seja, se os pobres, os que têm apenas o ensino fundamental e os moradores das periferias correm mais risco, eles devem ser priorizados. É preciso ter um foco diferenciado nessas comunidades, com os agentes de saúde aumentando o número de visitas, com uma oferta maior de leitos e até algum tipo de prioridade no atendimento do SUS. No Rio, a covid-19 que começou em áreas nobres como Leblon, Ipanema e Barra da Tijuca, agora já atinge a abandonada Zona Oeste, com bairros como Campo Grande, Bangu, Realengo e Santa Cruz assumindo a liderança do ranking de óbitos.
A pergunta que se impõe é: Se a classe média tem mais condições físicas e materiais de se proteger contra a covid-19 e as classes mais baixas estão mais expostas, física e materialmente, aos efeitos da doença, a quem interessa antecipar o fim da quarentena? Quem ganha com isso? Na última quinta-feira, dia 7, apesar dos sucessivos recordes de casos e mortes no país, o presidente Jair Bolsonaro voltou a fazer um movimento para antecipar o fim do isolamento social no país. Ele fez um apelo ao presidente do STF, ministro Dias Toffoli, para que as medidas restritivas nos estados sejam amenizadas.
Ainda há quem diga que a covid-19 é uma doença democrática, que não respeita biografias, ignora endereços e despreza ideologias. Uma tragédia que atingiria igualmente ricos e pobres, classe média e favelados. Certo? Errado. O vírus, apesar de todas as mutações que vem sofrendo, continua sendo o mesmo, na Vieira Souto e na Cidade de Deus. O que muda, e muito, são as ferramentas que cada um tem para enfrentá-lo. A lista é grande, vai do uso do álcool gel, com cheiro ou sem cheiro, passa pela possibilidade de manter o isolamento social em casas que possuem apenas um cômodo com seis, sete ou dez moradores e termina com o acesso ao sistema de saúde, incluindo UTIs e respiradores, e nas doenças pré-existentes. Dados divulgados na última quarta-feira, dia 6, mostram que cerca de 18 milhões de brasileiros não têm água enganada em casa. Para esse grupo de pessoas, o simples ato de lavar as mãos, uma das ações mais básicas e eficazes no combate à covid-19, não pode ser adotado.
Há 700 anos, em sua obra “Decamerão”, o escritor italiano Giovanni Boccaccio tratava da relação entre os comerciantes e os seus servos durante a Peste Negra, na metade do século XIV, na Europa. No livro ele explica que a peste era tão agressiva que uma pessoa poderia morrer em quatro dias. Entre 1347 e 1351, cerca de um terço da população do continente europeu desapareceu por conta doença. Boccaccio conta que os ricos se isolavam em suas casas, onde desfrutavam de vinhos, provisões de qualidade e música. Os muito ricos, que ele descreve como “cruéis”, abandonavam seus bairros, retirando-se para propriedades confortáveis no campo. Enquanto isso, os pobres, forçados a ficar em casa, morriam aos milhares.
Uma questão importante levantada no “Decamerão” é como a riqueza e o conforto podem prejudicar a capacidade das pessoas de se sensibilizarem com as dificuldades dos outros. Para Boccaccio, deveria ser “inerente ao ser humano mostrar pena dos que sofrem”. Nestes tempos de carreatas que buzinam em portas de hospitais, questões levantadas em um livro escrito há mais de seis séculos continuam atuais até hoje: como os ricos se relacionam com os pobres em tempos de sofrimento generalizado? Qual é o valor de uma vida? Quando vamos acabar com esta comorbidade social histórica no Brasil?