No Brasil, venezuelana luta para buscar dois filhos no país de origem

À esquerda, Isabel segura foto com os dois filhos. À direita, mostra mensagem do filho mais velho. “Mãe, faça o possível para buscar a gente antes dos últimos dias de maio. Minhas noites, e as noites de todos aqui, são as piores”. (Foto: Arquivo pessoal)

Já com carteira assinada, Isabel sofre com a distância: ‘Ligam pedindo hambúrguer e carne moída’. Vakinha online foi feita para ajudar com as despesas de transporte

Por Yuri Alves Fernandes | ODS 1ODS 2ODS 8 • Publicada em 23 de maio de 2019 - 08:00 • Atualizada em 5 de junho de 2019 - 03:30

À esquerda, Isabel segura foto com os dois filhos. À direita, mostra mensagem do filho mais velho. “Mãe, faça o possível para buscar a gente antes dos últimos dias de maio. Minhas noites, e as noites de todos aqui, são as piores”. (Foto: Arquivo pessoal)
No Brasil, venezuelana luta para buscar filhos
À esquerda, Isabel segura foto com os dois filhos. À direita, mostra mensagem do filho mais velho. “Mãe, faça o possível para buscar a gente antes dos últimos dias de maio. Minhas noites, e as noites de todos aqui, são as piores”. (Foto: Arquivo pessoal)

Em um povoado da zona rural da cidade de Barquisimeto, no oeste da Venezuela, Isabel Cristina, de 47 anos, viveu praticamente toda a sua vida. Porém, o cenário do seu dia a dia mudou há pouco mais de um ano, quando decidiu se mudar – ou melhor, se refugiar – no Brasil atrás de melhores condições. Já empregada, com protocolo de residência e com o pedido de refúgio em análise, agora sua luta é outra: buscar os filhos que ficaram com a avó no país de origem, tomado pela crise humanitária e econômica. “Comida! Aqui você pode comer”, responde, sem pensar muito, ao ser questionada sobre a principal diferença que sente entre os dois países.

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Cada pessoa só podia comprar dois pães. Sabão em pó tinha um dia específico para pegar. Eu nunca consegui porque estava trabalhando. Então, eu trocava com o vizinho por farinha ou macarrão

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A permanência por aqui não foi programada. Veio, a princípio, para visitar a filha mais velha, Isamar, de 24 anos, por 20 dias. A primogênita está no país há dois anos a convite de uma amiga, que ajudou na compra das passagens. Queria estudar e logo conseguiu uma bolsa em uma faculdade com o intermédio da Caritas, entidade que atua da defesa dos direitos humanos. Diante da dura realidade que se instaurou na Venezuela, Isabel viu no Brasil a chance de dar um novo significado para o futuro da sua família. Mãe e filha moram em uma república na Zona Norte do Rio onde dividem o aluguel com mais sete pessoas.

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Agora, Isabel conta com o apoio dos amigos para conseguir buscar Marcos Daniel, de 17 anos, e Carks Antony, de 16. Uma vakinha online foi feita para ajudar nas despesas (clique aqui para contribuir). Os garotos, mesmo com a dor da distância, agradeceram a decisão da mãe em não retornar: “Meu filho fala: se você tivesse voltado, estaríamos passando fome. Se você ficou para nos ajudar, foi a melhor coisa’”. Voltar para a Venezuela significava para Isabel também voltar e aceitar uma vida de extrema dificuldade. Segundo pesquisa feita nas principais universidades do país, 48% da população de lá vive em condição de pobreza multidimensional.

‘Filas nas lixeiras’

Para se ter uma ideia, toda terça-feira ela acordava às 2 da manhã, quando ainda vivia em Barquisimeto. Era seu único dia de folga – trabalhava em um restaurante e o que ganhava dava para “comprar o essencial: arroz, feijão, farinha e óleo, por exemplo”. O despertar tão cedo era em razão da logística imposta pelos comerciantes locais. Como os alimentos e itens de uso geral eram escassos, os dias de compras foram divididos de acordo com o último dígito da identidade do consumidor. Isabel, com final 03, só podia comprar às terças. Caminhava, em grupo, de madrugada por horas às margens de uma rodovia sem iluminação. Ao chegar ao mercado mais próximo, ainda ficava até o meio-dia na fila. Senhas eram distribuídas. Se chegasse tarde, só poderia voltar na outra semana.

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Meu filho fala: se você tivesse voltado, estaríamos passando fome. Se você ficou para nos ajudar, foi a melhor coisa

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“Cada pessoa só podia comprar dois pães. Sabão em pó tinha um dia específico para pegar. Eu nunca consegui porque estava trabalhando. Então, eu trocava com o vizinho por farinha ou macarrão”, relembra.

Mesmo com todas as dificuldades, Isabel sorri, timidamente, ao responder que nunca passou fome. “Mas conheço muita gente lá que passa. Nas praças de alimentação dos shoppings têm filas nas lixeiras. São pessoas que têm moradia, mas que não conseguem comprar comida”. No caminho pela rodovia, cenas parecidas se repetiam: “Muita gente dormindo na calçada de restaurantes esperando a sobra”.

‘Sempre como pensando nos meus filhos’

Durante a entrevista, Isabel mostra as conversas com os filhos, feitas praticamente todos os dias, exceto nos períodos em que a Venezuela sofre com apagões de energia. Por conta disso, um plano nacional de racionamento foi implementado pelo presidente Nicolás Maduro.

Filhos de Isabel: Marcos Daniel, de 17 anos, e Carks Antony, de 16. (Foto: Arquivo pessoal)

Segundo a Pesquisa sobre Condições de Vida na Venezuela (Encovi), 25% da população ficam sem luz diariamente por várias horas. Em espanhol, Marcos envia: “Mãe, quero estar com você. Quero que isso aconteça antes do meu aniversário”. Ele completa 18 anos no dia 28 de maio. “Minhas noites aqui são as piores”, afirma o jovem em outra mensagem.  Em mais uma, ele pede dinheiro para comprar hambúrguer.

Os pedidos são constantes. “Marcos um dia me ligou e perguntou se podia comprar três pares de meia e um pouco de carne moída, mas é muito caro. Não tive condições de mandar o dinheiro”, conta Isabel, que aponta esses como os momentos mais difíceis nos últimos tempos. “Sempre como pensando nos meus filhos”. Os preços altos na Venezuela são resultados de uma hiperinflação que chegou em 1.350.000% em 2018. Os venezuelanos, assim como a Isabel, representaram mais da metade das solicitações de reconhecimento da condição de refugiado no Brasil, em 2017. “Já foi um país bom. Não éramos ricos, mas as pessoas não passavam tanta fome”.

‘Vou comprar muito biscoito’

No Rio, a chefe de cozinha – como se orgulha de ser chamada – está há cinco meses trabalhando de carteira assinada em um restaurante na Zona Sul. Ela, aliás, faz questão de parar a entrevista para mostrar o documento. Com o que ganha – cerca de um salário mínimo e meio – paga as despesas mensais do imóvel onde reside e o restante manda para os filhos. Sobra pouco para juntar e, finalmente, realizar o sonho de tê-los por perto. Por isso, conta com o resultado da vakinha, que está em R$ 2,5 mil. Por questões burocráticas, diz que eles não podem vir sozinhos. “Preciso ir para Boa Vista, em Roraima, e depois são quase 2 mil quilômetros de estrada até Barquisimeto, minha cidade. Chegando lá, eu volto com eles pelo mesmo caminho”.

Isabel está esperançosa! Já procura, inclusive, alugar uma nova casa para poder acomodar a família inteira. Com o dinheiro arrecadado, a venezuelana também espera quitar parte das despesas do primeiro mês. Pergunto o que vai fazer assim que Marcos e Carks chegarem. A resposta me surpreende. “Vou comprar muito chocolate e biscoito. Marcos ama Oreo, mas lá ele não consegue comer. Também quero ir com eles à praia, lá eu precisava juntar dinheiro o ano inteiro para ir. Aqui, está tão perto! E, claro, vou fazer um churrasco com muita carne para meus filhos”.

Yuri Alves Fernandes

Jornalista e roteirista do #Colabora especializado em pautas sobre Diversidade. Autor da série “LGBT+60: Corpos que Resistem”, vencedora do Prêmio Longevidade Bradesco e do Prêmio Cidadania em Respeito à Diversidade LGBT+. Fez parte da equipe ganhadora do Prêmio Vladimir Herzog de Anistia e Direitos Humanos, com a série “Sem direitos: o rosto da exclusão social no Brasil”. É coordenador de jornalismo do Canal Reload e diretor do podcast "DáUmReload", da Amazon Music. Já passou pelas redações do EGO, Bom Dia Brasil e do Fantástico. Por meio da comunicação humanizada, busca ecoar vozes de minorias sociais, sobretudo, da comunidade LGBT+.

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