Crime e (duplo) castigo: presidiárias são separadas de seus bebês

Lei que garante às presas o direito de ficar com os filhos até os 7 anos não é cumprida

Por Guilherme Simão | ODS 1 • Publicada em 12 de maio de 2017 - 17:10 • Atualizada em 15 de maio de 2017 - 14:40

Mães com seus bebês, na penitenciária feminina do Distrito Federal (Colmeia). Foto: Luiz Silveira/CNJ
Mães com seus bebês, na penitenciária feminina do Distrito Federal (Colmeia). Foto: Luiz Silveira/CNJ

Está na lei: mães encarceradas têm o direito de ficar com seus filhos dentro dos presídios até que eles completem 7 anos de idade. Acontece que, na grande maioria dos estados brasileiros, a determinação não é cumprida.  No Rio de Janeiro não é diferente. Nenhuma penitenciária fluminense dispõe de creche para crianças até os 7 anos, como determina o artigo 89 (editado em 2009) da Lei de Execução Penal  (lei nº 7210, de 1984). No estado, existe apenas um lugar destinado aos bebês das detentas – a Unidade Materno Infantil (UMI), que integra o Complexo Penitenciário de Gericinó, na região agrícola de Bangu, zona oeste da capital. Mas os pequenos são separados à força das mães quando completam 6 meses de vida. O drama é ainda maior se a presa não conseguir comprovar na Justiça que tem pessoas da família aptas a cuidar de seu rebento: ela perde a guarda da criança, que é encaminhada para adoção.

De acordo com o defensor público Emanuel Queiroz, coordenador de Defesa Criminal da Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro, a maioria das mães presidiárias é pobre, não tem uma estrutura familiar sólida, o que dificulta a obtenção da documentação necessária para comprovar que a família tem condições de cuidar do seu filho. “No caso dos recém-nascidos, é possível conseguir a certidão de nascimento no próprio presídio. Mas no das crianças maiores,  é difícil até mesmo comprovar a maternidade. Muitas vezes, os familiares das presas não querem ajudar e não retornam aos nossos contatos. Além disso, muitas presidiárias moram em comunidade carentes, onde os Correios não conseguem chegar. Por isso, ficam sem comprovante de residência”, afirma o defensor público Emanuel Queiroz.

[g1_quote author_name=”Maíra Fernandes” author_description=”Advogada, especialista em sistema penitenciário” author_description_format=”%link%” align=”left” size=”s” style=”simple” template=”01″]

O sistema penitenciário permanece construído por homens, para homens, e apenas mal adaptado para mulheres, o que torna a privação de liberdade ainda mais cruel para as encarceradas

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A reportagem não obteve autorização da Secretaria Estado de Administração Penitenciária (SEAP) para visitar um presídio feminino do Rio de Janeiro. Questionada sobre a inexistência de creches nas penitenciárias estaduais, a assessoria de comunicação da SEAP se limitou a informar que o estado conta com a Unidade Materno Infantil, que, no entanto, não atende completamente às exigências da lei.

Na UMI, onde as presas podem permanecer com seus pequenos até os seis meses, não há grades ou celas. As mães ficam soltas com seus bebês. “A unidade apresenta condições bem razoáveis. Não parece que elas estão dentro de um espaço prisional. Mas nem todos os estados possuem espaços assim. Há lugares onde as mães ficam com seus bebês na própria cela”, diz a advogada Maíra Fernandes, especialista em sistema penitenciário.

Segundo ela, como a maioria das mães acredita que a melhor opção para o filhos é ficar com elas no presídio, o afastamento forçado, quando o pequeno está com apenas 6 meses de vida, representa um castigo a mais para a mulher encarcerada.  “Elas ainda recebem mais uma punição: são privadas da convivência com seus filhos, com todas as consequências sociais que decorrem desse distanciamento. O sistema penitenciário permanece construído por homens, para homens, e apenas mal adaptado para mulheres, o que torna a privação de liberdade ainda mais cruel para as encarceradas”, afirma Maíra, que foi presidente, entre 2011 e 2015, e conselheira, entre 2007 e 2011, do Conselho Penitenciário do Estado do Rio de Janeiro.

Presidiárias gestantes, em Vespasiano (Minas Gerais). Foto: Renata Caldeira/ TJ-MG

Embora passar parte da infância na cadeia esteja longe do ideal, o direito de ficar com a mãe é considerado uma conquista. O artigo quinto da Constituição Federal assegura às presidiárias “condições para que possam permanecer com seus filhos durante o período de amamentação”. A Organização Mundial da Saúde recomenda aleitamento materno por, no mínimo, dois anos, sendo exclusivo nos primeiros seis meses. Segundo estudos científicos da Escola de Amamentação da Universidade de Columbia, nos EUA, o bebê separado da mãe encarcerada pouco depois de nascer tem maior probabilidade de sofrer de ansiedade e depressão.

[g1_quote author_name=”Nana Queiroz” author_description=”Jornalista, autora do livro Presos Que Menstruam” author_description_format=”%link%” align=”left” size=”s” style=”simple” template=”01″]

O custo de fazer o monitoramento por tornozeleira eletrônica é menor do que o de manter a mãe no presídio. O uso do dispositivo poderia ser aplicado a todas as mães com filhos de até um ano de idade. Uma pergunta a ser respondida é: por que ainda há gestantes presas no Brasil?

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Além de evitar a perda da guarda dos filhos, as mães encarceradas lutam  para  amamentar os bebês por mais tempo dentro da prisão.  “Esse tempo mínimo de seis meses, previsto pela LEP, é interpretado como um prazo máximo. Quando o bebê completa 180 dias, ele é retirado da mãe e muitas reclamam de ter passado tão pouco tempo na companhia deles. Se a mãe não tiver nenhum parente com quem deixá-lo, o bebê é encaminhado para um abrigo, dificultando ainda mais a manutenção dos vínculos”, diz Beatriz Vico, advogada e pesquisadora do Instituto Terra, Trabalho e Cidadania (ITTC), ONG que há 20 anos monitora a situação de mulheres presas no Brasil.

O tempo ideal de permanência da criança dentro da prisão é uma questão polêmica e divide especialistas. Na opinião da advogada Maíra Fernandes, o ideal seria consultar cada mãe encarcerada, para avaliar caso a caso.  “Se não houver outra mulher – mãe, avó, irmã – para cuidar dos filhos da presa, a família se desfaz. Por aqui, a Vara de Infância tem autorizado a permanência do bebê por mais tempo se, por exemplo, tiver que resolver pendências burocráticas para que ele fique com a família da presa. A prioridade é sempre encontrar um familiar para ficar com a criança durante o tempo de prisão”.

Para o promotor de Justiça Rodrigo Medina, coordenador do Centro de Apoio Operacional das Promotorias de Justiça da Infância e Juventude, nenhuma criança deve viver na prisão, seja pelo tempo que for.  “É preciso considerar que a criança tem direito à convivência com a genitora, mas também à convivência familiar e comunitária”, diz . “Por isso, o modelo de atendimento nas antigas creches do sistema prisional, em que as crianças permaneciam até os 7 anos, não tem sido adotado na maioria dos estados brasileiros.  Ele privava os filhos pequenos de uma convivência saudável com o genitor. Havia relatos de crianças criadas até os 7 anos em unidades prisionais, sem nunca terem deixado o local, até o momento do desligamento”.

No Brasil, há unidades prisionais que, não dispondo de espaços infantis, acabam admitindo a permanência de crianças nas celas onde suas mães estão presas. De acordo com a pesquisa #MulheresEmPrisao, lançada pelo ITTC em março de 2017, as mães encarceradas se queixam principalmente do atendimento médico e também da falta de autonomia para cuidar dos filhos dentro dos presídios. “Há horário para começar e terminar as atividades. O barulho acorda os bebês ou os faz chorar…”, explica Beatriz Vico, advogada e pesquisadora do ITTC.

Mãe acalenta seu bebê, no Centro de Referência da Gestante Privada de Liberdade. Foto: Renata Caldeira/TJ-MG

A  nova legislação brasileira sobre os direitos de mães encarceradas é considerada avançada no contexto internacional, cuja referência é o tratado “Regras de Bangkok”, aprovado em 2010 pelas Nações Unidas (ONU). Em março de 2016, o Congresso aprovou o Marco Legal da Primeira Infância (Lei nº 13.257), que ampliou as condições para que os pais presos preventivamente tenham direito à prisão domiciliar. O artigo 318 do Código de Processo Penal prevê que o juiz pode substituir a prisão preventiva pela domiciliar quando o cidadão julgado for 1) Gestante; 2) Mulher com filho de até 12 anos de idade incompletos; 3) Homem, caso ele seja o único responsável pelos cuidados do filho (de até 12 anos de idade incompletos).

Segundo o defensor público Emanuel Queiroz, com as recentes modificações nas leis penais, é esperado um grande aumento no índice de soltura de mães encarceradas, sobretudo de gestantes. “Esse índice sempre foi ínfimo. Mas isso está começando a mudar desde o fim de 2015, embora seja um processo lento convencer o Judiciário a mudar de entendimento. Daqui a três meses, esperamos reunir cerca de 100 casos de soltura de mães presas, para que elas aguardem o julgamento em liberdade”. Na opinião de Queiroz, a substituição da prisão preventiva pela domiciliar concedida  à ex-primeira-dama do estado do Rio Adriana Ancelmo, em março, deu uma visibilidade positiva  ao debate sobre os direitos das mães encarceradas. Ela é mãe de dois meninos – com 12 e 14 anos de idade -, filhos do ex-governador Sérgio Cabral, preso desde novembro de 2016. Após a decisão judicial, a ministra dos Direitos Humanos, Luislinda Valois, encaminhou ao Supremo Tribunal Federal um pedido para que esse tipo de decisão fosse estendido a todas as presas em situação semelhante de maternidade.

Outra medida defendida por ativistas e defensores dos direitos das mulheres encarceradas é a ampliação do uso de tornozeleira eletrônica para as presas com filhos pequenos. “O custo de fazer o monitoramento por tornozeleira eletrônica é menor do que o de manter a mãe no presídio. O uso do dispositivo poderia ser aplicado a todas as mães com filhos de até um ano de idade. Uma pergunta a ser respondida é: por que ainda há gestantes presas no Brasil?”, questiona a jornalista Nana Queiroz, autora do livro Presos Que Menstruam, lançado em 2015 pela Editora Record.

 

Guilherme Simão

Jornalista e pesquisador, com mestrado e graduação pela PUC-Rio. Resendense, tem experiência como trainee no jornal O Estado de S. Paulo.

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