Da Cracolândia para o pódio em Paris

Ana Luiza dos Anjos Garcez, a Animal, comemora a vitória na meia-maratona do Gay Games de Paris. Foto Jerry Costa

Corredora brasileira vence as drogas, a criminalidade, o abandono, ganha três medalhas de ouro no Gay Games

Por Claudio Nogueira | ODS 1ODS 5 • Publicada em 24 de agosto de 2018 - 08:22 • Atualizada em 26 de agosto de 2018 - 21:50

Ana Luiza dos Anjos Garcez, a Animal, comemora a vitória na meia-maratona do Gay Games de Paris. Foto Jerry Costa
Ana Luiza dos Anjos Garcez, a Animal, comemora a vitória na meia-maratona do Gay Games de Paris. Foto Jerry Costa
Ana Luiza dos Anjos Garcez, a Animal, comemora a vitória na meia-maratona do Gay Games de Paris. Foto Jerry Costa

Lá vai ela. Veloz, determinada, autoconfiante e campeã, com o coração e a mente de quem já passou por tudo de ruim na vida e não vai desistir diante de qualquer coisa. Nem mesmo diante da fadiga quase no fim dos 21,1km de uma meia-maratona, como a que Ana Luiza dos Anjos Garcez, a Animal, venceu no último dia 11, em Paris, nos Gay Games, também conhecidos como os Jogos do Arco-Íris ou as Olimpíadas da Diversidade, por serem um evento aberto não apenas à comunidade LGBT+, mas também a idosos e portadores de deficiências. Ninguém consegue mesmo segurar essa mulher de estatura mediana e que com seus 55 anos superou adversidades como o fato de ser analfabeta funcional (dificuldades na leitura) e ter sido moradora de rua, viciada em drogas das mais diversas e envolvida na criminalidade.

[g1_quote author_name=”Ana Luiza Garcez” author_description=”Atleta brasileira” author_description_format=”%link%” align=”left” size=”s” style=”simple” template=”01″]

Eu disse a ele que queria muito vir aos Gay Games, e que se não conseguisse, ficaria muito nervosa e pararia de correr. Graças a Deus deu tudo certo. A Rosana me conseguiu 40 maçãs, eu vendi só 20. Mas consegui vender meus tênis para vir para cá. Também usei um dinheiro que eu tinha no banco

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– Quando eu morava na rua, tinha de correr muito da Polícia. Muito. E assim aprendi. A Polícia me ensinou a correr – riu, em entrevista por telefone, de Paris. – Se não tivesse corrido da Polícia, acho que hoje não seria campeã…

A medalha na meia-maratona foi uma das três conquistadas por ela no megaevento francês com representantes de 91 países que reuniu 10  mil atletas, sendo pouco mais de 50 do Brasil. Animal subiu ao pódio e chamou a atenção da mídia local já em sua primeira vitória, nos 10km, quando foi a mais rápida não só em sua categoria, das “cinquentonas”, mas no geral, superando atletas mais jovens. Dias depois lá estava novamente, dominando a prova dos 5km não apenas em sua categoria, mas no geral. No sábado, foi vitoriosa na categoria 50/55 anos, terminando em terceiro no geral. Pelo regulamento dos Jogos, a premiação se deu apenas por faixa de idade, o que lhe garantiu os três ouros, prometidos por ela logo no primeiro dia de competições:

– Estou bem preparada, e não vim aqui passear. Vim para ganhar as três provas! Estou preparada! Estou bem preparada!

Bicampeã da Meia-Maratona de Nova York e dona de títulos em várias provas de rua, em sua categoria, no país e no exterior, Ana Animal é uma sobrevivente. E tem total consciência disso, grata àquilo que mudou sua vida, o esporte.

– A importância do esporte na minha vida é que eu virei uma atleta. Eu não tinha limite, e agora tenho respeito às pessoas, e as pessoas me respeitam. Eu fui muito discriminada. Chegavam  perto de mim e me chamavam de bandida, traficante, ‘ladrona’. Graças ao esporte, estou aqui. Se não fosse pelo esporte, eu estaria na cadeia ou morta! – disse ela,  cumprimentada pelas vitórias via internet por Maurren Maggi, campeã olímpica em Pequim-2008, e atletas como Jadel Gregório, Franck Caldeira e Carla Moreno.

Ana Luiza dos Anjos exibe as três medalhas conquistadas em Paris. Foto Divulgação

Sem apoio de quaisquer confederações, federações ou clubes, os próprios atletas tiveram de se cotizar para viajar. Foram vaquinhas, páginas de crowdfunding (financiamento coletivo) na internet, eventos, festas e dívidas feitas em cartões de crédito. No caso da Animal, foram fundamentais o auxílio financeiro do amigo e jornalista Chico Felitti, que pagou sua inscrição nos Jogos, e da amiga Rosana Brambilla, que lhe ofereceu 40 maçãs do amor para vender e tentar arrecadar:

– Agradeço a todo mundo que me ajudou a fazer essa vaquinha, principalmente ao Chico. Se não fosse ele ter feito essa inscrição acho que eu não estaria aqui. Eu disse a ele que queria muito vir aos Gay Games, e que se não conseguisse, ficaria muito nervosa e pararia de correr. Graças a Deus deu tudo certo. A Rosana me conseguiu 40 maçãs, eu vendi só 20. Mas consegui vender meus tênis para vir para cá. Também usei um dinheiro que eu tinha no banco.

[g1_quote author_name=”Wanderlei Oliveira” author_description=”Treinador” author_description_format=”%link%” align=”left” size=”s” style=”simple” template=”01″]

Na Maratona de São Paulo de 1996, Ana Animal correu, chegou em último, em 6h30min, e quase morreu. Ela teve de ser socorrida em um posto médico. Como sua fonte de alimentação era a droga, ela havia espalhado os moleques da quadrilha ao longo do percurso. Durante a prova, em pontos já combinados, eles lhe davam cola para cheirar. Qualquer outra pessoa teria morrido, mas ela é de outro planeta

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Ana  Animal foi rejeitada por sua mãe e separada de uma irmã gêmea. Acabou sendo criada em uma instituição para menores em São Paulo, de onde saiu aos 18 anos, rumo às ruas daquela metrópole. Nessa época, surgiram seus apelidos de Tia Punk e principalmente o de Animal, por sua agressividade nas ruas. Era pura energia, que necessitava ser canalizada para o esporte.

– Eu era uma pessoa agressiva, ninguém podia chegar perto de mim, que eu queria bater, xingar. Nas corridas mesmo, já arrumei briga… – conta.

Em meio a uma trajetória de idas e vindas, promessas e recaídas, quem está há mais tempo com Animal é seu treinador Wanderlei Oliveira, que a orienta há 22 anos,  desde quando dirigia uma equipe de atletismo do Grupo Pão de Açúcar e tocava um projeto de recuperação de drogados.  Em 1996, Fausto Camunha, então  secretário de Esportes do estado de São Paulo, resolveu encaminhá-la para treinar com Wanderlei, após ter visto Animal, então moradora de rua, pulando nua em um chafariz da Avenida Nove de Julho, ao fundo de uma reportagem de TV sobre uma maratona na capital paulista.

Wanderlei lembrou que a ligação dela com o esporte começou, como ela própria lhe contou, de forma casual. Animal vivia e perambulava pela Praça da Sé, onde chefiava uma quadrilha que praticava assaltos e furtos, além de consumir drogas. Certa vez, entre 1994 e 1995, ela se encantou ao ver numa TV exposta numa loja de departamentos, a música tema de Vangelis e a abertura do filme “Carruagens de Fogo”, Oscar de Melhor Filme de 1982. Diante das primeiras cenas da produção –  mostrando atletas britânicos correndo numa praia, preparando-se para as Olimpíadas de 1924, em Paris – a futura atleta se decidiu. Era aquilo que ela iria fazer. Correr. Sem tênis, mandou que seus companheiros de quadrilha roubassem um par do primeiro transeunte que passasse. Assim,  começou a correr na rua, sem treinamento adequado, claro. Na Maratona de São Paulo de 1996, Ana Animal ou Tia Punk correu, chegou em último, em 6h30min, e quase morreu.

– Ela teve de ser socorrida em um posto médico. Como sua fonte de alimentação era a droga, ela havia espalhado os moleques da quadrilha ao longo do percurso. Durante a prova, em pontos já combinados, eles lhe davam cola para cheirar. Qualquer outra pessoa teria morrido, mas ela é de outro planeta – comparou o técnico. – Ninguém poderia imaginar que a Ana poderia se tornar o que se tornou hoje, uma grande campeã. Inicialmente, quando ela chegou para mim, tentei não treiná-la, porque previa que ela me criaria problemas. Aceitei, desde que tivesse médicos e psicólogos para a equipe. A barriga da Ana era igual à de uma mulher grávida, tantos eram os vermes em seu organismo. Quando morava nas ruas, ela se vestia como homem, para escapar de ser estuprada. Nas ruas, era chamada assim, de Animal, e de Tia Punk.

Como se pode imaginar, a transição de Ana Animal para o esporte não foi tão simples quanto tocar num interruptor.

– Nos dez primeiros anos, foi complicado. Ela sofreu várias recaídas. Mas acabou se tornando o que é hoje. Uma pessoa educada, esperta, inteligente. Ela realmente lê e escreve mal, não escreve no whattsapp. Acho que diz ser analfabeta totalmente como uma espécie de defesa. Mas se vira bem no exterior – explicou o treinador e amigo. – Ela é querida em todos os lugares, sempre sai à rua para treinar toda vestida de Brasil e é uma pessoa super do bem.

Entre as pessoas que acompanharam essa mudança de vida da atleta está a jornalista Fernanda Paradizo. Esta começou nas corridas de rua para fazer uma reportagem para a revista em que trabalhava. Tomou gosto e corre até hoje. Nos treinamentos da equipe Pão de Açucar, fez amizade com a campeã.

– Ela está nas corridas desde os anos 90, desde que o Fausto Camunha  imaginou  trazê-la para as corridas para livrá-la das drogas. Ela gosta de ser chamada  de Animal, apelido que ganhou quando patinava na marquise do Ibirapuera e pelas ruas – atestou a jornalista – Nós, os mais chegados a ela, não a chamamos assim, mas pelo nome.

Mais ou menos como quando ocorreu de ter visto a abertura de um filme e resolveu começar a correr, Animal não sabia dos Gay Games até 1 ano atrás, quando participou de um torneio de “gaymada”, uma versão gay do jogo de queimado, no Complexo do Ibirapuera. Curiosamente, ela reside ali, por uma concessão da Secretaria de Esportes do Estado,  em um dos quartos do alojamento do ginåsio. Nesse local, mantém  quase 300 troféus e pouco mais de 730 medalhas, tudo guardado em mochilas e malas de viagens usadas em suas competições.

Ao tomar conhecimento dos Jogos do Arco-Íris, ela procurou Wanderlei e disse que queria competir em Paris.

– Ela me chama de teacher. Chegou pra mim e disse: ‘Teacher’, fui campeã de ‘gaymada’, e agora, quero ir aos Gay Games – recordou o treinador.

Ainda mais agora, diante do sucesso da corredora em Paris, é bem possível que venha a ser lançado um livro com sua biografia, a partir dos testemunhos de seus amigos, aos quais a atleta atribui o mérito de  fazê-la sentir-se amada.

– Eles me  trouxeram muita coisa boa, confiança, carinho, amor, coisas que eu não tive – afirmou uma das corredoras de rua mais famosas do país, referindo-se ao fato de não ter tido familia na infância.

Claudio Nogueira

É jornalista, tendo iniciado carreira em 1986 no Globo, onde trabalhou até o começo de 2016. Desde março do mesmo ano, é produtor de reportagens do Sportv. Cobriu, entre outros eventos, quatro Olimpíadas, a Copa do Mundo-2014 e cinco Jogos Pan-Americanos. Como escritor, publicou, entre outras obras: “Futebol Brasil Memória”; “Dez Toques sobre Jornalismo”; “Vamos todos cantar de coração - os 100 anos do Futebol do Vascão”; e ”Esporte Paralímpico - Tornar possível o Impossível”

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