Mulheres e homens negros falam da importância do 'autocuidado' e de respeitar suas dores e fraquezas, para fazer frente à imposição de luta e resiliência, sem trégua
Por
Gilberto Porcidonio
| ODS 1, ODS 3
• Publicada em 26 de maio de 2018 - 08:24
• Atualizada em 26 de maio de 2018 - 15:44
Ana Paula Lisboa teve depressão e crise de ansiedade: cura com yoga e candomblé. Foto: Acervo Pessoal
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O racismo afeta diretamente a saúde da população negra, resultando em problemas como depressão, ansiedade e doenças cardiovasculares. Não é exagero. É fato comprovado empiricamente. Tanto que, nos últimos anos, uma palavra tem sido cada vez mais utilizada por grupos, coletivos e irmandades dedicadas a combater o preconceito racial: autocuidado. A escritora e jornalista Ana Paula Lisboa sabe muito bem o que é isso. Em 2016, a jovem passou por uma crise de ansiedade muito forte. Ele já tinha tido um diagnóstico de depressão, após passar por um processo de separação, somado a uma forte autocobrança e a excesso de trabalho. Ao mesmo tempo, não queria voltar a fazer terapia nos moldes tradicionais. “Daí, comecei a buscar o que seria terapêutico para mim, para amenizar algo que não tem cura. Precisava ouvir o meu corpo. Assim, fui para a yoga e para o candomblé, o que revolucionou a minha vida. Fui realmente tratar a cabeça e o espírito”, diz.
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É óbvio para todo mundo que o assassinato da Marielle desencadeou essa onda de autocuidado, que fez com que eu parasse para me ouvir e cuidar melhor
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A escritora, que atualmente mora em Luanda, alerta para o risco dos gatilhos emocionais, isto é, situações diversas que podem desencadear traumas passados. “É óbvio para todo mundo que o assassinato da Marielle (Franco) desencadeou essa onda de autocuidado, que fez com que eu parasse para me ouvir e cuidar melhor. Mas foi bom que, antes mesmo do que aconteceu, eu já soubesse que precisava desse caminho. É possível sair, viver de uma outra forma e com menos demanda”, diz a jovem, que esteve com Marielle em seu último encontro, na Casa das Pretas, na Lapa.
A negra é vista como forte para o trabalho, para aguentar dores físicas e emocionais. Muitas delas absorvem essa ideia e passam a se obrigar a essa resiliência
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De acordo com a psicóloga e especialista em clínica psicanalítica Nany Kipenzi Vieira, o autocuidado é uma forma de resistência ou de “re-existência”. Isto é, de marcar uma possibilidade de vida para além daquilo que o racismo impõe a essas mulheres, ressignificando a sua imagem corporal. “Olhando para as mulheres negras que me cercam, sejam pessoas que atendo, familiares e amigas, creio que um dos maiores mitos é o da mulher forte. A negra é vista como forte para o trabalho, para aguentar dores físicas e emocionais. Muitas delas absorvem essa ideia e passam a se obrigar a essa resiliência imposta. Por conta desse mito, mulheres negras recebem menos anestesia no parto. Isto é algo questionado desde o discurso (“E não sou uma mulher?”) de Soujourner Truth , abolicionista afro-americana e ativista dos direitos da mulher, que contestou a ideia da fragilidade da mulher quando ela e outras mulheres negras nunca foram vistas como frágeis, enquanto eram escravizadas e obrigadas a trabalhar”, detalha.
Para Nany, que também pesquisa relações raciais, de gênero, laicidade e liberdade religiosa, o mito da “negra forte” engessa essas mulheres em um lugar de luta e superação eterna que invisibiliza suas dores e vulnerabilidades. Assim, ela passa ser uma “mulher objeto”, alguém que tem uma serventia, o que se aproxima de outro mito, pois, no lugar de objeto, ela passa a servir também como fetiche sexual. Dessa forma, o corpo da mulher negra é levado para esse lugar do “diferente”, e suas formas passam a ser vistas como exóticas. “Eu tive o prazer de ouvir Azoilda Loretto da Trindade, pedagoga e psicóloga negra, dizer que uma mulher negra que se cuida é um ato revolucionário. Essa frase me tocou, porque a forma como vivemos as relações em sociedade nos faz perceber que somos todas e todos atravessados pelo racismo e, nessa lógica, não há espaço para o autocuidado. Muitas mulheres me procuram para falar sobre isso. Alguns homens também, mas, com os homens negros, o machismo também é cruel, no sentido de que eles não podem nem reivindicar a fragilidade, pois ela é confundida com fraqueza”, diz.
Dentro dessa preocupação com a chamada masculinidade tóxica foi que o artista visual Fernando Timba conheceu um pouco mais do autocuidado, através de experiências feministas, como a Iniciativa Mesoamericana de Defensoras de Direitos Humanos (IM-Defensoras). Timba se deu conta de que, em sua vida, priorizava o trabalho ou outras atividades que vinham de demandas de outras pessoas, e destinava muito pouco tempo para ele próprio, seja para ler um livro ou para marcar uma consulta médica. “Participo, com alguma regularidade, de grupos de homens. É um tempo dedicado a falar coletivamente sobre nossas questões individuais e ali vemos o quanto elas reverberam em todos. Depois de frequentar grupos como esses, vi que, na maior parte das vezes, quando estava reunido com outros homens, não falávamos de nós mesmos, mas sempre de algum sujeito externo: futebol, mulheres, trabalho. Nunca de sentimentos”, conta Timba.
Com o jornalista Alberto Pereira Jr., o tema surgiu com o passar dos anos, principalmente, ao entrar para a universidade e se apropriar mais de quem ele era e queria ser. Assim, percebeu que confrontar e ocupar esse espaço era preciso, seja deixando o cabelo – antes, raspado baixinho – crescer, aceitando o black power crespo e sem domá-lo a uma estética padrão: a branca. “Acredito que autocuidado seja pensar em práticas que possam reduzir as possibilidades de risco à minha integridade física e mental, por ser um homem negro e homossexual, que vive numa grande cidade e em um país em que, embora a população negra seja maioria, é a que mais morre. Escolher os combates e ir em frente é vital e, às vezes, transpor os limites do que seria seguro e confortável. Hoje, tento usar a voz que tenho, minha trajetória, acessos e espaços de diálogos, para me colocar, ouvir o outro, estabelecendo debate e troca”, ressalta.
Então, melaninados, fica o convite: antes de consertar o planeta, vamos arrumar o nosso mundo interno.
É repórter do jornal "O Globo" e sociólogo em formação pela PUC-Rio. Especializa-se em cultura e questões raciais. Como poeta, mantém o alter-ego Frederico Latrão e, como escritor, é um dos autores da coletânea "Larica Carioca", sobre os quitutes dos bares do Rio de Janeiro, além de manter o blog 'O Títere'.
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Um comentário em “Racismo faz mal à saúde”
Claudia Lessa disse:
Matéria excelente e esclarecedora, rica no aprofundamento dos sentimentos e relações sociais.
Agradeço!
Claudia Lessa
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Claudia Lessa