Com fotos de Flávio Tavares
São João das Missões (MG) – Embora a fome seja uma ameaça permanente, os maiores problemas que os Xakriabá lidam hoje na reserva em termos de saúde são o alcoolismo e a depressão, segundo o médico da reserva Marcelo Caldas. A falta de emprego, de estrutura, e de comida, além das precárias condições de vida, têm levado a quadros depressivos, de paranóias e suicídios. Três pessoas cometeram suicídios em 2019 na reserva, mas, nos anos anteriores, o índice já foi maior. As vítimas são principalmente jovens e mulheres.
“As medicações para transtorno de humor, esquizofrenia e depressão são as que a gente mais utiliza aqui; só perdem para analgésicos”, afirmou o médico, que acredita ter em torno de 100 pacientes nas aldeias que ele atende utilizando medicamento controlado.
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Veja o que já enviamos[g1_quote author_name=”Marcelo Caldas” author_description=”Médico na reserva indígena Xakriabá” author_description_format=”%link%” align=”left” size=”s” style=”simple” template=”01″]
As medicações para transtorno de humor, esquizofrenia e depressão são as que a gente mais utiliza aqui; só perdem para analgésicos
[/g1_quote]Caldas é o médico que está há mais tempo na reserva: seis anos. Ele é responsável por três aldeias com cerca de 1.600 pessoas, uma média de 25 atendimentos diários, mas já chega a atender 60 quando as outras quatro equipes estão desfalcadas. “A população é muito carente, tem muitas pessoas que não têm acesso a nada, e nós só conseguimos suprir a saúde primária”, explicou, relatando as dificuldades dos pacientes em obter exames e remédios.
Confira todas as reportagens da Série Especial sobre a Terra Xakriabá
Na aldeia Barra, Anelita Alves de Souza, de 55 anos, toma vários medicamentos. Tem escloredemia, uma doença inflamatória e crônica do tecido conjuntivo. Ela sente muitas dores e gasta todo aposentadoria com remédios que não são fornecidos pelo governo. “Fiquei entre a vida e a morte, perdi a vontade de me alimentar”, lembra.
Anelita fala sem dar pausa, como quem precisa desabafar o sofrimento que tem vivido. Só esquece da própria dor quando pensa na filha com um cisto ósseo, precisando operar para não perder a perna. O genro está desempregado. As ofertas de trabalho são apenas na prefeitura, escolas e postos de saúde indígenas – unidades essas conquistadas e ocupadas por eles após muita luta.
O antropólogo Ruben Caixeta, da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), avalia que os Xakriabá foram duplamente afetados, ao longo dos anos: de um lado, tiveram a restrição territorial, impedindo que vivam da pesca, da caça e da agricultura; do outro, tornaram-se dependentes dos bens produzidos pela indústria mas com dificuldades de obtê-los.
“Como eles são de um ambiente rural, afastados dos centros urbanos, sem empregos, a dependência do dinheiro faz com que eles fiquem ainda mais vulneráveis, com pouca renda para conseguir bens materiais básicos”, afirma Caixeta, que tem experiência junto às populações indígenas da Amazônia, onde a ‘riqueza’ é poder viver sem o ‘dinheiro’, mas apenas da terra.
[g1_quote author_name=”Rogério Lopes” author_description=”Indígena Xakriabá” author_description_format=”%link%” align=”left” size=”s” style=”simple” template=”01″]
Se dependesse do governo, morreria um aqui todo dia de fome. E não é porque a gente não trabalha: somos trabalhadores demais, mas aqui não chove, não conseguimos produzir alimentos
[/g1_quote]A pesquisa “Conhecendo a economia Xakriabá”, realizada em 2004 por lideranças indígenas e professores da UFMG, identificou que metade dos dez produtos agrícolas mais consumidos pela população não são produzidos nas aldeias, mas, comprados fora da reserva. Os alimentos são negociados muitas vezes com atravessadores que vão até os Xakriabá, sempre com dificuldade de transporte.
Assistencialismo contra a fome
Há pelo menos quatro anos, a organização não governamental (ONG) Amigos de Minas leva cerca de 800 cestas básicas para doar em São João das Missões de três em três meses. O motorista indígena Rogério Lopes guia o grupo até às casas mais necessitadas, já que as estradas de chão não têm sinalização. “Se dependesse do governo, morreria um aqui todo dia de fome. E não é porque a gente não trabalha: somos trabalhadores demais, mas aqui não chove, não conseguimos produzir alimentos”, comentou Rogério, lembrando do rio que guarda a riqueza e história dos antepassados.
[g1_quote author_name=”Flávia Barboza” author_description=”Voluntária da ONG Amigos de Minas” author_description_format=”%link%” align=”left” size=”s” style=”simple” template=”01″]
Já encontramos uma mãe dando água com sal para o filho, outra mulher chorando porque tinha acabado de derrubar no chão a única panela de feijão que tinha antes de a gente chegar
[/g1_quote]O grupo Amigos de Minas sai de Belo Horizonte em uma sexta e volta domingo. Quando os caminhões com doações chegam na reserva, as famílias fazem fila para pegar e nunca dá para todo mundo. “A cesta dura menos de 1 mês, quando a gente atrasa para vir, eles reclamam. Teve um menino que me pediu leite ao invés de brinquedo de Natal”, contou Margarete Vidote, voluntária da ONG, que sai do interior de São Paulo para se juntar aos mineiros e participar da ação.
Os voluntários que vão repetidas vezes nas aldeias, criam laços, se apegam às histórias e às famílias. “Já encontramos uma mãe dando água com sal para o filho, outra mulher chorando porque tinha acabado de derrubar no chão a única panela de feijão que tinha antes de a gente chegar”, lembra Flávia Barboza, que assim como outros voluntários, sentiam nunca ser suficiente o que levavam para lá.
A ONG e as doações tornaram-se necessárias nas aldeias Xakriabá, virou medida “urgente que já dura anos”. Mas faltam ações que promovam autonomia, que vá além do assistencialismo. “Se tem uma pessoa com fome, mais fácil é dar um prato de comida. Isso é preciso no (momento) imediato, mas o ideal é fortalecer as políticas internas”, defende o fotógrafo Edgar Kanaykõ, membro do Povo Indígena Xakriabá, que concluiu mestrado em Antropologia este ano na UFMG. Ele é a favor da organização da comunidade com projetos que gerem renda no próprio território.
“A gente tem que promover a luta para que eles conquistem seus direitos. É claro que sem um prato de comida a pessoa nem raciocina, mas não pode ficar só nisso. O problema da água ali é histórico”, argumentou a arqueóloga Alenice Baeta, que trabalha com povos tradicionais em Minas Gerais há 30 anos.