A emoção de servir mesas no Refettorio Gastromotiva

Voluntária conta como é o trabalho no restaurante '5 estrelas' que alimenta pessoas carentes na Rio 2016

Por Ursula Alonso Manso | ODS 1 • Publicada em 14 de agosto de 2016 - 14:18 • Atualizada em 14 de agosto de 2016 - 21:09

O chef venezuelano Carlos Garcia na cozinha do refeitório
O chef venezuelano Carlos Garcia na cozinha do Refettorio Gastromotiva (Reprodução/Instagram)

Recolhia os pratos, com ouvidos atentos à conversa alheia, quando escutei o comentário: “Ela me chamou de senhora”. Voltei o rosto, para encontrar o olhar que combinava surpresa e orgulho. Sorri, e segui pensando que o tratamento devia ser a regra. Mas estava num ambiente de exceções. À mesa do Refettorio Gastromotiva, os convidados para o jantar preparado pelo chef venezuelano Carlos Garcia se dividiam entre pessoas encaminhadas pela ONG Visão Mundial e pela Casa Nem. No primeiro grupo, era possível identificar moradores de rua, muitos carregando sacos pretos de lixo com seus pertences. No segundo, transgêneros que capricharam nos looks para o evento.

[g1_quote author_name=”Massimo Buttura” author_description=”Melhor chef do mundo” author_description_format=”%link%” align=”left” size=”s” style=”simple” template=”01″]

Aqui, no primeiro dia, um senhor me perguntou se podia comer. No Refettorio Ambrosiano também foi assim, mas, no final, tinha gente que chamava o melhor chef do Japão e dizia que, naquela noite, a comida não estava tão boa. É isso!

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Eu, uma estudante de gastronomia, uma advogada, um jornalista japonês com sua intérprete, um cozinheiro e outras quatro pessoas fazíamos parte do grupo de voluntários daquela noite. Para chegar aqui, preenchemos um cadastro e recebemos de volta um e-mail com o manual de boa conduta no espaço. Regras importantes a seguir: usar roupas simples, sem ostentação, e deixar o celular guardado durante o serviço. O trabalho, de 17h às 20h, consistia em recepcionar as pessoas, servir e retirar os pratos.

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Ursula e o chef Massimo Bottura (arquivo pessoal)

Na primeira hora de voluntariado, ouvimos a equipe da ONG Gastromotiva ressaltar para não olharmos as pessoas como se estivessem em uma vitrine. Às 18h, mesas postas, os convidados entram e nos enfileiramos para dar início ao serviço, composto por três etapas. Um dos melhores chefs da América Latina de acordo com o ranking 50 Best Restaurants, Garcia, do restaurante Alto, havia preparado sopa com feijões e vegetais para a entrada, estufado de carne com molho de banana e purê de mandioca como principal, e uma sobremesa com base na tradicional chicha de arroz venezuelana. “Queria fazer comida de casa de avó, para confortar”, disse.

O melhor chef do mundo segundo o mesmo 50 Best, o italiano Massimo Bottura circulava pelo salão onde se destaca a Santa Ceia pintada por Vik Muniz com chocolate. Quando começaram a ser servidos os principais, rompe radiante pela cozinha: “Eles estão achando a comida incrível”. E sai com pratos na mão, ele mesmo servindo as mesas. Ao final da refeição, Bottura apresenta o chef venezuelano, que veio ao Rio especialmente para cozinhar no Refettorio Gastromotiva. Aplausos e gritos de “thank you” ecoam pelo espaço. Na saída, a senhora se despede de mim com dois beijinhos.

Findo o jantar, voluntários e equipe da cozinha ocupam as mesas e comem o que sobrou da refeição dos convidados. No Refettorio Gastromotiva, a comida é preparada com alimentos excedentes que não foram processados. “Os excedentes são excessivos”, diz Garcia, cuja afirmação é reforçada pelos números. Maior distribuidor de hortifrutigranjeiros do país e um dos fornecedores do Refettorio Gastromotiva, a Benassi coloca, diariamente, cerca de 120 caminhões nas ruas do Rio. Destes, 20 costumavam ser recusados pelos mercados, por conterem ingredientes muito maduros ou fora dos padrões. Seguiam para incineração. Agora tomam o caminho do Refettorio Gastromotiva.

Mas esta não é uma história somente sobre desperdício ou alimentar quem tem fome, que fique claro. É sobre resgatar a dignidade das pessoas, como faz questão de assinalar Bottura. “Aqui, no primeiro dia, um senhor me perguntou se podia comer”, lembra. “No Refettorio Ambrosiano também foi assim, mas, no final, tinha gente que chamava o melhor chef do Japão e dizia que, naquela noite, a comida não estava tão boa. É isso!” Montado durante a Expo Milano, no ano passado, o Refettorio Ambrosiano inspirou o chef David Hertz, da Gastromotiva, a replicar a iniciativa no Rio durante os Jogos Olímpicos.

Para a abertura do Refettorio Gastromotiva, no último dia 9, Hertz preparou uma salada, enquanto Bottura fez carbonara com bacon de cascas de banana como principal. Para a sobremesa, o chef italiano queria servir sorvete de banana com cacau. Mas e o cacau? Roberta Sudbrack, Felipe Bronze e outros chefs do Rio enviaram o ingrediente e, em questão de minutos, o prato estava pronto. Uma mobilização que tem marcado a história do Refettorio Gastromotiva desde o começo, apesar de muitas negativas pelo meio do caminho. “Batemos à porta dos bancos em busca de patrocínio e ouvimos não, não, não”, conta Bottura.

De três prédios oferecidos pela Prefeitura do Rio para a Gastromotiva, Hertz havia escolhido o que estava em piores condições, na Rua da Lapa, 108. “Para mim, que sou judeu, 1 + 0 + 8 = 9, um número carregado de simbolismo, que significa vida.” Foi quando Lara Gilmore, esposa de Massimo Bottura, tomou a decisão de raspar os cofres da fundação Food for Soul, mantida pelos dois, doando 200 000 euros para que as obras do Refettorio Gastromotiva pudessem começar. A iniciativa chamou a atenção da Coca-Cola, que aportou o restante dos recursos.

O arquiteto Gustavo Cedroni, da Metro, de São Paulo, disse para o sócio que estava se mudando para o Rio por dois meses, para executar um trabalho pro bono. Os irmãos Campana criaram o mobiliário com madeira reaproveitada. Maneco Quinderé deu a luz do espaço, Vik Muniz fez a curadoria artística e a chef Roberta Sudbrack doou equipamentos de sua cozinha, reformada em fins do ano passado. O próprio Bottura chegou a duvidar. Em entrevista no último dia 3, arriscou um talvez em relação à data de inauguração. Mas Hertz foi firme. “Vamos abrir no dia 9 sim.” Em 55 dias tudo estava pronto. Com 108 (1 + 0 + 8 = 9) convidados, o Refettorio Gastromotiva abriu as portas na terça-feira, 9 de agosto. Naquela noite – e nas seguintes – o número 108 da Rua da Lapa transbordou de vida.

Obs.: Há voluntários de sobra para cozinhar e servir no Refettorio Gastromotiva até o final das Paralimpíadas. Só de chefs do Brasil e de todo o mundo, já são mais de 45 os confirmados, entre nomes como o do francês Alain Ducasse, do espanhol Adoni Aduriz, de Claude e Thomas Troisgros, Alex Atala, Felipe Bronze, Kátia e Bianca Barbosa, Ricardo Lapeyre e Elia Schramm. Vale destacar, porém, que a Gastromotiva vai precisar de muito mais que isso. Com a concessão do prédio por dez anos, após os Jogos Hertz vai transformar o espaço num restaurante escola, onde será possível pagar pelo seu almoço deixando uma contribuição para o jantar de quem precisa. Quem quiser colaborar com a ação, deve mandar um e-mail para voluntarios@gastromotiva.org.

Ursula Alonso Manso

Carioca, Ursula Alonso Manso é jornalista e colabora com a revista Prazeres da Mesa. Come para viver e vive para comer - o que não significa, porém, que coloque qualquer coisa na boca. Na websérie "Brasil à Mesa", percorre de botecos a restaurantes com estrelas Michelin, sempre em busca do alimento justo, correto e, claro, saboroso.

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