(Lou) cura sem amarras

Lobby do Hotel da Loucura, no Engenho de Dentro

Movimento antimanicomial luta para trocar coordenador de saúde mental

Por Liana Melo | ODS 1ODS 3 • Publicada em 26 de dezembro de 2015 - 09:45 • Atualizada em 28 de fevereiro de 2016 - 13:05

Lobby do Hotel da Loucura, no Engenho de Dentro

Antes de subir ao palco, Reginaldo Oliveira Terra põe uma coroa na cabeça e um manto dourado sobre os ombros incrustado com pedras. Lá em cima, proclama: “Sou o rei daqui!” Fora de cena, ele é calado e até um pouco taciturno. Travestido, assume uma nova personalidade, mais comunicativa e eloqüente: “Sou eu quem toma conta da bagunça aqui”.

Reginaldo Terra um dos hóspedes do Hotel da Loucura
Reginaldo Terra, ex-paciente da clínica psiquiátrica Dr. Eiras, hoje é um dos frequentadores do Hotel da Loucura, no Engenho de Dentro

Terra não costuma se afastar da rua onde mora há 33 anos, a Ramires Magalhães, no Engenho de Dentro, na zona Norte do Rio. É o tempo em que ele vive numa das casas comunitárias ocupadas por ex-internos do Hospital Psiquiátrico Pedro II, atual Instituto Municipal Nise da Silveira. Mais da metade dos seus 66 anos girou em torno do hospital psiquiátrico, sem contar o período em que ele ficou internado na Casa de Saúde Dr. Eiras, na década de 80.

O manicômio, no município de Paracambi, na Baixada Fluminense, já foi considerado uma espécie de “casa dos horrores”. Ele foi fechado por ordem judicial em 2012.

A Dr. Eiras remete Reginaldo para um passado que ele não gosta de lembrar – mas que é impossível esquecer. Habitações sem janelas, refeitórios escuros, excrementos espalhados pelo chão, pacientes algemados e subnutridos. Sem falar na prática sistemática de eletroconsulsoterapia, popularmente conhecida como eletrochoque. As cenas medonhas de um passado sombrio da psiquiatra brasileira voltaram a perturbá-lo nas últimas semanas.

[g1_quote author_name=”Paula Cerqueira” author_description=”professora de psiquiatria da UFRJ e ex-coordenadora de saúde mental do Rio de Janeiro” author_description_format=”%link%” align=”left” size=”s” style=”simple” template=”01″]

O coordenador de saúde mental precisa ser alguém que tenha formação pública, que conheça gestão, planejamento. Precisa ser alguém que ache inadmissível um campo de concentração como aquele existir

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O tormento recomeçou quando soube que o psiquiatra carioca Valencius Wurch fora indicado para o cargo de Coordenador geral de Saúde Mental,  Álcool e outras Drogas do Ministério da Saúde. Seu nome foi apresentado no início de dezembro pelo recém-empossado ministro da pasta, o pemedebista Marcelo Castro – uma escolha política para apaziguar os ânimos do partido da base aliada do governo.

Pesa sobre Valencius o fato de ele ter sido diretor-técnico da Dr. Eiras por seis anos, de 1994 a 2000 – período posterior à estada de Reginaldo no hospital.

Manifestação contra indicação do médico psiquiatra Valencius Wurch

A reação ao nome de Valencius foi imediata. Médicos, pacientes, familiares de doentes foram às ruas. Juntos e misturados, ocuparam a Cinelândia e saíram em passeata até a Assembléia Legislativa do Rio (Alerj), onde, na sexta-feira 18, uma audiência pública foi convocada. O psiquiatra, que aceitou o convite de participar, foi vaiado inúmeras vezes. Seu discurso não convenceu. Em uníssono, os manifestantes pediam sua renúncia. O pedido foi ignorado. Até segunda ordem, Valencius fica no cargo.

[g1_quote author_name=”Benilton Bezerra Júnior” author_description=”psiquiatra e professor da UERJ” author_description_format=”%link%” align=”left” size=”s” style=”simple” template=”01″]

Ele já foi contra a reforma psiquiátrica, agora é a favor, por isso sua indicação é preocupante. O que está em jogo é o futuro de uma política pública bem sucedida e que sobrevive há décadas sem interrupção. A rejeição a seu nome é enorme, sobretudo porque foi uma indicação política e nenhum dos atores envolvidos no setor foi ouvido

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A Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco) encaminhou uma moção de repúdio contra a indicação de Valencius em nome de 656 entidades favoráveis a luta antimanicomial iniciada no Brasil em 1987 com o lema “Por uma sociedade sem manicômios” . Após pouco mais de uma década de discussões e resistências dos setores mais retrógrados da sociedade, aprovou-se a lei 10.216 que decretava o fim dos hospícios.

Para a classe médica, a indicação de Valencius coloca em xeque uma das mais exitosas políticas públicas brasileiras, iniciada em 2001. A reforma psiquiátrica abriu os portões dos manicômios, liberou os pacientes e espalhou Caps (Centros de Atenção Psicossial) pelo país. Reginaldo sobreviveu a Dr. Eiras e, depois disso, virou a um só tempo paciente psiquiátrico do Instituto Municipal Nise da Silveira e, mais recentemente, hóspede do Hotel da Loucura e ator do Teatro de DyoNISEs. Veja aqui mais imagens do hotel e do teatro.

“Pouco me importa o diagnóstico de Reginaldo. Aqui ninguém se diferencia. Todos somos atores”, diz Vitor Pordeus, médico imunologista, gerente do Hotel da Loucura e diretor do DyoNISES – projetos que só existem porque a luta antimanicomial abriu os portões dos hospícios.

Pordeus faz prescrições médicas pouco ortodoxas. No lugar de neurolépticos e antipsicóticos, medicamentos utilizados para o tratamento da esquizofrenia, o receituário distribuído no Hotel da Loucura incluem doses cavalares de Carlos Drummond de Andrade, Fernando Pessoa, Bertolt Brecht, Arnaldo Antunes. Saraus de poesia e de música, oficinas de teatro e de dança e sessões de cinema completam a rotina no hotel, que corre o risco de fechar as portas com a indicação de Valencius para o cargo.

Mural em homenagem a dra. Nise da Silveira, a médica alagoana que revolucionou o tratamento psiquiátrico no país, no Hotel da Loucura

Na hospedaria, instalada em um andar inteiro de uma enfermaria desativada do Instituto Nise da Silveira, não são cobradas diárias. A entrada é livre e não existem horários fixos para nada. Ninguém precisa preencher fichas na portaria. Os clientes são sempre bem-vindos, ainda que o estabelecimento esteja lotado. Ao todo nove quartos, nenhum deles individual, com um total de 18 leitos. A mobília é quase espartana, mas o ambiente é coloridíssimo. Fotos de hóspedes ilustres se misturam com pinturas psicodélicas que ocupam do chão ao teto, mescladas a desenhos, grafites, trechos de poemas, frases inspiradoras, como a do filósofo alemão Friedrich Nietzsche (“E os que dançavam foram julgados loucos por aqueles que não podiam ouvir a música”).

O Hotel da Loucura hospede artistas plásticos, estudantes de psiquiatria e educadores populares

Ali, no hotel do subúrbio carioca, alucinações, surtos e monólogos íntimos de pacientes não se diferenciam das experiências cotidianas de artistas plásticos, estudantes de psiquiatria e educadores populares que também frequentam o hotel, num vaivém incessante durante o dia. No visitante desavisado, a convivência suscita questionamentos sobre a diferença entre loucura e lucidez. Se o ofício do artista é fazer uso de técnicas para explorar a fronteira tênue entre ficção e realidade, Pordeus questiona: “Que diferença faz, afinal, ouvir frases desconexas ou pensamentos povoados de reis, rainhas e figuras mitológicas?”

O nome do teatro que dirige é uma alusão a Dionísio, o deus dessa arte, e a Nise da Silveira, a médica que revolucionou o tratamento psiquiátrico no Brasil, nos anos 50, ao mudar a rotina do então Hospital Pedro II. Ela se opôs ao uso do eletrochoque e, no seu lugar, receitou pinceis aos pacientes nas Oficinas de Terapêutica Ocupacional.

[g1_quote author_name=”Vitor Pordeus” author_description=”médico e coordenador do Hotel da Loucura” author_description_format=”%link%” align=”left” size=”s” style=”simple” template=”01″]

Hospital psiquiátrico não pode ser um campo de concentração do espírito, Em estados de adoecimento mental, a dança, a música e a poesia são mais simples e mais eficazes no processo de reabilitação

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Pordeus junta a sua teoria de humanização do atendimento ao conceito de “afeto catalisador” defendido pela médica alagoana. Nise costumava dizer que os “seres enigmáticos não devem ser rotulados”. É contra qualquer tipo de retrocesso e preconceito que os adeptos dos manicômicos de portas abertas colocaram o bloco na rua.

Liana Melo

Formada em Jornalismo pela Escola de Comunicação da UFRJ. Especializada em Economia e Meio Ambiente, trabalhou nos jornais “Folha de S.Paulo”, “O Globo”, “Jornal do Brasil”, “O Dia” e na revista “IstoÉ”. Ganhou o 5º Prêmio Imprensa Embratel com a série de reportagens “Máfia dos fiscais”, publicada pela “IstoÉ”. Tem MBA em Responsabilidade Social e Terceiro Setor pela Faculdade de Economia da UFRJ. Foi editora do “Blog Verde”, sobre notícias ambientais no jornal “O Globo”, e da revista “Amanhã”, no mesmo jornal – uma publicação semanal sobre sustentabilidade. Atualmente é repórter e editora do Projeto #Colabora.

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Um comentário em “(Lou) cura sem amarras

  1. Hylton Sarcinelli Luz disse:

    Os manicômios sempre funcionaram como “prisão perpétua”, locais onde nunca houve nenhum propósito com a recuperação, muito menos com a cura, ou se quem com o cuidado. Instituições onde sentido humano da vida estava perdido, locais que se resumiam a depósito de corpos vivos onde a vida se esvaia a cada dia. A nomeação Valencius Wurch equivale a indicar um torturado para dirigir a Secretaria de Direitos Humanos. Muito mais que uma afronta a luta anti-manicomial, é um escárnio com toda a sociedade.

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