ODS 1
Uma bala perdida de duas rodas
Bicicletas nas calçadas ganham cada vez mais destaque entre os muitos medos da cidade
Que a bala perdida não se ofenda. Eu tenho medo, sim, de sua idiossincrasia errática. Tenho medo do seu desvario cruel em não escolher alvos e acertar sem motivo quem lhe cruzar a frente. Tenho-lhe pânico respeitável. Mas eu sou um carioca pedestre, um peripatético sem carro, um andarilho sem dinheiro no bolso para pegar o celular e chamar o Uber. Por tudo isso, por andar de um lado para o outro flanando inocência, antes de ter medo da bala perdida, a quem eu respeito em sua vilania, eu tenho o medo supremo e cotidiano das bicicletas que trafegam nas calçadas.
O Rio de Janeiro é uma cidade cercada de medos por todos os lados. Cada cidadão tem o de sua preferência, e eu invocaria respeitosamente também o temor das enchentes, dos mosquitos, dos policiais, dos prefeitos, dos flanelinhas e dos motoristas de táxi que antes de abrir a porta perguntam para onde você vai. É medo para todos os gostos. Nenhum, no entanto, me parece mais próximo e provável de se concretizar do que o de estar perambulando pela calçada, na intimidade do caminho diário entre a casa e o supermercado, e, ao se desviar de um buraco, de um fradinho, ou de um velhinho que caminha de devagar à minha frente, ser atropelado por uma bicicleta que vem traiçoeiramente às costas.
[g1_quote author_description_format=”%link%” align=”left” size=”s” style=”solid” template=”01″]O Rio de Janeiro é uma cidade cercada de vilões por todos os lados e os ciclistas, esculachados no asfalto pela agressividade dos motoristas de ônibus, precisaram subir para as calçadas. Nelas, se transformaram – praticam contra o pedestre o mesmo terror de que eram vítimas na rua
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Veja o que já enviamosO depoimento do ortopedista Michel Simoni não me deixa qualquer risco de estar exagerando sozinho no medo de ter um medo aparentemente tão banal na hierarquia dos pânicos municipais. Não o é. Todo dia o distinto médico, com consultório no Leblon, recebe pelo menos uma vítima alquebrada, em diversos estágios de sofrimento, por um desses novos vilões.
Em todo o mundo o sujeito que anda de bicicleta é um agente da boa mobilidade urbana, participando com zero de monóxido de carbono nos gráficos de poluição ambiental. Um herói programado com as novas senhas da civilização. No Rio, salvas as exceções de praxe sobre estas mesmas duas rodas, ele é um perigo aos que simplesmente caminham com as próprias pernas, estes seres outrora despreocupados que achavam ser necessário à sobrevivência cuidar apenas de não tropeçar nas pedras portuguesas. O jogo mudou. Já havia o beque grosseiro que chegava com um carrinho por trás. Havia também o assaltante que pegava no susto. Chegou mais um inimigo na grande passarela do espaço público.
O Rio de Janeiro é uma cidade cercada de vilões por todos os lados e os ciclistas, esculachados no asfalto pela agressividade dos motoristas de ônibus, precisaram subir para as calçadas. Nelas, se transformaram – praticam contra o pedestre o mesmo terror de que eram vítimas na rua. Viraram os motoristas das calçadas, o horror e o horror de quem tentava perambular sem tensão pela barbárie. Nenhum resquício de civilidade. Pedalam em velocidade, forçam caminho e não têm sequer a delicadeza de avisar que vão passar por cima do coitado.
[g1_quote author_description_format=”%link%” align=”left” size=”s” style=”solid” template=”01″]Andar no que restava da calçada virou risco de vida com a perseguição inclemente movida pelos motoristas das bicicletas. Símbolos da proposta de um mundo mais suave, elas viraram armas de estresse e arrogância
[/g1_quote]O ciclista é a população que mais cresce, o novo habitante que de início buscava redesenhar a vida urbana com as rodas educadas de uma mobilidade serena. Foi, no entanto, abandonado pelas leis. Fizeram-lhe algumas ciclovias mal desenhadas, espremidas, com postes no meio do caminho. Pura demagogia de políticos – e o outrora pacífico ciclista também partiu para a prática radical do primeiro capítulo da constituição fluminense que regula as leis da sobrevivência: todos contra todos.
Sempre foi preciso cuidado para se andar sobre o lamentável calçamento do Rio, uma cornucópia de obstáculos que sozinhos já rompiam uma multidão de tendões de Aquiles, torciam joelhos. Eis que agora, com medo de serem mortos pelos motoristas no meio da avenida, os ciclistas sobem o meio fio e querem se vingar no pedestre. Se a bicicleta era mais fraca que a lataria dos ônibus, no enfrentamento com os ossos dos caminhantes elas são campeãs – e tripudiam suas rodas metálicas sobre as canelas à frente.
Andar no que restava da calçada virou risco de vida com a perseguição inclemente movida pelos motoristas das bicicletas. Símbolos da proposta de um mundo mais suave, elas viraram armas de estresse e arrogância. Passam por cima de qualquer cordialidade urbana, atropelam idosos, crianças e distraídos com igual indiferença – os mais cínicos ainda vituperam com um “olha por onde anda”. Poderia ser um veículo de educação, de respeito ao meio ambiente e também uma ajuda à saúde pública, com mais gente praticando exercícios físicos. Deu errado, atropelou a razão. A bicicleta na calçada é a nova bala perdida da selva carioca.
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Jornalista e autor de vários livros, entre eles "Feliz 1958 - O ano que não devia acabar" e as biografias de Leila Diniz, Antonio Maria e Zózimo Barrozo do Amaral. Organizou a coletânea "As cem melhores crônicas brasileiras" e também publicou livros como cronista. Define-se principalmente como um repórter de Cidade. No #Colabora, Joaquim escreve sobre o que vai pelas calçadas e espaços públicos do Rio.
Isso mesmo. Você descreveu exatamente a transformação do uso das calçadas. Infelizmente os cariocas foram convencidos de que a calçada é de uso misto sendo prioridade do pedestre. Mas como compartilhar uma via de passeio onde as velociades são diferentes? Acredito que esse comportamento seja consequencia da preguiça e falta de planejamento dos ex prefeitos e governadores no desenvolvimento de vias cicláveis segregadas e seguras para os ciclistas. Eles incentivaram o uso da bicicleta como um modal sustentável – e é, mas não a valorizaram como um veículo legalizado pela Lei de Mobilidade Urbana n˚ 12.587/12.
Infelizmente todos acabam sendo vítimas.