Tragédias que não têm nada de acaso

Emerson dos Santos, nos escombros de sua casa, diante do mar de rejeitos: “Vi árvores e pessoas desaparecendo na lama” (Foto: Mauro Pimentel / AFP)

Desastres de Mariana e Brumadinho nascem da desumanidade de políticos e empresas. E a devastação pode se repetir em vários lugares

Por Cristina Serra | ODS 11ODS 15ODS 6 • Publicada em 28 de janeiro de 2019 - 08:33 • Atualizada em 21 de novembro de 2022 - 16:07

Emerson dos Santos, nos escombros de sua casa, diante do mar de rejeitos: “Vi árvores e pessoas desaparecendo na lama” (Foto: Mauro Pimentel / AFP)

“A barragem rompeu, a barragem rompeu!” Quando entrevistei os sobreviventes do colapso da barragem de Fundão, da mineradora Samarco, para escrever o livro “Tragédia em Mariana”, todos eles relatavam essa frase, passada de boca em boca, nos momentos de desespero, enquanto corriam para tentar escapar da avalanche de lama de rejeitos que se aproximava. Assistindo aos vídeos feitos por trabalhadores dentro do complexo minerário da Vale, em Brumadinho, na última sexta-feira, ouvi a mesma frase. Percebi o mesmo desespero. Pouco mais de três anos separam os dois desastres, ambos com semelhanças estarrecedoras no que revelam de descaso criminoso com as pessoas e com o meio ambiente.

Barragens não rompem por acaso. Essas estruturas são complexas obras de engenharia, que vão sendo erguidas e ampliadas na medida em que aumenta a extração de minério de ferro e a consequente necessidade de armazenamento dos rejeitos – uma mistura de lama e areia – decorrentes do processo. São, portanto, estruturas dinâmicas que carregam uma margem de risco, mesmo sendo cumpridas rigorosamente todas as normas de segurança e de proteção aos seus trabalhadores e às comunidades próximas. As empresas donas de barragens deveriam ser obcecadas por segurança. Não foi o que vimos em Mariana e muito menos em Brumadinho.

No desastre de Mariana, a Samarco não tinha sirene de alerta para o caso de emergências. O número de mortes só não foi maior graças à coragem de Paula Geralda Alves, funcionária de uma empresa terceirizada da mineradora, que estava no meio do caminho entre a barragem e o povoado de Bento Rodrigues. Ao ver a lama se aproximando, Paula não hesitou. Com a lama em seu encalço, subiu na sua moto e correu para o povoado, a cerca de dois quilômetros de distância do ponto onde se encontrava. Ela rodou pelas ruas gritando: “A barragem rompeu! A barragem rompeu! Corre todo mundo!” Paula só parou quando a gasolina acabou. Empurrou a moto morro acima, juntou-se a sua família e amigos e de lá viu o povoado de três séculos desaparecer, devorado pelo monstro de barro. Paula salvou cerca de 400 pessoas, foi a sirene que a Samarco não tinha. O colapso de Fundão matou 19 pessoas, atingiu 38 municípios de Minas Gerais e do Espírito Santo e despejou 34 milhões de metros cúbicos de rejeitos na bacia do rio Doce.

Moradores de Brumadinho observam a destruição provocada pelo mar de lama. Foto Lucas Bois / Anadolu Agency
Moradores de Brumadinho observam a destruição provocada pelo mar de lama. (Foto: Lucas Bois / Anadolu Agency / AFP)

Em 2015, a lei não exigia a instalação de sirenes. Como no Brasil costuma-se instalar o cadeado depois da porta arrombada, uma norma do Departamento Nacional de Produção Mineral passou a exigir o alerta. Contudo, no caso de Brumadinho, ele também não funcionou. Por quê? A resposta é ainda mais estarrecedora. A Vale tinha sirenes, mas não teve tempo de usá-la porque a sala onde funcionava, bem como todo o centro administrativo, escritórios e até o refeitório dos trabalhadores ficavam a jusante da barragem que estourou – abaixo da estrutura, precisamente no caminho que a lama percorreria se houvesse um acidente, como, de fato, aconteceu.

É preciso entender como todas essas instalações foram construídas tão próximas e em local tão desfavorável. Quando foram erguidas? Quem autorizou? Por que ninguém tomou a iniciativa de tirá-las dali? A fiscalização nunca notou?  Da mesma forma, alguém precisa explicar como havia casas tão próximas do complexo industrial da Vale. No caso de Mariana, o povoado mais próximo, Bento Rodrigues, ficava a cerca de seis quilômetros de Fundão. Em Brumadinho, as casas estavam muito mais próximas. A conclusão que posso tirar é que o Brasil nada aprendeu com Mariana. Aprenderá com o custo humano incalculável de Brumadinho?

Esta segunda tragédia acontece no momento em que o novo governo federal e alguns governos estaduais têm em suas agendas a mudança de leis ambientais e um ataque às instituições de proteção à natureza no país. As críticas à legislação atual são todas no sentido de que “a lei atrapalha”, “há burocracia demais” e “isso atrapalha o desenvolvimento das empresas”. O que se quer é um “liberou geral” para as empresas fazerem o que bem entenderem e não tenham de responder à sociedade e aos órgãos de fiscalização.

Nesse sentido, o precedente de Mariana é desalentador. Pouco tempo depois do rompimento de Fundão, os deputados estaduais mineiros mudaram a lei de licenciamento ambiental no estado, tornando-a mais “flexível”, eufemismo para dizer que, na prática, a lei aprovada facilita a vida das empresas. A explicação para essa desfaçatez pode estar num levantamento feito pela Associação dos Observadores do Meio Ambiente e do Patrimônio Cultural de Minas Gerais. A pesquisa nos números do Tribunal Superior Eleitoral mostra que dos 77 deputados estaduais mineiros eleitos em 2014, 59 (mais de 75%) receberam doações de mineradoras para suas campanhas. Na época, o financiamento eleitoral de empresas ainda era permitido.

Para completar o cenário de leniência, a fiscalização é praticamente inexistente. Em 2016, pouco depois do colapso de Fundão, o Departamento Nacional de Produção Mineral informou que tinha 985 servidores para todo o Brasil e para todas as atribuições do órgão, que vão muito além da fiscalização de barragens. Desses, apenas cinco tinham formação em engenharia geotécnica, especialização necessária para o entendimento do funcionamento de barragens. O Brasil tinha, então 663 barragens, sendo 450 em Minas Gerais. Auditoria do Tribunal de Contas da União, também de 2016, constatou que a seção mineira do DNPM – conhecido feudo do MDB no estado – tinha 79 servidores quando deveria ter cinco vezes mais.

A impunidade também é poderoso combustível para novos desastres se repetirem. Três anos depois, o processo criminal de Mariana se arrasta lentamente na Justiça Federal de Minas Gerais, na comarca de Ponte Nova, sem qualquer perspectiva de desfecho em curto prazo. São 21 réus por homicídio doloso (quando se assume o risco de provocar morte), entre outros crimes, e mais de 400 testemunhas. Escrevo enquanto segue a busca por desaparecidos em Brumadinho e a contagem dos mortos só aumenta. Uma pergunta não me sai da cabeça: quando ouviremos novamente “a barragem rompeu”?

Cristina Serra

Trabalhou nas redações dos jornais Resistência, Leia Livros e Jornal do Brasil, da revista Veja e da Rede Globo. Cobriu o desastre de Mariana, em 2015, para o Fantástico. Escreveu o livro "Tragédia em Mariana - A história do maior desastre ambiental do Brasil" (Record).

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