Um carro para no sinal e crianças abordam tentando ganhar alguns trocados vendendo balas ou fazendo malabarismos. O primeiro impulso, em uma cidade violenta como o Rio de Janeiro, pode ser fechar o vidro e ignorar aquela situação. Mas, ao observar uma cena semelhante a esta, do banco do carona, Helio Rodrigues sentiu angústia com tal invisibilidade. Tanta que o impulsionou a criar o projeto social “Eu sou”, há 15 anos, que viria a dar início ao Instituto Arte-Educação.
A ONG atende 300 crianças e adolescentes, no Jacaré, 100 na Tijuquinha e outros 70 na Muzema, além de oferecer formação na área, o que acaba atraindo pessoas da própria comunidade para trabalharem na instituição. A proposta é gerenciar e elaborar projetos de arte-educação, como conceito para desenvolver a identidade destes jovens em situação de vulnerabilidade, segundo Rosane Rodrigues, diretora da ONG e companheira de Hélio.
Formada em psicologia, ela dirigiu uma escola e teve uma galeria de arte nos anos 80, quando trabalhou como marchand do marido, que é artista plástico. O trabalho levou o casal a viver, durante dez anos, em uma ponte entre Brasil, Bélgica, Estados Unidos, França, Alemanha, e Portugal. Quando Rosane engravidou do segundo filho, o casal resolveu se estabelecer no Rio. Anos depois, surgiria a ideia de que envolveria toda a expertise dos dois.
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Veja o que já enviamos“Nem questiono o medo, mas que adianta ficar chocado? Pensei: o que posso fazer? Só sei fazer arte. Mas arte tem tudo a ver com formação de identidade”, lembra Helio ao lembrar o episódio do carro. No que chama de sincronicidade, assim que rascunhou o projeto, ele foi convidado, em 2004, para atuar em Sulacap, na Zona Oeste do Rio. Foi praticamente um laboratório para trabalhar dois anos depois no Jacaré, onde há o maior núcleo do Instituto.
[g1_quote author_name=”Helio” author_description=”sócio e coordenador ” author_description_format=”%link%” align=”left” size=”s” style=”simple” template=”01″]Nem questiono o medo, mas que adianta ficar chocado? Pensei: o que posso fazer? Só sei fazer arte. Mas arte tem tudo a ver com formação de identidade
[/g1_quote]A demanda para participar do projeto é grande. Em fevereiro, quando abrem as inscrições por ordem de chegada, os responsáveis são chamados para uma entrevista que serve como avaliação do comportamento da criança. A exigência para participar é estar matriculado e frequentando a escola. Em cerca de quatro meses, já são notadas melhoras em problemas comportamentais e cognitivos.
Helio conta com carinho casos que demonstram a efetividade da experiência. Durante uma atividade, cuja proposta era escrever um desejo, uma menina contou a ele que queria ser mulher de bandido: “Eu escutei e falei ‘mas você é tão nova para decidir isso, poderia dizer que quer ser médica ou não ser mulher de bandido, ou não ser mãe. Tem tanta coisa para pensar e decidir'”, diz ao relatar que deixou a menina intrigada. Um tempo depois, ela retornou ao projeto e disse que havia mudado de ideia, que seria professora de artes. Depois de ser jovem aprendiz, hoje ela é funcionária de uma empresa.
No total, são 25 pessoas trabalhando no Instituto. Eles preferem trabalhar com estagiários e profissionais formados por eles, muitos da própria comunidade do Jacaré. Desta maneira, eles garantem que as pessoas vão continuar e não tem alta rotatividade como em alguns projetos que dependem de voluntários. Além disso, segundo Helio, há um respeito pela cultura local e elimina a ideia de que é preciso um enviado de fora para levar cultura. “Os resultados são maravilhosos, porque eles passam a ser exemplos de mudança. Antes, a gente tinha um preconceito de que os estudantes não iam respeitar uma pessoa da comunidade, mas nada disso acontece. Eles têm um respeito imenso e é um facilitador”, explica.
Andreza Arruda, de 32 anos, é uma destas pessoas. Em 2016, ela fez um curso de formação e se interessou, pois havia saído de um emprego e estava com baixa autoestima. “Tenho duas filhas e não poderia trabalhar final de semana, e, numa sexta-feira, minha chefe disse que queria que eu fosse trabalhar sábado. Quando expliquei porque não podia, ela me olhou e disse para trazer minhas filhas para limpar também”, conta Andreza, que era auxiliar de serviços gerais. A empresa faliu e ela viu numa faixa na comunidade o anúncio do curso.
[g1_quote author_name=”Rosane Rodrigues” author_description=”diretora da ONG” author_description_format=”%link%” align=”left” size=”s” style=”simple” template=”01″]Por incrível que pareça, pais de crianças do Jacaré, pessoas extremamente pobres, que doam 10 reais por mês, são engajados e vêem o resultado que muda a vida familiar. Quando começou a aparecer familiares, foi uma emoção incrível
[/g1_quote]Durante as aulas, ela passou a olhar para si não só como mãe e esposa, e descobriu outras potências. Em 2017, foi chamada para ser monitora de uma exposição do projeto na Cidade das Artes, na Barra da Tijuca, na Zona Oeste, e depois assistente de uma turma. Sua duas meninas, de 11 e de 7 anos, também fizeram parte do projeto. A mais velha, passou na prova do Colégio Pedro II e a mais nova quer seguir os mesmos passos. “O projeto tem isso de fazer olhar pra si e refletir. Uma criança, quando descobre a identidade, vem a autoestima. Aprende a fazer escolha e o tráfico não pega, porque ela sabe que tem outro caminho, que pode segurar um fuzil, mas também um pincel”, reflete.
O projeto quer se multiplicar ainda mais e promover encontros como um simpósio, a fim de haver troca de experiências sobre arte-educação. Para manter o instituto e viabilizar novos passos, eles contam com dois patrocinadores, através de lei de incentivo à cultura, e a doação de pessoas físicas através de crowdfunding – a famosa vaquinha. “Por incrível que pareça, pais de crianças do Jacaré, pessoas extremamente pobres, que doam 10 reais por mês, são engajados e vêem o resultado que muda a vida familiar. Quando começou a aparecer familiares, foi uma emoção incrível”, descreve Rosane Rodrigues.