Três séculos de combate à corrupção

Dinamarca mostra que não existe mágica na hora de evitar o mau uso do dinheiro público

Por Flavia Milhorance | ArtigoODS 1 • Publicada em 22 de abril de 2016 - 07:53 • Atualizada em 22 de abril de 2016 - 13:20

País menos corrupto do mundo pelo índex da ONG Transparência Internacional, a Dinamarca não chegou a este patamar da noite para o dia. Há mais de 350 anos que o combate à corrupção está na agenda da nação escandinava.

Esse índex mede a percepção de especialistas sobre o nível de corrupção no setor público de 168 países. Desde 1995, quando foi criado, a Dinamarca está entre as primeiras posições. O Brasil figurou em 76º lugar no ranking publicado este ano.

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Sociedades que atingiram altos índices de alfabetização no século XIX ou antes são geralmente as mais bem-sucedidos em combater a corrupção contemporânea.

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– O nível de corrupção aqui tem se mantido baixo desde meados do século XIX – afirma Mette Frisk Jensen, pesquisadora da Universidade de Aarhus.

Mette investiga todo o percurso por trás do sucesso na administração do Estado dinamarquês. E sua história começa no ano de 1660.

No século XVII, propina torna-se crime

Mas antes, voltemos um pouco mais no tempo. Entre 1389 e 1523, sob o título de União de Kalmar, a Dinamarca dominou toda a região que hoje compõem os países escandinavos. Em 1523, a Suécia tornou-se independente e deu início a séculos de rivalidade entre as duas nações.

Em meados do século XVII, a Dinamarca amargava seguidas perdas militares e uma crise econômica. À época, a nobreza gozava de enorme poder político e de vários privilégios, como isenção de impostos e grandes extensões de terras.

A crise forçou a nobreza a transferir os poderes ao rei Frederik III, que inaugurou em 1660 a monarquia absolutista, pela qual, ironicamente, começa o combate à corrupção.

Uma reforma era necessária para tornar o Estado mais eficiente, coletar mais impostos e financiar as batalhas contra a Suécia. A partir de 1660, então, a aristocracia perdeu privilégios e gradualmente foi sendo substituída no serviço público. Regras foram instituídas para contratar servidores com base em mérito, não em títulos.

O recebimento de propinas e presentes foi proibido, assim como fraudes e desvios de fundos – crime cuja pena chegava a trabalhos pesados perpétuos, a menos que o dinheiro fosse devolvido.

Leis também focaram no setor Judiciário. Juízes deveriam “ser honestos” e “julgar de acordo com a lei”, além disso não poderiam ser acusados de qualquer ato considerado “desonroso”.

Peter S. Griffenfeld foi condenado e encaminhado à prisão perpétua, devido ao seu envolvimento em venda de cargos, abuso de poder e aceitação de suborno
Peter S. Griffenfeld foi condenado e encaminhado à prisão perpétua, devido ao seu envolvimento em venda de cargos, abuso de poder e aceitação de suborno

“Ao final do século XVII, o Estado tinha adotado leis definindo deveres dos servidores e, especificamente, tornado crimes suborno, falsificação, fraude e peculato”, explica Mette no artigo “The question of how Denmark got to be Denmark – Establishing rule of law and fighting corruption in the State of Denmark 1660-1900” (“A questão de como a Dinamarca se tornou a Dinamarca – estabelecendo o estado de direito e lutando contra a corrupção no Estado da Dinamarca 1660-1900”, em tradução livre), publicado no periódico “QOG Working Paper Series”, da Universidade de Gotemburgo.

“Estas mudanças radicais levaram o modelo de absolutismo dinamarquês a abrir caminho para a meritocracia e o recrutamento de civis, além de maior igualdade social, embora essa provavelmente não era a intenção original”, completa.

Conselheiro do rei condenado à prisão perpétua

Dois exemplos dão uma ideia do que eram estas normas na prática:

Primeiro, no século XVIII foi estabelecido que ninguém poderia se tornar juiz sem graduação em Direito – antes, boa parte apenas recebia treinamento prático. A maioria dos graduados vinha da burguesia, que progressivamente passou a ocupar cargos na administração. No século XIX, os requisitos foram reforçados, e o curso de Direito passou a ser pré-condição para uma série de outras posições no Estado. Ao final desse século, servidores nobres, que já foram maioria em períodos anteriores, representavam apenas 10% do total.

Segundo, um caso emblemático de punição. No século XVII, Peter S. Griffenfeld era secretário e conselheiro do rei Frederik III e teve papel crucial em determinar as primeiras leis de combate à corrupção. Em 1676, no entanto, ele foi condenado e encaminhado à prisão perpétua, devido ao seu envolvimento em venda de cargos, abuso de poder e aceitação de suborno.

No século XIX, mais julgamentos contra a corrupção

No início do século XIX, a Dinamarca era aliada da França na guerra napoleônica, o que a levou novamente a uma grave crise econômica. Nesse período, o país também perdia mais territórios para a Suécia. Casos de corrupção entre servidores públicos cresceram, já que ainda havia brechas. Novas medidas eram necessárias.

A primeira inciativa foi aumentar a vigilância do Estado. Grupos de juízes e altos funcionários passaram a visitar cidades para auditar a administração dos escritórios. “Durante estas viagens oficiais, muitas atividades fraudulentas foram descobertas”, comenta Mette.

Em 1840, um novo código penal incluiu uma lei sobre má conduta no serviço público. Crimes como peculato, fraude e falsificação foram descritos em mais detalhe do que no século XVII. A pena, aliás, passou a ser mesma para todos, tenha o condenado roubado uma pequena ou grande quantidade de fundos públicos. O número de processos explodiu, e muitos foram sentenciados à prisão perpétua.

Se o rei tivesse concedido perdão às más condutas – poder que ele tinha como absolutista –, isto poderia ter criado uma cultura de corrupção, afirma Mette. “Mas o que aconteceu foi o oposto, e esse foi um dos principais elementos na história desse período”.

Não se pode esquecer…

A pesquisadora ainda cita outros fatores da história que podem ter contribuído no combate à corrupção, mas destaca um dele: a educação. Há séculos que grande parte da população escandinava sabe ler.

“Sociedades que atingiram altos índices de alfabetização no século XIX ou antes são geralmente as mais bem-sucedidos em combater a corrupção contemporânea”, diz Mette citando estudos anteriores sobre o tema.

Flavia Milhorance

Jornalista com mais de dez anos de experiência em reportagem e edição em veículos de imprensa do Brasil e exterior, como BBC Brasil, O Globo, TMT Finance e Mongabay News. Mestre em jornalismo de negócios e finanças pelas Universidade de Aarhus (Dinamarca) e City University, em Londres.

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