A prova mais eloquente de que o carnaval é uma festa radicalmente brasileira está a 19 quilômetros, subúrbio carioca adentro, dos camarotes da Passarela do Samba. Numa esquina pagã de Oswaldo Cruz, Zona Norte do Rio, um galpão põe em xeque leis da física para abrigar a produção das alegorias de inacreditáveis 29 escolas de samba que desfilam nas divisões mais pobres – e, claro, desassistidas – da festa. Ano sim ano também, seus artistas toureiam o mesmo enredo, tão nosso quanto o samba e a jabuticaba: a desigualdade.
Acomodam-se todas ali no aperto, sob calor apocalíptico, em troca de R$ 5,5 mil de aluguel anual cada, a um mundo de distância das milionárias coirmãs – como prefere o dialeto do paticumbum – que montam seu espetáculo na opulência da Cidade do Samba. Mas só reclama quem é ruim da cabeça ou doente do pé. Os apaixonados bambas do galpão de Oswaldo Cruz conjugam paciência, abnegação, parceria e jogo de cintura para materializar sua festa.
[g1_quote author_name=”Ney Júnior” author_description=”Carnavalesco do Arame” author_description_format=”%link%” align=”left” size=”s” style=”simple” template=”01″]Aqui não adianta carro alto nem esplendor para alongar fantasia. Quase todo mundo vê de baixo
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Veja o que já enviamosO trabalho veste a fantasia de clandestino, diante da fachada do barracão de nove mil metros quadrados, onde uma placa anuncia que ali funciona o Ministério Selando a Paz. A igreja evangélica do bispo Arnaldo Neto e da pastora Josiene Monteiro, na verdade, ocupa o segundo andar do sobrado na entrada do espaço, e evita o quanto possível a proximidade com os vizinhos do balacobaco. Distanciamento, aliás, recíproco – os sambistas têm mais o que fazer e, para cumprir sua missão quase impossível, rezam fervorosos na cartilha da generosidade.
“Aqui não tem segredo, todo mundo sabe da vida de todo mundo”, constata Júlio Bombinha, compositor e vice-presidente do Arame de Ricardo, falando dos cacoetes das primas ricas da Cidade do Samba, que tentam esconder as principais atrações do desfile. Não há mesmo como ocultar coisa nenhuma – os carros ficam praticamente colados, ocupando cada centímetro do galpão.
Vale tudo pelo esforço de levar um carnaval digno à Estrada Intendente Magalhães. Lá, dias 7, 8, 9 e 13 de fevereiro, vão passar 57 escolas de quatro grupos, na pista que começa em frente à Popkar Veículos e, após uma curva suave, termina em frente ao Point Grill, em Campinho. Sob o lusco-fusco da iluminação pública do subúrbio, longe dos olhares de políticos, contraventores e celebridades, a plateia pode se instalar numa pequena arquibancada desmontável ou levar cadeira de praia e ocupar um trecho de calçada – a festa na Intendente é de graça.
“Aqui não adianta carro alto nem esplendor para alongar fantasia. Quase todo mundo vê de baixo”, ensina o carnavalesco Ney Júnior, que comanda cinco pessoas na produção da alegoria do Arame. Espécie de Paulo Barros da Intendente, ele subiu com a escola para a Série B, a terceira divisão da folia, em 2013, e venceu o mesmo grupo com a Unidos de Bangu em 2014. Agora, recebe R$ 10 mil pela missão de 2016 com o Arame (carnavalescos no Grupo Especial chegam a ganhar R$ 1,5 milhão por ano).
Uma das favoritas ao título, a azul e branco de Ricardo de Albuquerque levará à avenida o enredo “No sassarico das vedetes, do brotinho e da madame; Sassaricando no meu Rio, levo a vida no Arame!”, com uma solitária alegoria (um teatro de revista em vermelho), um tripé e 800 componentes. Para isso, contou com R$ 133 mil de subvenção da Riotur e mais quase nada. “O desfile não passa em lugar nenhum, nem sai no jornal. Fica difícil conseguir ajuda ou patrocínio”, conta Bombinha, sem se lamentar. “Estamos aqui pela paixão, então vale qualquer esforço”.
(Para se entender a dimensão do disparate, cada escola do Grupo Especial embolsa perto de R$ 6,5 milhões como receita para o espetáculo. O dinheiro vem do contrato com a TV Globo, da prefeitura – este ano, Eduardo Paes entregou R$ 2 milhões a cada uma –, da venda de ingressos e do CD dos sambas-enredo. As 12 integrantes da elite do paticumbum apresentam seis ou sete carros alegóricos, entre 3.500 e 4 mil componentes e esmeram-se em efeitos especiais crescentemente mirabolantes – e caros.)
[g1_quote author_name=”Paulo Campos” author_description=”Artista plástico que trabalha em dez escolas” author_description_format=”%link%” align=”left” size=”s” style=”simple” template=”01″]Aqui, reside a verdadeira alma carnavalesca. Lá (na Cidade do Samba), tem almoxarifado, compras, estrutura. O nosso é lixão, tudo reciclado
[/g1_quote]Para compensar a carência, o bom humor e a criatividade viram quesitos obrigatórios. Neles, Bombinha tira 10. Numa disputa de samba, anos atrás, inscreveu sua composição sob o número 13, o mesmo usado por J. Velloso, presidente da ala de compositores da Beija-Flor, na disputa da escola, só para poder reaproveitar as bandeirinhas utilizadas pelo amigo no concurso em Nilópolis. Deu certo: a torcida motivada ajudou Bombinha e seus parceiros a vencer.
A peculiar sustentabilidade também dita o ritmo de trabalho no barracão de Oswaldo Cruz. Praticamente nada vai para o lixo – e muito material descartado pelas grandes da Cidade do Samba ganha vida no sufoco das últimas divisões. As esculturas dos cantores na alegoria do Arame passaram pela Sapucaí com a Beija-Flor em 2014, no trágico enredo em homenagem a Boni, que deixou a multicampeã no sétimo lugar. As placas que formam a base do carro foram doadas pela Grande Rio.
Mas no quesito reencarnação carnavalesca ninguém ganha do Gato de Bonsucesso, da Série D, o penúltimo grupo. Na escola da Nova Holanda, favela do Complexo da Maré, o enredo será “Catcherê-Dominã – lendas e festas de Mãdubi”, sobre a “ancestralidade indígena”, dentro da “história de formação do território nacional e descoberta do interior, através de um símbolo da culinária brasileira e mundial”, o amendoim. A alegoria traz, logo na frente, um índio que emplaca seu terceiro carnaval. Antes, a escultura veterana saiu na Viradouro e na Paraíso do Tuiuti, as duas da Série A (a segunda divisão). No barracão coletivo, chamam a peça de “índio-Gracyanne”, referência à musa bombada que a cada ano está numa escola diferente.
O carnavalesco estreante Guilherme Estevão ri da brincadeira. Estudante de arquitetura, 21 anos, torcedor da Imperatriz Leopoldinense, ele não ganha nada pelo trabalho na alegoria, no tripé e nas fantasias dos 350 componentes (somente uma bateria no Grupo Especial tem cerca de 300 pessoas) que sairão no Gato. Jogo jogado – o jovem encara a experiência como um aprendizado.
De fato, há uma riqueza toda especial, que vai muito além da subvenção de R$ 68 mil paga pela Riotur. A generosidade, por exemplo. A escola divide a quadra com o baile funk e os cultos evangélicos da comunidade. “Outro dia, não pudemos ensaiar porque havia um velório”, relata Guilherme, que se envolveu intensamente com o Gato. “Até dormi na casa da família que dirige a escola”.
Podia ser pior. Como na Unidos da Vila Santa Tereza, de Coelho Neto, que para o enredo sobre seus 60 anos, teve apenas R$ 1,9 mil. O caraminguá foi o que sobrou após o pagamento das famigeradas cartas de crédito, utilizadas pelas escolas nas lojas de insumos carnavalescos, como o Babado da Folia. Dívida é das palavras mais repetidas entre as alegorias em Oswaldo Cruz.
Por isso, precisa paciência para receber o salário, resigna-se o artista plástico Paulo Campos, que se divide no trabalho em dez escolas – feliz da vida. “Aqui, reside a verdadeira alma carnavalesca. Lá (na Cidade do Samba), tem almoxarifado, compras, estrutura. O nosso é lixão, tudo reciclado”, descreve. “Tem de ser artista mesmo!”
Gabriel Haddad e Leonardo Bora ouvem o relato do colega e sequer se atrevem a reclamar. Dupla de carnavalescos da Acadêmicos do Sossego, de Niterói, eles têm a vantagem de trabalhar numa escola de fora do Rio, que conta com duas subvenções. A prefeitura da cidade do outro lado da Baía deu R$ 150 mil – e a azul e branco somou fabulosos R$ 300 mil para fazer seu carnaval. “E ainda usamos muita coisa que sobra lá da Cidade do Samba”, confirma o niteroiense Gabriel, assistente do experiente Alexandre Louzada na Mocidade Independente. A verde e branco de Padre Miguel gasta perto de R$ 8 milhões em fantasias e alegorias, além de – segundo a bem-informada rádio corredor da folia – pagar outro milhão de cachê para a rainha de bateria, Claudia Leitte, se sacudir pela Passarela.
“Para nós, é uma experiência incrível, muito rica”, atesta Leonardo que, como o amigo, se inspira em Rosa Magalhães e Renato Lage, os melhores carnavalescos em atividade. A alegoria azul e branca do enredo “O circo do menino passarinho”, abre-alas em homenagem ao centenário do poeta Manoel de Barros, confirma o esmero. Com 700 componentes divididos em 17 alas, além de um tripé, a Sossego está entre as favoritas na Série B, ao lado de Arame, União de Jacarepaguá, Tradição, Unidos do Jacarezinho e, mais do que qualquer outra, a Leão de Nova Iguaçu.
A escola da maior cidade da Baixada contratou o carnavalesco Cid Carvalho (campeão pela Beija-Flor), e o puxador Nego, cinco vezes ganhador do Estandarte de Ouro. Seu carro, num canto do barracão, impressiona pelo tamanho – serve até de platô para fotografias panorâmicas das outras alegorias. Não se fala de outra coisa: o Leão é a escola a ser batida, na maratona que começa às 18h (ainda com o sol potente do horário de verão) da terça-feira de carnaval, na Intendente.
No fim da história, a campeã entre as 16 concorrentes da terceira divisão viverá um conto de fadas real: desfilar em 2017 no altar iluminado dos bambas, a Passarela do Samba, pela Série A, a última antes da elite. Para a vencedora, valerá o aforismo de um famoso samba da Mocidade: sonhar não custa nada. Ou quase nada.