Trinta anos após morte de Chico Mendes, Estado ainda não combate crimes na floresta, diz ativista

Imagem aérea da Reserva Extrativista Chico Mendes, Xapuri, no Acre (Foto ©Marizilda Cruppe/Greenpeace)

Encontro em Xapuri começa neste sábado e marca os 74 anos do nascimento do líder seringueiro, relembrando seu legado

Por Marizilda Cruppe | FlorestasODS 14 • Publicada em 15 de dezembro de 2018 - 08:42 • Atualizada em 19 de dezembro de 2018 - 16:48

Imagem aérea da Reserva Extrativista Chico Mendes, Xapuri, no Acre (Foto ©Marizilda Cruppe/Greenpeace)

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Francisco Mendes Filho completaria 74 anos hoje, mesmo dia em que começa, em Xapuri, o Encontro Chico Mendes 30 anos, que lembra o assassinato do líder seringueiro ocorrido em 22 de dezembro de 1988. Foi nessa data que Chico atravessou o quintal de casa, com uma toalha de banho nos ombros, rumo ao chuveiro localizado nos fundos, e foi atingido por tiros disparados por pistoleiros que estavam à espreita na escuridão. A partir deste sábado, durante três dias, a cidade de 19.048 (população estimada para 2018) habitantes vai ver sua população crescer 10% com a chegada de palestrantes, visitantes e ativistas que lembrarão o legado de Chico no evento realizado pelo Conselho Nacional das Populações Extrativistas (CNS)..

Uma das que chegam de Marabá é Claudelice da Silva Santos, 36 anos, técnica em agropecuária com habilitação em agroecologia, estudante do curso de Direito da Terra na Universidade Federal do Sul e Sudeste do Pará (UNIFESSPA). Claudelice deixou duas filhas adolescentes aos cuidados de familiares porque sabe a importância de participar do encontro. Ela perdeu o irmão, José Claúdio Ribeiro dos Santos e a cunhada, Maria do Espírito Santo, assassinados em 2011, no projeto de assentamento agroextrativista (PAE) Praialta-Piranheira, onde viviam, em Nova Ipixuna, no Pará. Um pedaço da orelha de José Cláudio foi cortado para ser levado como prova aos mandantes do crime.

Claudelice no Projeto de Assentamento Agroextrativista (PAE), em Nova Ipixuna, Pará (Foto ©Marizilda Cruppe/Greenpeace)
Claudelice no Projeto de Assentamento Agroextrativista (PAE), em Nova Ipixuna, Pará (Foto ©Marizilda Cruppe/Greenpeace)

A futura advogada e defensora da floresta viaja pelo Brasil e pelo mundo dando continuidade a luta do irmão e da cunhada, que foram mortos porque denunciaram a ação ilegal de fazendeiros no assentamento. Ano passado ela esteve na universidade de Oxford, na Inglaterra, e este ano em Chiang Mai, na Tailândia, para participar de encontros com defensores da floresta de outros países. Ano que vem o encontro acontecerá no Brasil, provavelmente em Marabá, cidade apelidada de Marabala, tamanha a violência na região. Em Xapuri, na sede da cooperativa de artesanato Mãos de Mulher, Claudelice conversou com o #Colabora.

#Colabora: Você se lembra da primeira vez que ouviu falar de Chico Mendes?

Claudelice da Silva Santos: Não lembro, eu era muito novinha, criança praticamente. Eu conhecia a história de Chico Mendes de vê-lo como um ícone, mas lembro mais fortemente quando eu comecei na escola agrícola, em 2003, onde estudamos muito especificamente quem foi ele e as lutas que ele travava. A razão de ele ter sido assassinado, porque ele era importante para a história do nosso país, o olhar diferenciado que tinha para os povos da floresta que não tinham voz e como ele levou as vozes dessas pessoas adiante. Estudamos porque é importante termos uma uma referência como Chico Mendes, qual a relevância da luta de pessoas como ele para a comunidade local, mas também para tantas outras comunidades que estão nas mesmas condições de isolamento e opressão pelo poder do capital e do Estado, que muitas vezes é o maior violador de direitos. Nessa época, o projeto Agroextrativista Praialta Piranheira, em Nova Ipixuna, onde eu morava com minha família, tinha seis anos de criação e estava naquele momento muito forte de empoderamento das lutas pelas comunidades tradicionais. Ele foi uma inspiração para criarmos o assentamento, no modelo pelo qual Chico lutou tanto, de respeito às comunidades locais. Na região de Marabá, o Praialta Piranheira foi o primeiro nesse modelo agroextrativista.

Quando começaram as ameaças ao casal Zé Cláudio e Maria vocês pensaram que poderia ter esse desfecho?

Jamais, jamais. O Zé Cláudio e a Maria tinham muito essa força da resistência, da resiliência, de nunca retroceder, de nunca voltar atrás. Muitas vezes chegamos em casa e encontramos a casa violada, com as panelas furadas, a comida virada, mensagens nas paredes, mas jamais imaginamos que eles teriam o mesmo fim (do Chico Mendes). No fundo a gente sabia, mas é aquilo, a gente pensa que vai acontecer com todo mundo menos com a gente. Embora a Maria sempre falasse que quando encontrassem o corpo de um, o corpo do outro estaria junto, que quando matassem, matariam os dois. Mas a gente jamais imaginou que isso fosse realmente acontecer um dia. Eles eram tão fortes, pareciam indestrutíveis.

O que se seguiu após o assassinato do Zé Cláudio e da Maria teve o mesmo padrão de outros crimes envolvendo defensores da floresta e do campo?

Exatamente o mesmo padrão de injustiças, de o Estado sendo complacente, com sistemas de investigação e julgamento ineficazes. Isso a gente sabia, mas sentir na própria pele é muito doloroso porque se reflete na família e na comunidade numa proporção que a gente não consegue nem entender, e isso perpassa ao longo dos anos. Quando o Zé e a Maria foram assassinados houve uma pressão muito grande da mídia nacional e internacional, e a investigação foi rápida, mas com muitas falhas. Nem todas as pessoas envolvidas nos assassinatos estão citadas no processo. Para dar uma resposta rápida à sociedade a investigação foi mal feita. Começou com a Polícia Federal e depois passou para a Polícia Civil que não considerou a investigação feita pela Federal que tinha muito mais elementos. A Civil se preocupou mais em solucionar o crime e prender assassinos e mandantes do que destrinchar a organização que está por trás. Esse tipo de crime se dá em três esferas. A primeira, a esfera maior do “consórcio da morte” é onde estão empresários, políticos e todo o rol de pessoas que querem um assassinato. Na segunda esfera estão aquelas pessoas que vão dar condições desse desejo acontecer, as pessoas que montam os esquemas, fazem os contatos e estudam as pessoas que serão assassinadas. E por fim, na terceira esfera, estão os testas de ferro, que no caso do Zé Cláudio e da Maria eram três pessoas, um mandante e dois executores. Então existem essas camadas de poder, semipoder e poder paralelo, que ao fim e ao cabo nunca aparecem e só ficam aqueles que servem de “bucha de canhão”. Embora esses três tenham se colocado como coitadinhos, eles tinham seis advogados e o mandante foi absolvido no primeiro julgamento. Nós recorremos e, no segundo julgamento, em segunda instância, o mandante foi julgado à revelia e condenado. Mas até hoje os dois estão foragidos. A nossa luta agora é para que os assassinos sejam presos (os irmãos José Rodrigues Moreira e Lindonjohnson Silva Rocha). Nós queremos justiça.

No contexto da violência na floresta e no campo você vê semelhanças entre o Brasil de 1988 e o de 2018?

Nada mudou. É exatamente a mesma coisa. Só que agora com dispositivos legais que estão validando mais ainda a criminalização dessas pessoas ligadas aos movimentos sociais, sejam elas defensoras dos direitos humanos, da floresta, da terra ou da água. Antes tentavam invisibilizar essas pessoas e agora querem criminalizar. O Estado está tentando nos engessar e nos criminalizar de uma forma que podem nos prender e nos matar e ter isso validado. Nada mudou. Antes eram os capangas, pistoleiros. Agora é a polícia institucionalizada, aqueles que deixam as polícias e montam empresas de segurança para defender os grandes fazendeiros que podem pagar pelo serviço. Veja o caso do massacre de Pau D’Arco. Quem foi que matou em Pau D’Arco? Quem estava lá antes de apertarem o gatilho que matou os dez trabalhadores? Era uma polícia institucionalizada. A investigação mostrou que os assassinos tinham ligação direta com a polícia do Pará. Então, nada mudou. Os mecanismos que estão reorganizados através da parapolícia. É isso, só ficou mais eficiente. Continuam matando os trabalhadores e nada acontece. A justiça continua lenta da mesma forma. Em alguns casos há uma sensação de justiça porque há uma condenação, como no caso do Zé Cláudio e da Maria, mas o desfecho são os assassinos soltos e aqueles que contribuíram para que a morte deles acontecesse não aparecem na investigação e nem são indiciados. É uma maquiagem completa para ter uma sensação de justiça, mas que no final não tem justiça nenhuma.

Você se transformou numa ativista pelos direitos humanos e pelos direitos dos povos da floresta. Como é o seu trabalho?

Eu jamais imaginei que um dia a gente seria obrigado a expandir a luta. A gente lutava pela nossa reserva agroextrativista, pelos direitos humanos e ambientais, mas depois do assassinato do Zé Cláudio e da Maria eu pensei, caramba, o que é que eu vou fazer? Tem outras pessoas na mesma condição que eu, gritando do mesmo jeito, mas parece que a voz não sai porque simplesmente o Estado brasileiro não tem ouvidos pra essas pessoas. Então, tem sete anos que eles foram assassinados. O primeiro momento foi de tristeza, de querer abandonar tudo, mas não dá para apagar isso, você tá com isso na sua carne, e tem outras pessoas passando pelo mesmo, então não dá pra fechar o olho, não dá pra abandonar os companheiros. Então, o que era possível fazer? Primeiro tem que engolir o choro e parar de ter medo, e segundo ver o que é possível fazer. Se é denúncia vamos denunciar, se é estudar mais para entender essas coisas, então vamos estudar, que é o meu caso. Eu faço um curso de Direito, o Direito da Terra , que é um curso específico para filhos e filhas de trabalhadores e trabalhadoras rurais. A gente estuda a pedagogia da alternância, uma linhagem freireana. Embora o curso tenha a mesma grade curricular dos demais cursos de Direito, nós temos um foco ainda maior no direito agrário, direitos humanos e ambientais, que é a base da nossa classe trabalhadora. O objetivo é que a gente contribua com a nossa e com outras comunidades para que não aconteça o que já vem acontecendo secularmente, trabalhadores sendo assassinados e tendo seus direitos violados em todas as esferas, muitas vezes pelo próprio Estado. Como enfrentar isso? A gente estava muito pacífico, sem querer ir para um embate mais forte, mas agora não dá mais pra continuar assim. Com essa conjuntura política atual a gente precisa ser combativo mais do que nunca porque se nossos trabalhadores já eram assassinados imagina agora que o governo eleito praticamente valida isso, valida um companheiro ser preso injustamente, valida um companheiro ser assassinado porque ele era um potencial perigo para a sociedade, sendo que a gente que acompanha as lutas sabe que é exatamente o contrário. O próprio Estado brasileiro é sim um dos maiores violadores de direitos humanos. E eu não digo isso só da minha classe trabalhadora, extrativistas, povos da floresta e do campo não. Vá nas favelas e você vê isso, vá nos grandes centros e você vê a criminalização da população negra e pobre. Então, estudar Direito da Terra, para mim, é muito simbólico. É claro que esse não era o meu sonho, eu queria fazer Engenharia Florestal, mas se as condições pelas quais eu e minha família passamos e tantas outras famílias passaram, se é esse o meio que eu tenho para fazer o máximo possível pelas comunidades, então é esse o caminho que eu tenho que trilhar. Às vezes você precisa deixar o seu sonho de lado para levar o sonho de uma classe que é ter paz e os seus direitos de fato efetivados.

O que significa estar nesse encontro dos 30 anos do assassinato de Chico Mendes?

Para mim, é um misto porque eu fico muito feliz de reencontrar companheiros e estar aqui contribuindo para este momento. Por outro lado, eu sei o quanto é doloroso. Era para o Zé Claudio e a Maria estarem aqui. Era para tantos outros companheiros estarem aqui e não estão mais. Estou aqui para contribuir para que a luta e a memória de Chico Mendes não sejam perdidas, para que a voz dele não seja silenciada pelo tempo, porque a gente sabe que é isso que o tempo faz. São tantas lutas e tantos companheiros tombando, então estar aqui e lembrar quem foi Chico Mendes, e lembrar a sua luta que é tão inspiradora até hoje é muito forte, muito simbólico. O Zé e a Maria estiveram aqui alguns anos atrás, e, se eles estivessem vivos, com certeza estariam aqui de novo. Estar aqui é saber que a luta do Zé e da Maria, do Chico e da Dorothy vai continuar. Trazer a memória do Chico Mendes é também trazer a memória do Zé e da Maria, da Dorothy, da Marielle e de todas as pessoas que foram assassinadas em massacres. A luta em memória a esses trabalhadores é a arma que a gente tem para não deixar o Estado esquecer. Espero que as pessoas conheçam a história dos que foram assassinados porque o que a gente vê é uma invisibilização, uma desqualificação da luta dessas pessoas, uma diminuição da luta dessas grandes pessoas que merecem que todos estejam aqui se lembrando deles. Estar aqui é também lembrar a luta dos que ainda estão vivos e merecem continuar vivos. Essas pessoas que foram assassinadas não eram só pessoas, eram sementes. Quando os mataram acharam que tinham acabado com suas lutas, mas as sementes plantadas por eles já tinham virado árvores, que somos nós. Estar aqui é garantir que a memória dessas pessoas não vai se acabar. Se o Estado pensa que a gente tem memória curta, nós dizemos que não temos e vamos continuar dando voz aos que foram assassinados.

Marizilda Cruppe

​Marizilda Cruppe tentou ser engenheira, piloto de avião e se encontrou mesmo no fotojornalismo. Trabalhou no Jornal O Globo um bom tempo até se tornar fotógrafa independente. Gosta de contar histórias sobre direitos humanos, gênero, desigualdade social, saúde e meio-ambiente. Fotografa para organizações humanitárias e ambientais. Em 2016 deu a partida na criação da YVY Mulheres da Imagem, uma iniciativa que envolve mulheres de todas as regiões do Brasil. Era nômade desde 2015 e agora faz quarentena no oeste do Pará e respeita o distanciamento social.

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