Entre a cantada e a covardia

Mulheres protestam contra o assédio no metrô de São Paulo. Foto de Gabriel Soares/Brazil Photo Press

Voz das vítimas é a única força capaz de desmontar a lógica da cultura do assédio

Por Márcia Tiburi | ODS 4 • Publicada em 10 de abril de 2017 - 19:47 • Atualizada em 8 de março de 2023 - 10:02

Mulheres protestam contra o assédio no metrô de São Paulo. Foto de Gabriel Soares/Brazil Photo Press

Enquanto muitas pessoas se escandalizam e indignam diante do assédio praticado pelo ator José Mayer contra a figurinista Su Tonani, outros decidem apoiá-lo criando campanhas machistas tais como “Mexeu com José Mayer, mexeu com todos”. A frase choca à medida que expõe uma verdade. A campanha “Mexeu com uma, mexeu com todas”, levada adiante por atrizes, colegas de corporação midiática de Mayer, que surgiu a partir da denúncia de assédio feita no blog “Agora é que são elas”, realmente “mexe” com muitos homens, porque, sobretudo, atinge o machismo estrutural. Ela põe em questão algo que estava “quieto”, o verdadeiro hábito do assédio que é um dos pilares mais importantes do machismo de nossa sociedade.

Tanto o assédio moral quanto o assédio sexual (que não deixa de ter também uma dimensão moral) não se desenvolveriam tão facilmente se não acontecessem em um clima socialmente propício. Falamos ultimamente em cultura do estupro, mas a cultura do “assédio”, seja moral, seja sexual, é tão arraigada que permite o surgimento de posturas antiéticas tais como a dos apoiadores do assediador. A cultura do assédio constitui um círculo vicioso. Ela cria a permissão para que surja o assediador enquanto depende também de seu apoio. Não denunciar os casos de assédio produz uma conivência em relação à qual nem todos têm consciência.

Antes de seguir, é interessante colocar a questão de que assédio não é cantada. Não se trata de defender a cantada, mas de discernir jogos de linguagem e sua relação com a violência. Enquanto o termo “cantada” remete a certa poética popular, o termo assédio define uma violência.  O limite entre um e outro é tão tênue que, em tempos sombrios, talvez não seja oportuno dar cantadas sob pena de errar a mão. De qualquer modo, é interessante ver que uma cantada é algo que se dá. Dizemos: me deu uma cantada, dei uma cantada. Ninguém é capaz de dizer “pratiquei uma cantada”, “ele praticou uma cantada”. Quando dizemos “ele me cantou”, “eu o cantei”, fica claro que o “objeto” da cantada se torna poético. Não um objeto manipulado, simplesmente, mas muito mais um objeto do desejo. Aquele que leva uma cantada se torna uma espécie de “metáfora objetiva” ao entrar no campo da expressão poética do outro. Como a cantada é poética, ela é variável, há muitas formas de cantar alguém e, portanto, de “poetizar” o “objeto”. Por meio da cantada, preserva-se algo da dimensão sexual como uma dimensão poética, motivo pelo qual talvez ainda valha a pena viver essa dimensão.

Protesto de mulheres em Roma: "Nem uma a menos". Foto Giuseppe Ciccia/NurPhoto
Protesto de mulheres em Roma: “Nem uma a menos”. Foto Giuseppe Ciccia/NurPhoto

Como toda estética é acompanhada de uma ética e de uma política, uma cantada nunca pode ser agressiva. Se ela perde a dimensão poética ela se torna assédio. O limite entre uma e outra torna-se claro. No entanto, em uma época caracterizada pela brutalidade como é a nossa, é fácil perder isso de vista.

No assédio dizemos que houve uma prática e ela é inteiramente desprovida de poesia. O assédio é gradativo, entre o chato e o agressivo, ele vai da deselegância à violência. Quando surgiu a campanha “Chega de Fiu-Fiu”, muitas pessoas não conseguiram entender que ali já havia uma semente de assédio. A crítica ao “fiu-fiu” veio questionar uma prática inicial de assédio, inscrita de tal forma na cultura que apenas as atingidas conseguem entender. Isso porque a cultura machista usa o assédio como uma prerrogativa e até mesmo um privilégio daquele que tem poder – ou pensa que tem – sobre as outras pessoas, no caso, as mulheres.

O assédio, como escrevi há tempos atrás (em texto que foi publicado no livro Como Conversar com um Fascista, ed. Record, 2015), é uma prática antiética de opressão baseada na pressão direta a um indivíduo. O assediador é aquele que pressiona o assediado a fazer sua vontade. Ele trata o assediado como um objeto que deve lhe servir.

A sociedade do assédio forma pessoas capazes de produzir o assédio e de consentirem com ele. Quando não tratamos as outras pessoas como sujeitos de direitos, é fácil tratá-los como coisas. Nós mesmos nos tratamos como coisas, quando, assediadas, nos calamos. Hoje, o machismo chama a atenção, mas também o mercado, o capitalismo, a publicidade generalizada, o consumismo, fazem parte do sistema do assédio. De um consentimento generalizado a ser usado, marcado e humilhado pelo outro. Assim como um homem assediador acha que pode impor um desejo a uma mulher, o capitalismo faz com o consumidor. Todos se tornam dóceis e o assediador conta com essa docilidade.

A sociedade do assédio é a sociedade do desrespeito, mas é também a da covardia. O covarde sempre prefere o dócil. Por isso, o assediador se desculpa das maneiras mais torpes para despertar a docilidade perdida com a qual ele contava. Quando pego em flagrante, ele desdiz, ele se justifica, no extremo afirma não ter feito nada demais, nada que outros também não fizessem. Apoiado pelos pares covardes, ele tenta preservar um lugar de privilégio que só se sustenta na união de todos por um ideal comum perverso.

Contra isso, a voz das vítimas é a única força, o verdadeiro poder capaz de desmontar a lógica da cultura do assédio.

Márcia Tiburi

Graduada em Filosofia e Artes, Márcia Tiburi é mestre e doutora em Filosofia. Tem inúmeros livros publicados, entre eles “As Mulheres e a Filosofia”, “Mulheres Filosofia ou Coisas do Gênero”, “Filosofia em Comum”, “Filosofia Brincante” “A Mulher de Costas” e “Como conversar com um facista”. É professora da UniRio e curadora da Passagens –Escola de Filosofia, um espaço de pensamento criado para discutir Filosofia, Psicanálise e Artes e Cultura.

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