O capitalismo pós-Lava-Jato

O presidente do grupo Odebrecht, Marcelo Odebrecht , chega para depor na CPI da Petrobras acompanhado de policiais federais

Para onde, para quê e para quem a economia brasileira vai crescer, quando a crise terminar?

Por Ricardo Abramovay | ArtigoEconomia VerdeODS 14 • Publicada em 31 de março de 2016 - 08:00 • Atualizada em 2 de setembro de 2017 - 15:43

O presidente do grupo Odebrecht, Marcelo Odebrecht , chega para depor na CPI da Petrobras acompanhado de policiais federais
O presidente do grupo Odebrecht, Marcelo Odebrecht , chega para depor na CPI da Petrobras acompanhado de policiais federais
O presidente do grupo Odebrecht, Marcelo Odebrecht , chega para depor na CPI da Petrobras acompanhado de policiais federais

A Operação Lava-Jato está dizimando a coalizão que domina o capitalismo brasileiro contemporâneo. Ao colocar a nu as relações promíscuas entre diversas instâncias de representação e de poder político com os partidos que constam das denúncias da Odebrecht, da JBS e outras, ela revela muito mais do que distorções de comportamento. O que está vindo à tona (mas é sistematicamente obscurecido pela fumaça do engajamento polarizado e pouco refletido) é a própria natureza da relação entre o eixo central da organização econômica do País e o poder político. Por mais traumáticas que sejam estas revelações, elas podem abrir caminho a um contrato social diferente daquele que caracteriza hoje a relação entre economia, sociedade e política no Brasil.

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Não se trata de imaginar que numa sociedade complexa possa existir independência e separação radical entre as atividades corporativas e o Estado. O que entretanto não é próprio de uma sociedade complexa moderna é que a possibilidade de fazer negócios venha, antes de tudo e fundamentalmente, da capacidade de os dirigentes empresariais estabelecerem vínculos particulares com o poder político, aí apoiando a obtenção de seus lucros.

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A ideia de coalizão dominante vem de um dos mais importantes livros do prêmio Nobel de Economia, Douglass North, com outros dois coautores. Neste livro (do qual pode-se ler uma resenha aqui) eles mostram que, até o final do Século XVIII, não existia, em parte alguma, o direito de formar livremente organizações, fossem elas políticas, caritativas ou econômicas. O acesso à iniciativa econômica e a atividades geradoras de renda restringia-se a pequenos e poderosos grupos que se apoiavam no uso (potencial ou real) da violência para dar estabilidade a uma ordem fechada. A essência desta ordem está no caráter personalizado da dominação e das relações sociais. As organizações ligam-se muito mais a pessoas que a regras universais de funcionamento.

Este é um tema clássico da sociologia brasileira e foi desenvolvido de maneira magistral na obra de Sérgio Buarque de Holanda, entre outros. O homem cordial, por exemplo, exprime justamente a força das relações pessoais (e não de leis universais) na maneira como o conjunto da sociedade opera. Daí derivam o clientelismo, o patrimonialismo e o controle (por meio da violência mais ou menos aberta) do próprio mercado. O comércio e a formação da concorrência são submetidos inteiramente a relações não econômicas, que envolvem a capacidade de controlar e obter renda do Estado.

Ao mesmo tempo, estas formas de dominação social excluem o que o grande economista austríaco, Joseph Schumpeter (1883-1950) chamou de destruição criativa. Os ganhos das elites, nas sociedades em que as atividades econômicas dependem dos vínculos pessoais com o Estado, não provêm de processos significativos de inovação. São rendas que decorrem, em última análise, de seu poder e não de sua eficiência competitiva.

Como foi possível a transição desta ordem fechada para o que North e seus colaboradores chamam de sociedades de ordem aberta? Como se deu a emergência não só da liberdade de formar organizações, mas, sobretudo, de um conjunto de regras pelas quais a dominação social adquire caráter cada vez mais impessoal? Para responder a esta pergunta North e seus colaboradores não se debruçam tanto sobre os movimentos e as aspirações das massas e sim sobre os interesses e as articulações das próprias elites dominantes. O livro faz uma rica descrição mostrando os processos pelos quais é do interesse destas elites renunciar ao controle localizado que detinham sobre a violência e transferir este poder para o Estado. A dominação não se faz mais por meio de capangas, milícias e seguranças particulares, mas sim da força repressiva do Estado. Mas esta transição supõe mudança radical no relacionamento entre o Estado e as elites. A relação deixa de se apoiar nos vínculos entre pessoas, na clientela e no uso privado da violência e passa a reger-se por regras universais.

A vida econômica brasileira é dominada hoje por atividades e procedimentos que distanciam o país da fronteira global da inovação. E, com imensa frequência, estas atividades passam não por destruição criativa, exposição à concorrência global e ruptura com padrões produtivos já existentes, mas ao contrário, por baixo teor de informação e escassez de conhecimentos novos na oferta de bens e serviços. É sintomático que logo no início da operação Lava-Jato, a narrativa de alguns dos que foram por ela atingidos passasse pela alegação de que se tratava de uma espécie de conspiração para destruir um setor (empreiteiras de obras de infraestrutura) em que o Brasil tem tanto destaque global, para permitir a entrada aqui de empresas estrangeiras.

Não se trata de imaginar que numa sociedade complexa possa existir independência e separação radical entre as atividades corporativas e o Estado. O que entretanto não é próprio de uma sociedade complexa moderna (o que North e seus colaboradores chamam de ordem social aberta) é que a possibilidade de fazer negócios venha, antes de tudo e fundamentalmente, da capacidade de os dirigentes empresariais estabelecerem vínculos particulares com o poder político, aí apoiando a obtenção de seus lucros.

A amplitude da operação Lava-Jato tanto no setor privado como no interior dos partidos e do Estado mostra muito mais que corrupção: é a face mais visível de uma cultura empresarial. Esta cultura domina não o conjunto dos comportamentos empresariais, é claro, mas o núcleo central do que é o capitalismo brasileiro atual. Seus vínculos até aqui obscuros com o poder político oferecem o terreno fértil em que vicejam ganhos, agora sob contestação. Mais que isso, como as empresas que compõem este núcleo central respondem por parcela significativa dos investimentos de longo prazo no País, elas têm poder extraordinário em influir sobre o que é e será a própria infraestrutura do crescimento econômico.

O resultado da Operação Lava-Jato pode ser simplesmente a substituição dos protagonistas mais visíveis da promiscuidade que marca a relação entre o núcleo dominante do capitalismo brasileiro e o Estado. Mas sua magnitude é tal que ela abre ao menos a possibilidade de que os padrões em que se apoiou esta relação sejam reconstruídos e daí surjam novos contratos e novas coalizões capazes de reduzir nosso atraso com relação à fronteira do capitalismo global. O que está em jogo na Operação Lava-Jato não é somente o combate à corrupção. É para onde, para quê e para quem a economia brasileira vai crescer, quando a depressão terminar.

Ricardo Abramovay

Ricardo Abramovay é Professor Sênior do Instituto de Energia e Ambiente da Universidade de São Paulo, autor de Beyond the Green Economy (Routledge) e coautor de Lixo Zero. Gestão de Resíduos Sólidos para uma Sociedade mais Próspera (e-book, Planeta Sustentável).

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5 comentários “O capitalismo pós-Lava-Jato

  1. Augusto disse:

    Dizimar é um verbo muito bem escolhido. Afinal, a função dessa brutal prática romana (matar aleatoriamente um décimo dos soldados) era manter a coesão do exército, sua disciplina e capacidade de ação. Ou seja: expurgar alguns pela via do medo, para manter os demais dentro da mesma ordem…

    • Ricardo Abramovay disse:

      Muito obrigado por seu comentário. Felizmente há segmentos empresariais importantes que se insurgem contra as práticas atuais, mas sua força não é suficiente para alterar a maneira como a infra estrutura do País continua sendo concebida.

  2. Luiz Carlos Zanoni disse:

    Excelente artigo.
    Faço apenas uma colocação.
    Não me parece possível que os procedimentos econômicos consigam se manter sem a interação entre o Estado (e o governo pontual) e o empresariado.
    Não existe em lugar nenhum do mundo o capitalismo puro, o ensinado nos livros e reverberado por intelectuais…
    O que se viu, sempre no Brasil, foi a parte mais nociva dessa relação. Desde o Pedro, o Cabral.
    Concordo que se busque uma nova forma de atuação das duas partes e, principalmente, com algum meio de controle pela sociedade quanto aos caminhos a serem seguidos.
    A comitiva do Obama na Argentina, com seus 400 empresários, reflete muito a interdependência nessa área.
    O Brasil, por sua própria formação, tem que buscar o formato que mais de adeque aos seus interesses como Nação. A China e a Rússia – com seus novos zilionários criaram o seu modelo (para mim não muito sustentável a longo prazo).
    O problema está é em achar algum personagem ou alguns personagens confiáveis que liderem essa nova ordem.
    A Lava-Jato descortinou a promiscuidade da relação marital entre os segmentos. O que não significa que temos que eliminar o casamento e sim orientar os cônjuges..

  3. Paulo Teixeira disse:

    não acredito na Lava Jato,ela está contaminada na origem,promíscua na base.

    desmontou setores inteiros colocando em risco milhões de pessoas,não é possível deixar de comentar…

    o atraso será de décadas,pelo menos uma geracão inteira.

    destruir uma casa para não matar as baratas,perguntar a elas se querem fazer um acordo de sobrevivência….

    sem contar o mais importante,tem lado político-ideológico,é fundamentalista,por favor!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!

  4. Iuri disse:

    É exatamente por isso que o papel do estado deve se ater a áreas estritamente essenciais a população, a saber: segurança pública, justiça, manutenção e controle da moeda, saúde básica, educação básica e regulação. Esta última deve ser simples e objetiva longe do ponto de aplicação e detalhada perto do ponto de aplicação. Quanto menos estatais, menos órgãos, menos ministérios tivermos, menos corrupção teremos.

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