A economia da floresta em pé

Inovações socioambientais fortalecem comunidades na região do Xingu

Por Ricardo Abramovay | Economia VerdeODS 14 • Publicada em 26 de maio de 2016 - 20:40 • Atualizada em 1 de agosto de 2022 - 16:27

Mulheres atravessam o Xingu de canoa. Na região, além da população ribeirinha existem 26 povos indígenas que falam 24 idiomas

Empresas e mercados estão contribuindo de forma surpreendente para a luta contra os ataques a uma das maiores e mais ricas áreas protegidas do mundo, o corredor do Xingu de diversidade socioambiental, com 28 milhões de hectares. É uma superfície superior à do Estado de São Paulo, composta por um mosaico de Terras Indígenas e Unidades de Conservação. Parte muito importante dos rios voadores estudados por Antônio Nobre e pelo aviador Gérard Moss originam-se nesta vasta extensão territorial. As árvores funcionam como verdadeiras bombas bióticas, que lançam na atmosfera mais água que o volume despejado pelo Xingu no Amazonas diariamente. Sem elas, as chuvas no Sudeste do Brasil provavelmente desapareceriam.

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A proteção da floresta passa pela capacidade de sua exploração sustentável por populações tradicionais. E a força destas populações será tanto maior quanto mais elas se beneficiarem das relações com organizações que não fazem parte do seu universo, que ampliam seus horizontes e lhes permitem esta unidade tão única entre suas tradições e processos criativos de inovação.

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Relatório recente do Instituto Socioambiental mostra que, apesar de sua e proteção formal, amplia-se a agressão a este território na extração de madeira, na pesca, na pecuária e na mineração, todas praticadas de forma ilegal. Na Terra Indígena Cachoeira Seca, por exemplo, a exploração ilegal de madeira aumentou 300% entre 2012 e 2014. Mais de 760 quilômetros de estradas ilegais foram abertas para o escoamento do produto, neste período. E o estrago continuou em 2015, com mais 576 quilômetros de estradas ilegais.

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A madeira é revestida de aparente legalidade nas serrarias de Uruará, Trairão e Placas o que permite sua venda em Altamira, Santarém, São Paulo e para fora do país, sem que haja qualquer investigação e ação consistentes para erradicar estes crimes. Na raiz da destruição e da ilegalidade está a própria Usina Hidrelétrica de Belo Monte, que ampliou a demanda de madeira em toda a região. E claro que este previsível aumento da demanda não foi acompanhado de medidas para atenuar seus efeitos.

A distribuição de benefícios às populações locais, por parte da empresa controladora de Belo Monte (parte de suas obrigações de compensação ambiental), nem de longe responde ao Plano Básico Ambiental (PBA) ou a um planejamento estratégico. Oferecer grandes somas de recursos materiais e financeiros a populações indígenas e ribeirinhas sem planejamento nem o devido acompanhamento é o caminho para desestruturá-las, tornando-as dependentes de doações que não são eternas e que já estão minguando.

É neste contexto desolador que ocorre um dos mais férteis e promissores projetos levados adiante por um conjunto de organizações não governamentais, por comunidades locais e por empresas. O ponto de partida está no empenho em fazer das iniciativas econômicas das populações ribeirinhas, não reconhecidas como impactadas por Belo Monte (e portanto sem  recursos do PBA) a base fundamental para o fortalecimento da diversidade socioambiental desta imensa e decisiva região. Com o funcionamento dessas iniciativas nas Reservas Extrativistas, grupos indígenas da região foram se aproximando e se conectando.

Em suas vinte terras indígenas e dez unidades de conservação contíguas do Xingu vivem, além dos ribeirinhos (“beiradeiros”), 26 povos indígenas que falam 24 idiomas. Até recentemente exploravam, além da caça e da pesca, as seringueiras, as castanheiras, além do babaçu, da copaíba e diversos outros produtos do extrativismo. Na esmagadora maioria dos casos, seus produtos eram trocados por artigos vindos das cidades, quase sempre sem a interveniência de dinheiro. Barcos-armazéns (os “regatões”) preenchiam (e ainda preenchem) uma função importante ao receber os produtos do extrativismo e abrir acesso a bens fora do alcance destas comunidades.

Mas as relações entre regatões e estas populações colocavam-nas em situação de imensa dependência e impediam que se beneficiassem de melhor renda para sua produção. O resultado era o desânimo com as atividades produtivas, acompanhado pela depreciação da própria condição de indígena ou beiradeiro. Abria-se assim o caminho para que estas populações acabassem por fazer parte das atividades ilegais fadadas a destruir sua cultura e, com ela, a própria biodiversidade e os serviços ecossistêmicos fundamentais por ela prestados.

É por meio das “parcerias comerciais diferenciadas” que esta realidade está começando a mudar. Empresas compradoras de borracha, de castanha, de babaçu e de óleo de copaíba reconhecem que, além do produto que lhes é entregue, as comunidades responsáveis por sua extração cumprem a função de preservar os ecossistemas dos quais dependem não só estes produtos, mas uma série de outros ativos socioambientais, a começar por aqueles que contribuem para o equilíbrio do sistema climático. Ao mesmo tempo, o Instituto Socioambiental, o IMAFLORA com o apoio de diversas outras organizações estimularam o surgimento de pontos de troca de produtos (chamados de “cantinas”) que permitiram organizar, nas comunidades, a comercialização. Os recursos, antes concentrados na cidade e nos regatões, chegam ao interior da mata. As empresas estabelecem um contrato com os extrativistas que lhes dá garantia e estabilidade de preço e entrega. Ao mesmo tempo, estes centros comunitários de comercialização passam a contar com capital de giro que lhes permite comprar produtos para o abastecimento dos extrativistas. Os regatões não são suprimidos, claro, mas foram obrigados a aumentar os preços pelos quais compram os produtos do extrativismo em toda a região. Com isso, os jovens foram atraídos para atividades das quais estavam inteiramente descrentes.

Este conjunto foi sintetizado num Selo de Qualidade, lançado em março último, o Origens Brasil. Os produtos do extrativismo passam a ser reconhecidos comercialmente como portadores da própria integridade da floresta. A Wickbold, por exemplo, instalou nas embalagens dos pães que contêm castanha da Terra do Meio, um código QR, pelo qual os consumidores podem ter acesso aos extrativistas responsáveis por seus produtos, à história da região e a outras aspectos que contribuem para valorizar seus modos de vida. Além disso, as empresas, juntamente com as ONGs estão levando aos extrativistas inovações tecnológicas para aumentar a qualidade de seus produtos e os rendimentos que deles obtêm. A Mercur, por exemplo, está desenvolvendo junto com as comunidades técnicas compatíveis com os modos de vida locais que melhoram a qualidade da borracha que lhe é entregue, gerando inovações que podem agregar mais valor à borracha nas próprias comunidades. A Atina, empresa de cosméticos, atua para aprimorar os resultados do que se obtém de farinha do coco babaçu.

Não há dúvida de que a escala de tudo isso ainda é reduzida. O importante, porém, é que a proteção da floresta passa pela capacidade de sua exploração sustentável por populações tradicionais. E a força destas populações será tanto maior quanto mais elas se beneficiarem das relações com organizações que não fazem parte do seu universo, que ampliam seus horizonte e lhes permitem esta unidade tão única entre suas tradições e processos criativos de inovação. Elas passam a ter ganhos materiais, culturais e morais com a exploração da floresta em pé. Com isso, as chances das atividades ilegais reduzem-se consideravelmente e, como consequência, ampliam-se as possibilidades de que a floresta siga prestando os serviços ecossistêmicos dos quais todos dependemos.

O grande aprendizado é que na raiz destas iniciativas estão (tanto para as empresas, como para as ONGs) valores. Os produtos, os lucros empresariais e as inovações nada mais são que meios para uma finalidade maior, um valor maior e dos quais tudo depende: a diversidade socioambiental.

Ricardo Abramovay

Ricardo Abramovay é Professor Sênior do Instituto de Energia e Ambiente da Universidade de São Paulo, autor de Beyond the Green Economy (Routledge) e coautor de Lixo Zero. Gestão de Resíduos Sólidos para uma Sociedade mais Próspera (e-book, Planeta Sustentável).

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