Encontro com Lima Barreto

Uma conversa com o escritor, que será homenageado na Flip, sobre o Rio de Janeiro, que ele amou e o fez sofrer

Por Joaquim Ferreira dos Santos | ODS 9 • Publicada em 24 de julho de 2017 - 09:30 • Atualizada em 25 de julho de 2017 - 13:08

O Theatro Municipal: Lima Barreto não reconhecia sua cidade por trás da construção luxuosa. Foto: Augusto Malta/Reprodução/ Site do Theatro Municipal do Rio de Janeiro

Lima Barreto era dos meus. Implicava com tudo. Viveu num tempo em que jornalista era assim. Um chato sempre do contra, pensando sempre o avesso do avesso  do que lhe havia sido dito antes. Pior ainda: Lima Barreto é de um jornalismo do início dessa atividade, um tempo em que para exercer o ofício era preciso escrever bem e, acima de tudo, gastar sola de sapato.

Ele nasceu na Rua Ipiranga, em Laranjeiras, depois morou na Dois de Dezembro, no Flamengo, e mais adiante na Marrecas, no Centro, nos bairros de Santa Teresa, Catumbi, Ilha do Governador, Boca do Mato, Botafogo e Todos os Santos. Nada do que era da geografia carioca deixou de ser marcado por suas caminhadas. Conhecia a cidade sobre a qual escrevia e, como queria bem a ela, e como a vivência das ruas lhe dava autoridade, palpitava sobre tudo. Tinha o rigor de quem, em sua adoração e sonho, a imaginava melhor. Sofria. Era sua maneira de confessar amor pela cidade que, aos seus olhos, se perdia com mudanças pseudamente modernizantes.

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Vejo principalmente meus mortos queridos e como cronistas não morrem – perambulam eternamente pelos cenários que os inspiraram – eu vi Lima Barreto dias atrás. Ele estava em frente à Biblioteca Nacional, onde continua se recusando a subir porque a imponência do prédio – quem vai contestá-lo? quantos dos leitores deste site já estiveram lá? – afastou o povo dos livros

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Lima Barreto trabalhou no início do século passado, no tempo em que os jornalistas não queriam ser fofinhos, mas críticos maduros – o resto era armazém de secos e molhados, como diria mais tarde Millôr Fernandes. Lima Barreto era a consciência crítica em pessoa. Olhava para o lado e não gostava de quase nada. Não reconhecia a sua cidade atrás do luxo recém-construído do Teatro Municipal. No dia seguinte, em notas, crônicas, artigos de fundo, folhetins, o espaço que lhe permitissem, ele publicava seus catiripapos nas orelhas dos poderosos.

Lima Barreto: homenageado da Flip 2017

Eu estou me lembrando de Afonso Henriques Lima Barreto  (1881-1922) porque ele é o homenageado da Festa Literária de Paraty (26-30 de julho) e porque eu sou feito o garoto do filme, I see dead people. Vejo principalmente meus mortos queridos e como cronistas não morrem – perambulam eternamente pelos cenários que os inspiraram – eu vi Lima Barreto dias atrás. Ele estava em frente à Biblioteca Nacional, onde continua se recusando a subir porque a imponência do prédio – quem vai contestá-lo? quantos dos leitores deste site já estiveram lá? – afastou o povo dos livros.

Ele estava ali olhando entusiasmado o VLT, não por gostar dessas máquinas arremedando o que possa ser o futuro – mas justo pelo contrário. O VLT lembrava-lhe o bonde do passado. Lima Barreto apostava que voltaria a ver num deles a “fausse-maigre” com quem flertou numa viagem de bonde, e que por “covardia” não seguiu para prometer casamento. Desta vez, caso a revisse no VLT, abordá-la-ia, sem  esses pronomes todos, porque, afinal, foi ele quem inaugurou, antes dos paulistas, a fala modernista na literatura brasileira. Conversamos sobre a virtude das “espaventosas senhoras e transparentes melindrosas” que já não se fazem mais como outrora nos espelhos da Confeitaria Colombo.

Lima Barreto continuava achando tudo lamentável e quem quer que tenha falado com ele nesses dias de agora, a cidade revirada pelo abandono municipal, há de lhe dar continuidade nas lamúrias. Quando Pereira Passos inaugurou a Avenida Central, Lima Barreto achou que faltava aos prédios a nobreza que pedia o local. “Na cidade do granito, na cidade dos imensos monólitos do Corcovado, Pão de Açúcar, Pico do Andaraí, não há na tal avenida-montra, um edifício construído com esse material.”

O Leme que Lima Barreto adorava, em clique de 1911. Foto: Reprodução/Facebook/Rio Antigo

Desde então, e assim se passaram apenas 112 anos, a cidade já pôs abaixo pelo menos quatro outras gerações de prédios na agora Avenida Rio Branco. Ela continua sem uma personalidade arquitetônica que converse com o que lhe vai ao redor. Lima Barreto me disse que o Rio é uma cidade que se desconhece. O Rio de Lima Barreto ainda não tinha Ipanema, a estátua do Cristo, o bondinho do Pão de Açúcar ou o Jockey Club, detalhes que costumamos associar ao melhor da cidade. De nada disso, sentia falta. Flanava pela Rua do Ouvidor, batia ponto na Livraria Garnier, ia ao refresco de groselha na Colombo e depois pegava o bonde de volta para Todos os Santos, um percurso de meia hora. Adorava o deserto do Leme, onde o mar mugia suavemente e as ondas rebentavam antes da praia em franjas de espuma. “Pelo ar havia meiguice, e blandícias tinha o vento a sussurrar”.

Ele estava em todos os cantos e gostava tanto do Rio que preferia que a cidade ficasse para as próximas gerações do mesmo jeito que a conheceu. Lamentava, em 1920, o que se estava fazendo com Copacabana. “Não se compreende que uma cidade se vá estender sobre terras combustas e estéreis e ainda por cima açoitadas pelos ventos e perseguidas as suas vias públicas pelas fúrias do mar alto. A continuar assim, o Rio de Janeiro irá por Sepetiba, Angra dos reis, Ubatuba, sempre procurando os areais e os lugares onde o mar se possa desencadear em ressacas mais fortes.”

No seu sofrimento pela cidade que trazia na memória e ele já não encontrava, Lima Barreto foi dos primeiros a criticar a especulação imobiliária. Percebia que não era modernidade o que se buscava. Depois de colocar abaixo o Centro, a ganância dos tijolos esticava seus lucros até as praias longínquas. Lima Barreto foi também uma voz ativa na defesa dos negros, das mulheres assediadas pelo machismo e dos valores do paraíso carioca. Viu no bairro de Botafogo, primeiro ajuntamento chique da cidade, um símbolo do desejo estético dos novos ricos quererem transformar o Rio num arremedo do fausto europeu. E fez uma série de crônicas, com o estilo fino equilibrando a ira e o humor. Debochava da primeira turma de emergentes:

“O ‘botafogano’ é o brasileiro exilado no Brasil, é o homem que anda, come, dorme, sonha em Paris. É o brasileiro que não quer ver o Brasil tal qual ele é, que foge à verdade do meio, e faz figurino de um outro cortado em outras terras. O chique é ignorar o Brasil e delirar por Paris, numa atitude afetada e nem sempre inteligente”.

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Um século depois, em 2017, quando todos os tipos bem sucedidos de Rio de Janeiro parecem ter desaparecido, substituídos por uma cidade que ninguém sonhou, quem é capaz de desmentir a verve e sabedoria de Lima Barreto?

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O Rio de Janeiro de Lima Barreto já não existia mais e o escritor que costumava perambular sem GPS por suas ruas agora se perdia na nova cenografia. Não se conformava com a ridicularia dos tempos, com as casas de arquitetura lamentável do Flamengo. “A minha alma é de bandido tímido”, escrevia, “e se estarrece de admiração diante dessas suntuosidades desnecessárias. O Rio não precisa de semelhantes edifícios” – e lá ia Lima Barreto descendo o pau nos elevadores, nos prédios altos, e na canalha de “velhos gamenhos, derretidos em sorrisos para as mulheres que passam”. Eram os engenheiros responsáveis pelo desmonte da cidade e que Lima Barreto via sempre reunidos na calçada da Avenida com Sete de Setembro, a sede do Clube de Engenharia.

Lima Barreto julgava todos cegos ao que realmente importava, a cidade que lhe ia na memória, das barraquinhas juninas no Campo de Santana, dos mafuás nas estações de trem do subúrbio, das soirées no Encantado e da convivência das ruas. Tudo lhe parecia inconsistente, provisório, e imediatamente posto abaixo pelos edis. Era o último guardião de uma cidade que derrubava não só o que havia construído, mas que lutava também contra a natureza divina, demolindo morros e aterrando mares azuis.

Lima Barreto sofria sozinho diante da invasão desses bárbaros. “Essas gentes novas e o espírito frívolo delas, que tem ultimamente invadido este meu Rio de Janeiro, vão aos poucos matando o que ele tinha de verdadeiramente belo”.

Um século depois, em 2017, quando todos os tipos bem sucedidos de Rio de Janeiro parecem ter desaparecido, substituídos por uma cidade que ninguém sonhou, quem é capaz de desmentir a verve e sabedoria de Lima Barreto? Não à toa, depois de várias temporadas em hospícios, ele morreu doido de pedra, em novembro de 1922, em Todos os Santos. Está enterrado no Cemitério de São João Batista. De vez em quando dá uma escapada para ver o que sobrou do seu tempo. Gosta de pegar a ladeirinha ao lado da Santa Casa e, blasfemando contra o prefeito Carlos Sampaio (1920-1922), sobe o Morro do Castelo como se lá o morro ainda estivesse. Lima Barreto também pode ser visto envolto na fumaça das tradições negras, tragando uns charutos cubanos na Tabacaria Africana, há 170 anos na Praça 15 – se é que o atual prefeito, achando a cena de forte associação com o culto do demônio, não tenha tomado uma providência após o fechamento desta edição.

Joaquim Ferreira dos Santos

Jornalista e autor de vários livros, entre eles "Feliz 1958 - O ano que não devia acabar" e as biografias de Leila Diniz, Antonio Maria e Zózimo Barrozo do Amaral. Organizou a coletânea "As cem melhores crônicas brasileiras" e também publicou livros como cronista. Define-se principalmente como um repórter de Cidade. No #Colabora, Joaquim escreve sobre o que vai pelas calçadas e espaços públicos do Rio.

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