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Você não é só o seu currículo. Você não é o seu trabalho

Canto, danço, cultivo plantas e odeio roupas apertadas. Compro mais livros do que leio. Meu nome é Andréia Coutinho Louback. E é isso!

ArtigoODS 4 • Publicada em 6 de dezembro de 2023 - 09:33 • Atualizada em 7 de janeiro de 2024 - 15:48

Entre as infinitas reuniões profissionais das quais participo, rodas de apresentações individuais são clássicas e comuns. A regra mais comum é nome + cargo + instituição. Quando alguém quer deixar a dinâmica menos engessada, adiciona uma informação menos senso comum que não envolve o âmbito profissional.  Acontece que, acidentalmente, a gente acaba trazendo esse formato resumido de apresentação para a vida. Quando perguntam “o que você faz?” é comum recorrermos ao nosso currículo e títulos. E se alguém te desafiasse a se descrever sem as credenciais profissionais?

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Outro dia mesmo, em uma reunião mais diplomática, a facilitadora sugeriu uma rodada de apresentações curtas. Choveu quem estudou em Harvard, na London School of Economics, na Universidade de São Paulo (USP), especialistas em tudo, doutores de tudo e mestre em tudo. Éramos doze pessoas e eu era a última. Confesso que fiquei um pouco exausta daquele clima de “Linkedin” ao perceber uma leve disputa de egos e vaidades silenciosamente no ar — o que, na realidade, é muito comum entre pessoas brancas. Cansada e num dia ruim, chegou minha vez de me auto apresentar. Sem pensar, eu respondi:

– Meu nome é Andréia Coutinho Louback. E é isso!

Um silêncio constrangedor. A facilitadora (provavelmente também cansada?) até gaguejou na hora de retomar para a próxima etapa. Para quem não me conhecia, certamente ficou tentado a interpretar que eu não tinha bagagem para competir com tantas credenciais que foram exibidas quando precisávamos responder apenas três perguntas. O Linkedin logo me enviou notificações de visualizações no meu perfil. Será que foram conferir? Eu sou uma mulher negra e a tendência que percebo é que o meu cartão de visitas sempre vai causar um estranhamento e surpresa, afinal, a sociedade espera subalternidade de mim.

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O que eu queria ter respondido naquela mesa na verdade é que sou filha de Célia e Cláudio, mãe carioca e pai gaúcho. Eles se conheceram no Rio de Janeiro e se separaram 15 anos depois em São Paulo. Tenho uma irmã mais velha e sempre quis ter um irmão. Adotei vários amigos como irmão ao longo da minha jornada. Minha família no Rio é bem pequena, enquanto a de Porto Alegre é enorme — tão grande que eu sempre escuto um nome novo e preciso conferir quem é.

Andréia Coutinho: "Queria ser cantora até os 12 anos, mas mudei de ideia quando meu timbre de voz também entrou na puberdade". Foto Arquivo Pessoal
Andréia Coutinho: “Queria ser cantora até os 12 anos, mas mudei de ideia quando meu timbre de voz também entrou na puberdade”. Foto Arquivo Pessoal

Responderia que, além disso, eu sou obcecada pelo ato da escrita. Escrevo sempre e muito. Sou uma contadora de histórias, sou comunicadora, sou jornalista, sou escritora. Comecei escrevendo cartas para o meu pai, que viajava muito, e evoluí para ficções inspiradas em novelas mexicanas da década de 1990. Meu primeiro livro escrito à mão ganhou o título de Riqueza contra a simplicidade (inspirado na música Era Uma Vez, se Sandy & Junior). Infelizmente perdi os rascunhos e nunca tive a chance de revisitar essa história para além da minha memória.

Pode parecer contraditório, mas escrevo na mesma proporção que constantemente me sinto presa aos meus episódios de bloqueio criativo. Eles são como ondas do mar, me revisitam a cada marco. É muito comum me ver aprisionada frente à página em branco. E é ensurdecedor também. Mas, como eu disse, são como ondas que vão e vêm. Sempre passam, sempre voltam. São fantasmas que, inclusive, me trazem prejuízos na prática profissional.

Valeria dizer para aquele grupo que eu compro muito mais livros do que eu consigo ler — e olha que não sou colecionadora como meu amigo Rodrigo Assis. Eu realmente tenho a esperança de ler meu catálogo literário no mesmo ano que ele é comprado, mas isso tem acontecido cada vez menos. Não me orgulho, mas confesso também que aprendi a abandonar as leituras que não me envolvem. Admiro quem vai até o fim.

Acrescentaria de forma bem aleatória que eu não suporto roupas e sapatos desconfortáveis. Talvez essa seja uma tortura ainda pior do que ler livros desinteressantes. Por muito tempo, odiava usar tênis por achar que eles apertavam meu pé. Tive uma péssima experiência usando um All Star um número menor por anos e, desde então, aboli o uso de tênis e sapatos fechados da minha vida. Até morar nos Estados Unidos e ser especialmente influenciada pela cultura californiana de usar tênis e camisas oversized. Resultado: hoje uso tênis lindos e confortáveis.

Complexa, aleatória e sem linearidades, como diz meu ex-psicólogo. Sou viciada em podcasts, Nutella e séries específicas. Enjoo rápido de café, então, estou sempre buscando novos sabores, torras e métodos para testar. Cozinha para mim tem que ser prática: taco temperos, misturo vegetais e legumes, dispenso proteínas, rego com azeite e está tudo bem. Paralelamente, canto, danço, me penduro em tecidos acrobáticos, cultivo plantas, tenho um bom gosto para decoração e gosto de inventar presentes. Tenho o péssimo hábito de varar madrugadas para tentar cumprir alguns prazos e recorrer a um energético para me segurar no dia seguinte. Eu sou um caos, confesso!

Durante o governo Bolsonaro, morei em Davis, na Califórnia, por um ano e meio. Fui aprovada em um dos programas mais competitivos da Fulbright, que é um programa de intercâmbio educacional e cultural do governo dos Estados Unidos. Levei meu companheiro e meu cachorro (sim, meu cachorro) e juntos vivemos um capítulo profissional e pessoal importantíssimo para a nossa jornada. Antes disso, eu já tinha viajado bastante. Meu primeiro intercâmbio foi em Londres, na Inglaterra, e depois em Nancy, na França. E, não. Não venho de família de classe média alta. Foram oportunidades cavadas dentro da universidade na qual me formei, que foi a Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio).

Sou uma mulher negra. Veja bem: eu disse que sou uma mulher negra, mas não sou setorista da temática racial. Escrevo, falo e me interesso por muitas outras temáticas, mas vez ou outra me reduzem à militância por justiça racial. O mesmo eu diria sobre a agenda de justiça climática. Brinco que sou monotemática, mas eu tenho opiniões fortes e reflexões inacabadas sobre um universo.

Eu queria poder dizer que não sou o meu trabalho, não sou o meu cargo e títulos profissionais que galguei. Queria ser cantora até os 12 anos, mas mudei de ideia quando meu timbre de voz também entrou na puberdade. Seria artista de circo e florista? Seria. E professora? Super seria. Eu amo ensinar e compartilhar mundos e vivências.

A verdade é que eu sou (e somos!) um monte de coisas, um monte de histórias e capítulos encerrados e reabertos. Sou feita de fases, de momentos, rupturas. Em parte, arquiteta de ideias que não tenho tempo e disciplina para executar; engenheira que constrói pontes entre pessoas e oportunidades. E tenho uma capacidade admirável de construir vínculos genuínos de amor e de amizade.

– Mãe, se um dia você ler esse texto, me desculpe por falar palavrão? Mas sua filha é foda! Eu sou foda.

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