Uma história de autoritarismo e desigualdade

De Canudos (foto) à chacina da Candelária e ao massacre de Carandiru, a sociedade brasileira sempre manteve uma postura de discrição em relação à violência

Em uma espécie de guerra particular, 30 mil jovens são mortos por ano no Brasil: 77% negros

Por Francisco Carlos Teixeira Da Silva | ArtigoODS 4 • Publicada em 24 de fevereiro de 2016 - 09:00 • Atualizada em 24 de fevereiro de 2016 - 18:54

De Canudos (foto) à chacina da Candelária e ao massacre de Carandiru, a sociedade brasileira sempre manteve uma postura de discrição em relação à violência
De Canudos (foto) à chacina da Candelária e ao massacre de Carandiru, a sociedade brasileira sempre manteve uma postura de discrição em relação à violência
De Canudos (foto) à chacina da Candelária e ao massacre de Carandiru, a sociedade brasileira sempre manteve uma postura de discrição em relação à violência

A reeleição de Dilma Rousseff para o segundo mandato de presidente do Brasil, em 2014, e mesmo antes, na campanha eleitoral daquele ano, seguida às Jornadas de “junho de 2013”, mudaram a face da política no Brasil em vários aspectos. Um deles, creio que se instalou entre nós sem chamar muita atenção.

A sociedade brasileira – malgrado as suas características paternalistas, cooptadoras dos “out siders”, e ditas “cordiais” – sempre foi hierárquica, excludente e autoritária. No entanto, a violência “ativa” ou “passiva” na sociedade brasileira mantinha uma postura de discrição. Da simples exclusão até a opressão violenta direta, como nos diversos massacres coletivos e/ou de massas da nossa história, isso sempre acontecia. Foi assim com as guerras de Independência, passou por Canudos (1896-97), pelo Contestado (1912-16) indo até Carandiru (1992) e os assassinatos dos meninos da Candelária, em 1993.

Os dados de mortes violentas no Brasil mostram um país que supera as baixas de guerra no Líbano, na Líbia, no Mali ou Nigéria e equivalem, anualmente, a todas as baixas norte-americanas na Guerra do Vietnã (1965-1975).

Ora tal violência era ocultada, na história, na mídia e nos tribunais, ora era atribuída a atavismos e “atrasos” (como em El Dorado dos Carajás, em 1996, ou Corumbiara, em 1995). Passando a ideia de que eles seriam próprios da estrutura social do país e que iriam, aos poucos, –  sem muita vontade das estruturas do Estado de acelerar o processo – se extinguindo.

Isso, no entanto, mostrou-se um engano e, pior ainda, uma grande mentira. Os dados de mortes violentas – que alguns governos estaduais querem agora esconder, como no caso de São Paulo – mostram um país que supera as baixas de guerra no Líbano, na Líbia, no Mali ou Nigéria e equivalem, anualmente, a todas as baixas norte-americanas na Guerra do Vietnã (1965-1975). Explicita tal afirmação a matança silenciosa, sistemática e crescente, de jovens negros e pobres das comunidades brasileiras. Cujos números já ultrapassam a maioria das guerras contemporâneas (dos 30 mil jovens mortos por ano no Brasil – de um total de 56 mil assassinatos – 77% são negros). E, mesmo assim, tal violência mantém-se como uma “fala mal-dita” e, na maioria das vezes, inconsequente do ponto de vista da Justiça.

Durante a campanha eleitoral de 2014, tais dados e o debate que deveria seguir-se, estavam ausentes. No entanto, mesmo não trazendo à tona suas maiores mazelas, a violência do debate, das imagens e metáforas foi inédita na história do Brasil. Na sequência daquilo que se convencionou chamar de “intelectuais de direita” – uma série de nomes, que se revezam na televisão e nas mídias nacionais – declarando pachorrentamente que era possível sim, e muito popular, atingir os adversários ou simples debatedores, com injurias pessoais, xingamentos chulos, rótulos fácies e equivocados, sem quaisquer consequências.

Durante uns bons 10 anos, coincidentes com o Governo Lula, estes “colunistas” escreveram de tudo e de todos sem qualquer consideração pela verdade, pela comprovação dos fatos ou a mínima responsabilidade em informar. Na sua esteira vieram os “comunicadores de massa”, dubles ocasionais de políticos, com longos programas televisivos em que amedrontam a população, ameaçam as normas do direitos e garantias civis e desmoralizam o próprio Estado, muitas vezes justificando e mesmo aplaudindo grupos de “justiceiros” e a morte para lá de duvidosa de pessoas apontadas como criminosos.

Desta forma, o sistema de cotas raciais e sociais, os projetos de moradia e de renda mínima, as leis de proteção às minorias e às mulheres, a busca da proteção do meio ambiente e do patrimônio material e imaterial do país sofreram ataques ferozes e totalmente infundados. Mentiu-se sistematicamente sobre o rendimento dos alunos “cotistas”, mentiram sobre um pretenso “Kit Gay”, mentiram sobre as taxas de natalidade das famílias favorecidas pelo “Bolsa família” e, mais assustador de tudo, os insultos raciais e de condição e opção sexual tornaram-se corriqueiros.

Quando, de forma excepcional, alguns poucos cidadãos – como o goleiro Aranha, em 2014, ou os dois operários negros que no “Dia da Consciência Negra”, no Rio, ganharam de um comerciante bananas de presente (sic!) – resolveram buscar seus direitos de ofendidos na Justiça, formou-se, de pronto, uma longa fila de aderentes ao “deixa disso”.  Mídia, instituições esportivas, gente comum manifestaram-se “´preocupados” com o exagero da reação dos ofendidos, afinal eram situações “excepcionais” em locais excepcionais ou talvez uma simples piada!

Bom, o resultado de tanta complacência – dificuldade de registrar uma queixa por racismo ou ofensa moral (eu mesmo, numa delegacia do Rio presenciei a desilusão de duas jovens cujos retratos apareciam no Facebook como “negras cotistas que tiram nosso lugar”), a dificuldade da causa ir à julgamento, o silêncio exausto dos chamados “parasitas”, “gays” (ou outros termos do campo semântico), negros, crioulos, “vadias”, etc., que ousavam enfrentar colunistas, comunicadores e deputados liberticidas – resultou na adoção vitoriosa da mesma estratégia de violência verbal e imagética por parte dos políticos em campanha e, pior ainda, na prática do debate político na atual legislatura. A pior legislatura desde da redemocratização do país e, talvez, a pior da história republicana do país. No entanto, com certeza, a mais cara!

Pois então, como os políticos ineptos, incapazes, absenteístas e corruptos chegam em Brasília? Pelo voto. Pelo voto direto e garantido, modernizado pelas urnas eletrônicas, preparado por uma longa, cansativa e cara campanha eleitoral.

Nunca se viu no Brasil uma campanha eleitoral com tamanhas ofensas, insinuações maldosas e mentirosas, e ataques diretos à honra, deixando de lado temas fundamentais para o país, pulverizando qualquer preocupação com projetos e programas, esquecendo os campos da Saúde e da Educação – o que resultaria de imediato numa conta que ora pagamos com escolas fechadas e epidemias que lembram o Brasil pré-Oswaldo Cruz, quando cidades como o Rio de Janeiro eram declaradas “porto sujo”!

Qual o projeto de tais deputados – ou se quiserem, de qualquer deputado – para o controle e extinção do império de 30 anos do mosquito da dengue (zika e outras doenças) no país? Qual os projetos para solucionar a incapacidade dos municípios lidarem com o esgotamento sanitário? Qual o projeto para o risco de secar a maior cidade do Brasil? Qual o projeto para ampliar e qualificar a educação no país, em especial a educação básica?

Silêncio.

As chamadas “reformas”, todos os dias apresentadas nos noticiários e debatidas por todos, são reformas que afetam diretamente uma pequena elite do país: reforma tributária, reforma fiscal, reforma política, reforma trabalhista, reforma previdenciária… Podem até mesmo serem importantíssimas, mas não tanto quanto a vida das pessoas e o futuro de crianças inocentes e o futuro do Brasil, atolado em uma educação de péssima qualidade.

Assim, a pauta dita “nacional” é a pauta das elites de sempre, do mandonismo, do patrimonialismo e do coronelismo redivivo. Todo o mais é tratado como eventualidade, emergência e improvisação, resultando numa decisão final em voga desde os tempos do Marechal Rondon: “- que se chame o Exército, talvez a Marinha e a Aeronáutica, para a guerra contra o mosquito! ”.

Enquanto isso, a plena confusão entre o dinheiro público e a vida e viver privados dos políticos e seus funcionários mais próximos, o crescente fosso de vivências cotidianas entre a elite do mando e o homem comum – como no transporte, nas férias, nas filas nas portas de escolas e hospitais, no pagamento de diárias e de viagens – se aprofunda. No entanto, como reclamar e condenar os políticos? Não é possível e admissível a afirmação de que “todos os políticos são iguais e então tanto faz em quem votar! ”   Temos políticos competentes, honestos, sinceros e preocupados com a população e o país. Poucos, mas os temos. E não são, de forma alguma, monopólio de um partido. Só de poucos, mais uma vez.

Pois então, como os políticos ineptos, incapazes, absenteístas e corruptos chegam em Brasília? Pelo voto. Pelo voto direto e garantido, modernizado pelas urnas eletrônicas, preparado por uma longa, cansativa e cara campanha eleitoral. Ou seja, só teremos outros políticos quando a população que vota conseguir entender a relação entre a zika e o voto, a escola do seu filho e o voto, o atendimento de emergência num hospital e o voto, as horas em pé dentro de um ônibus e o voto….

Em suma, hoje, muito possivelmente, das grandes democracias de massa modernas (Índia, EUA, Indonésia, Japão e Brasil são os maiores países em eleitorado ativo) o Brasil é o país em que o voto popular é o mais inconsciente e inconsequente do mundo. Escolher um candidato, ou um partido, buscar seu programa e depois cobrar dos seus eleitos ações coerentes – e os meios de cobrança estão aí, via e-mails e portais – é uma exceção rara entre os eleitores brasileiros.

Temos, mais do que nunca, que discutir política como instrumento de educação do povo.

Francisco Carlos Teixeira Da Silva

É historiador e cientista político, com mestrado em História na UFF e na UNiversidade Livre de Berlim, doutorado em Ciências da História, Univerisdade de Berlim, fundador do Laboratório de Estudos do Tempo Presente, UFRJ, autor de livros sobre conflitos e mudanças sociais, entre eles "Atlântico, a história de um oceano" (com colaboração), Prêmio Jabuti de melhor livro do ano de 2014.

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2 comentários “Uma história de autoritarismo e desigualdade

  1. Flavio Médici da Silva disse:

    Acredito que o povo perceba a relação das coisas do cotidiano e o voto. Mas a nossa forma de fazer politica, clientelisma e coronelista, transformou essa visão em uma ação utilitarista imediatista individualista (eita, ficou esquisito). A relação se percebe nas frases: “ano que vem tem eleição” quando a passagem aumenta ou o posto de saúde não oferece atendimento. Ou “sem obra, sem voto”, comum nos períodos de eleição aqui em Nova Iguaçu, onde a urbanização e o sanemento ainda é um grande problema.

  2. Pingback: Uma história de autoritarismo e desigualdade – Bem Blogado

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