Oscar Wilde e o domínio das máquinas

Datacenter com inúmeros servidores: há mais de 100 anos, Oscar Wilde já escrevia sob o papel das máquinas na sociedade

Juventude eterna nas redes sociais é a versão atual de Dorian Gray, personagem de Oscar Wilde. Texto político do escritor analisa papel da tecnologia em nossas vidas

Por André Machado | ArtigoODS 9 • Publicada em 23 de março de 2016 - 08:00 • Atualizada em 21 de julho de 2021 - 10:06

Datacenter com inúmeros servidores: há mais de 100 anos, Oscar Wilde já escrevia sob o papel das máquinas na sociedade

O escritor irlandês Oscar Wilde (1854­-1900) é mais conhecido por seu único romance, “O Retrato de Dorian Gray”, e suas comédias dramáticas. No livro, Dorian mantém sua juventude enquanto uma tela que o retrata envelhece em seu lugar. Nos dias de hoje, é no Facebook e no Instagram que nos mantemos eternamente joviais enquanto, por trás dos teclados, envelhecemos… Mas se engana quem considera que esta pequena analogia paradoxal é a única em que se pode juntar o pensamento do grande esteta com tecnologia.

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Oscar Wilde fotografado em 1895/Domínio público/Reprodução do site do Victoria & Albert Museum
Retrato do escritor Oscar Wilde

Há 125 anos, Wilde publicou seu texto mais politizado e libertário, “A Alma do Homem Sob o Socialismo”. Saiu na edição de fevereiro de 1891 da revista “Fortnightly Review” e foi publicado em livro quatro anos depois. A tendência “de esquerda” wildeana já é evidente em aforismos como “o trabalho é o vício das classes bebedoras” e “não pagar nossas dívidas é o único modo de sobrevivermos na memória das classes comerciais”. Mas em “A Alma…”, o escritor elege como o vício maior a propriedade privada. “O socialismo (…), ao converter a propriedade privada em riqueza pública, e ao substituir competição por cooperação, restaurará a sociedade à sua condição apropriada de organismo completamente saudável, e garantirá o bem­-estar material de cada membro da comunidade. Mas, para o total desenvolvimento da Vida no mais alto grau de perfeição, é necessário algo mais. (…) O individualismo.”

E para chegar lá, na visão de Wilde, o Estado não pode ser autoritário, nem deter o poder econômico. “Se houver governos armados com poder econômico, além de político, isto é, se tivermos tiranias industriais, a situação final do ser humano será pior que a inicial”, afiança. Para ele, o Estado deve consistir numa associação voluntária que “organizará o trabalho, e cuidará da manufatura e distribuição de todas as commodities. E o trabalho manual deve ficar a cargo… das máquinas. “Varrer um cruzamento de ruas cheio de lama oito horas por dia enquanto sopra o vento leste é uma ocupação lamentável. Varrê-­lo com dignidade moral ou física me parece impossível. Varrê­-lo com alegria seria assustador. (…) Todo trabalho desse tipo deveria ser feito por uma máquina.”

Eis aí um velho sonho da humanidade: ver as máquinas fazendo nosso trabalho por nós. Entretanto, nos anos 2010, já percebemos que as máquinas é que dominam nossa vida, profissional ou social. Wilde não poderia prever o surgimento da internet, mas ele intuiu que a ditadura maquinal existia por outra razão. “Até agora, o homem foi, até certo ponto, escravo das máquinas, e há algo de trágico no fato de que, uma vez tendo inventado uma máquina pra fazer seu trabalho, ele começou a passar fome. Mas isto é o resultado de nosso sistema de propriedade e competição. Um homem possui uma máquina que faz o trabalho de quinhentos homens. Em consequência, quinhentos homens ficam desempregados (…). O dono da máquina fica com a produção toda e acaba tendo quinhentas vezes mais do que deveria ter, muito mais do que ele realmente deseja. Se a máquina fosse propriedade pública, todos se beneficiariam dela.”

Para Wilde, a tecnologia é apenas o que deveria ser ainda hoje: uma ferramenta, em contraposição a uma muleta para tudo na vida. Seu único objetivo seria cuidar das tarefas tediosas ­­ “todo trabalho não intelectual, monótono, que envolva condições desagradáveis. As máquinas deveriam trabalhar para nós em minas de carvão, fazer serviços sanitários, limpeza de ruas e entregar mensagens em dias chuvosos” [este bem poderia ser um vislumbre da internet, se bem que, em dias de chuva, por vezes ela cai].

Segundo o escritor, nas condições capitalistas, a máquina compete com o ser humano, quando deveria servi­-lo. “Não há dúvida, este é o futuro do maquinário. (…) Enquanto a humanidade estiver se divertindo, (…) fazendo coisas belas, lendo ou simplesmente contemplando o mundo, as máquinas farão o trabalho necessário e desprazeroso”.

Um século depois, o advento do computador pessoal nos anos 80 e 90 poderia ser descrito em parte como a realização da utopia wildeana (“é isto uma utopia? Ora, um mapa-­múndi que não inclui Utopia [trocadilho com o país imaginário descrito por Thomas More] não merece sequer uma olhadela”). Porque os computadores pessoais realmente fazem boa parte do “trabalho sujo” para nós. E a noção de propriedade privada foi violentamente sacudida pela chegada da internet (embora precedida pelos sistemas de código-­fonte aberto e pelo movimento político do software livre), porque com ela o ambiente tecnológico passou a pertencer a todos e não a apenas aos iniciados, como ocorreu nos primeiros tempos da era da informática.

Curiosamente, a noção de compartilhamento preconizada por Wilde ocorreu no âmbito da própria rede mundial: a velha indústria se viu chacoalhada pela velocidade com que o conteúdo digital passou a ser trocado, baixado, editado, mixado… As palavras de John Perry Barlow em sua Declaração de Independência do Ciberespaço (que completou 20 anos em fevereiro) ecoam ainda hoje: “Governos do Mundo Industrial, seus gigantes cansados de carne e aço, eu venho do Ciberespaço, o novo Lar da Mente. Vocês não são bem­-vindos entre nós. Vocês não têm soberania onde nós nos reunimos. (…) Estamos criando um mundo onde qualquer um, em qualquer lugar, pode expressar suas crenças, não importa quão singulares, sem medo da coerção ao silêncio e à conformidade”.

Aparelho multiuso

Por outro lado, aos poucos a indústria vem se adaptando, nos últimos anos, à nova realidade virtual. O data mining de Google e Facebook está aí, peneirando nossos dados para nos fornecer anúncios e serviços personalizados.

A nova televisão está nos sites de streaming, a música enveredou pelos modelos de iTunes, Rdio e Spotify. A própria mídia impressa se reinventa na rede.

E, se os celulares e smartphones espraiaram ainda mais o ciberespaço, botando­-o literalmente em nossas mãos, aos poucos estamos voltando a ser escravos das máquinas. Elas hoje competem conosco num outro sentido: não é bem que nos tirem do trabalho duro (muito pelo contrário), mas nos arrancam da vida presencial. É uma forma de individualismo, mas diferente da desejada pelo dramaturgo irlandês.

Um dado interessante sobre o ensaio wildeano é que, segundo biógrafos do escritor, ele foi inspirado numa conferência sobre socialismo proferida por ninguém menos que Bernard Shaw na Londres vitoriana. “Pelo menos desta vez Wilde se preocupou com o que dizia, em vez de como o estava dizendo”, escreveu o biógrafo Hesketh Pearson. “Ao se dirigir aos espíritos rebeldes de sua própria época, ele falou aos de todas as épocas. (…) Não há dúvida de que as máquinas podem produzir mais do que o suficiente para todo mundo, mas o senão a todo plano de perfeição para o universo está na própria imperfeição humana”.

André Machado

Jornalista há mais de três décadas, trabalhou em locais como a Rádio Fluminense FM, o Grupo Manchete e o jornal O Globo, onde cobriu tecnologia no caderno Informática Etc e na editoria Digital & Mídia. Publicou livros sobre o tema e também de ficção ("Daniela e outras histórias", contos, Multifoco, 2012).

Nota da Redação: André Machado morreu em 2021, vítima da covid-19.

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